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Desconstruir “Paulo Freire, o demônio”

Paulo Freire

Desconstruir “Paulo Freire, o demônio”

Cristiano das Neves Bodart

Precisamos desconstruir um demônio! Há um demônio rondando a sociedade brasileira e o chamam de Paulo Freire. Tarefa difícil, mas necessária pelo bem dos nossos jovens que estão nas escolas.

Há uma construção discursiva estereotipada de Paulo Freire que ganhou eco na sociedade. Grosso modo, trata-se de um Freire constituído de faces que envolvem aspectos políticos e pedagógicos, feições que se imbricam e são, inclusive, antagônicas. O resultado é um demônio que supostamente estaria a rondar a educação nacional. É isso que combatemos!

A face política atribuída ao Paulo Freire estereotipado é marcada por forte discurso que o associa ao marxismo, mais especificamente a noção igualmente estereotipada do marxismo (aquele que come criancinhas e que estava implantado no Brasil até 2016). Os estereótipos em torno dessas ideias são mobilizados para, por exemplo, afirmar que as ideias de Paulo Freire – por estarem fundadas no marxismo estereotipado – são contrárias aos “bