Gilberto Freyre. Casa grande e senzala.
Plano de aula
Professores: Pedro Francisco Marchioro[1] e Talita Rugeri[2].
[1] Doutor em Sociologia pela UFPR e professor substituto de Ciência Política da UFSC.
[2] Doutora em Sociologia pela UFPR e professora da educação básica e da pós graduação em Direitos Humanos da PUCPR.
Resumo
O presente plano tem por objetivo oferecer um esquema de aula que contempla o planejamento, a exposição e a discussão de Gilberto Freyre no que toca ao seu principal texto, Casa Grande e Senzala. É um balanço dos principais pontos que levantamos em turmas do primeiro ano de graduação e no segundo e terceiro ano do Ensino Médio em uma Universidade em Santa Catarina e em um Colégio de Santos, nos dois semestres de 2024. É também uma espécie de relato da execução dos planos em sala e um registro do retorno que se obteve por parte dos alunos, desde um mergulho de releitura e revisão crítica e detida na obra.
Introdução: O homem
É verdade que Freyre é autor muito polêmico. Já o era em vida e ficou ainda mais depois de deixá-la. Primeiro enxovalhado pela ala conservadora de seu tempo, devido ao conteúdo sexualizado e erótico de seu texto. Depois, atacado por essa mesma ala devido à sobreposição que opera sobre o racismo, substituindo-o pelo fator cultura. Nosso autor é explícito sobre seu intento já no prefácio do livro, de superar o racismo pela via da cultura, segundo a apreensão que fez junto ao próprio Franz Boas, por quem foi orientado quando de sua estadia nos Estados Unidos. E esse é um grande mérito que se deposita na conta de Freyre, principalmente por uma certa esquerda (por exemplo seu crítico mordaz Jessé Souza).
A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de “raça” e de “religião” do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora (FREYRE, 2003, p. 32).
A direita que incontestavelmente o abraça, apraz-se pelo desenho rico que oferece da cultura brasileira, mas principalmente pela forma equilibrada que alcança das disparidades históricas inconciliáveis.
É partir desse acolhimento que lhe destinam os setores de direita nacionalista que Freyre precipitará sua biografia para as bandas do integralismo na primeira metade do século passado e do extremismo de direita tanto no Brasil quanto em Portugal. Entre outros fatos, o homem foi presidente da União Democrática Nacional (UDN) de Pernambuco e deputado pelo mesmo partido de espectro explicitamente de direita, liberal e conservador (e golpista por condição quase genética).
Foi ainda oposição a Getúlio Vargas desde a Revolução de 1930 até a sua extensão na figura do presidente João Goulart, tendo apoiado, portanto, e participado com entusiasmo a Ditadura militar no Brasil. Em 1969 Freyre passou a integrar o Conselho Federal de Cultura a convite do presidente general Costa e Silva. Posteriormente consagrou-se ideólogo do regime salazarista sobretudo em sua vertente colonialista em África.
Ressalte-se que o autor pertence às grandes famílias de Pernambuco, criança mimada crida nos engenhos, como ele mesmo define, sendo amigo dos demais herdeiros do engenho (um deles, José Lins do Rego, cujo livro Menino do engenho é extremamente proveitoso no apoio às aulas).
A obra
Voltemos ao escrito e ao muito que sobra da exegese de seu texto.
Lembremos que a época era de racismo paradigmático, embasado em ciência e que Freyre pretendia superá-lo. Mas a sua linguagem, a de 1930, é carregado de termos hoje impraticáveis como “crioulo”, “pretinha”, “índia”, além de noções não vigiadas porque então desamparadas das conquistas sociais posteriormente alcançadas (feminismo, anti racismo, igualdade, etc.).
A leitura do texto foi feita informada sobre as críticas ao autor, principalmente a sua defesa ao suposto equilíbrio entre as raças, o “mito da democracia racial” a ele atribuído, por exemplo, por Florestan Fernandes. Mas sempre que possível buscando as expressões e seus fundamentos nas próprias palavras do autor.
Ao fim das discussões em aula nós, professores, avaliamos que não encontramos provas fáceis e diretas que denunciassem o reacionarismo do autor, ao contrário de parte dos alunos, estes sim mais municiados das polemicas em voga em torno da obra de Freyre do que da leitura cuidadosa dela). O que vimos, isso sim, foi, no conjunto da obra, a visão positiva, ou mesmo conservadora e saudosista (como o próprio autor a define) da larga extensão do período histórico que o autor confronta.
Esse foi um dos motores que nos moveu em sala, além das críticas que lhe endereçam Sergio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Jessé Souza e outros mais contemporâneos que se enovelam com um certo senso comum sobre a figura e a obra de Gilberto Freyre.
O esquema freyriano em Casa Grande e Senzala
O ponto de partida das investigações e discussões em sala foi a pergunta:
- O que Freyre busca compreender? Resposta: A formação social do Brasil, segundo o próprio.
- Como ele pensa respondê-la? Através das três perguntas exemplificadas por Jessé Souza para a sustentação de um mito nacional: de onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?
O que Freyre propõe é a análise do Brasil segundo da metáfora da casa grande e da senzala. Ou seja, o mapa desse microcosmo (anexado em folha larga em todas as edições do livro em português e facilmente disponível na internet) como um espelho reduzido do país, ainda que em período colonial.
Situamo-nos, por assim dizer, em um tempo e espaço: o Brasil colonial (ele passa pelos 3 períodos – descobrimento, colonização e império, mas se concentra no segundo) em seu quadro institucional (representado pela Casa grande e a senzala) conjugando os três grandes grupos formadores Brasil e do tipo brasileiro: o branco europeu português, o nativo indígena não branco, e o negro de África.
Explicação material-funcionalista
Freyre sustenta sua tese da mestiçagem racial em uma necessidade sócio-histórica. E a fundamenta de acordo com os seguintes pontos:
- Portugal era um país de população pequena e economia saturada que só poderia ter extravasado para o mar. O objetivo da colônia portuguesa nas Américas era diferente do de África ou Ásia. Aqui, em tão extenso território, era preciso povoá-lo. Mas como? Com população reduzida, não conseguiria povoar de famílias inteiramente portuguesas, posto que a própria exportação de homens (ainda que degredados, expurgados, condenados, loucos, doentes, endividados). As “cargas” de mulheres viriam muito depois, trazidas pela igreja preocupada justamente com o cruzamento do branco europeu com as nativas daqui (coisa julgada impropria), quando no não de homens entre homens. Assim, para o povoamento e conquista territorial, o cruzamento foi sendo paulatinamente aceito pelos que aqui se assentavam e relaxado quanto às amarras dogmáticas da igreja.
- O português era mais preparado para ter sucesso onde os demais europeus fracassariam. Os séculos de intercâmbio com os mouros e árabes islâmicos os havia legado de uma predisposição à flexibilidade, ou “plasticidade” como ele chama. Sua disciplina religiosa era mais aberta do que a de seu vizinho espanhol e muito mais do que os demais europeus, o que lhe permitiu certos cruzamentos e convívios extra raciais. Sua fisiologia também estaria mais apta ao encontro com o corpo exógeno e exótico (Freyre enfatiza a importação da sífilis como sua marca). Estava mais aclimatado as topografias de cá, já que “Portugal é mais africano que europeu”, isto é, divide o mesmo trópico. Além de outros fatores que Portugal experimentara em sua história e que o predispôs a empresa exitosa no Brasil.
- A mulher indígena foi o ponto nevrálgico da gênese do tipo brasileiro. Ela se envolvia ou era envolvida à força pelos colonizadores. Atenção! Freyre não nega que havia violações, mas de fato as minimiza e enfatiza uma espécie de complexo de atração e consentimento delas para com os brancos). Na visão do autor a mulher indígena é um elemento quase deslocado da orbita da tribo, apesar de parte dela. Por exemplo, ela é muito mais inclinada para a sedentarização do que o “índio”. Deve-se lembrar que as culturas aqui encontradas eram consideradas por Freyre “atrasadas” por não dominarem técnicas básicas de agricultura ou domesticação de animais para o consumo. Nesse sentido, à mulher sobrava a maior carga do trabalho social da tribo: preparar a comida, cuidar das crianças, higienizar, além de cumprir também funções dos homens. As receitas que o autor descreve em várias páginas envolve uma cozinha quase avançada que a mulher chefiava. Em suas palavras, à mulher não sobrava tempo, trabalhavam muito e o dia inteiro. Isso soou como uma motivação para a necessidade de constituição familiar do europeu.
- Os “índios” homens eram preparados para a guerra, os ritos, as caças e certas vivências exclusivas. Freyre destaca a inclinação a homossexualidade do homem indígena, com isso enfatizando aquele deslocamento da mulher, de certo modo liberada para o intercurso sexual com o europeu. A impressão é que ao “índio” não importava o monopólio da mulher. Com tais características, o “índio” evoluiu historicamente para os caboclos jagunços, capitães do mato, ajudantes do senhor de engenho e, posteriormente, ocupante das funções intermediárias, nas germinações urbanas.
Estes são os pontos principais de apoio que reunimos do planejamento e aplicação das aulas, desde a apresentação, discussão e compreensão desse difícil ensaio de Gilberto Freyre que é o Casa grande e Senzala. Um texto ao qual é difícil mesmo dizer “teoria”, em escrita tão escorregadia, que retira numa página o que afirmara na anterior.
A seguir trazemos algumas passagens do polêmico autor na mesma obra, mas que nos surpreendeu devido á atualidade dos problemas que aborda e da significação que atualmente ganha, como disse um aluno, quase de uma “denúncia”.
Denúncia de Freyre
Se por um lado o autor esmorece a crítica sobre a violência sexual contra o nativo, por outro confronta contundentemente a violência simbólica da Igreja, Cia de Jesus, a violência racial e, mais importante, a violência brotada já na institucionalidade brasileira colonial marcada por uma questão atualíssima e cara aos nossos dias atuais: o latifúndio.
Aliás, essa é uma variável a qual o autor aponta como causa da desnutrição, deformação e atrofia do brasileiro, desde o pobre ao rico, e que finalmente explicaria as confusões aparentes entre a alegada inferioridade racial nos trópicos e a superioridade branco europeia.
Freyre é atualíssimo no superar o determinismo geográfico à lá Retzel, e em demonstrar as distorções ambientais incididas pelo modo de produção arrasador da monocultura. Este, por sua vez, ocasionando, além da restrição alimentar de toda a população, carente de inúmeros nutrientes essenciais para o desenvolvimento básico da saúde, a limitação na variação produtiva e no desenvolvimento tecnológico. O desenvolvimento técnico, afirmará Freyre, é plenamente capaz (como já evidenciado à época) de superar as barreiras geográfica, a hostilidade do clima, a infertilidade do solo, a violência das águas, enfim, as intempéries naturais. A comunidade dos homens, vaticina o autor, já se demonstrou capaz de sobrepor à natureza física uma natureza reformada em afinidade com interesse social.
Referências
Livros:
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. — São Paulo: Global, 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala – Em Quadrinhos. – São Paulo: Global, 2003.
Documentário
Casa Grande e Senzala – A cunhã da família brasileira. Diretor Nelson Pereira dos Santos, 2001
[1] Doutor em Sociologia pela UFPR e professor substituto de Ciência Política da UFSC.
[1] Doutora em Sociologia pela UFPR e professora da educação básica e da pós graduação em Direitos Humanos da PUCPR.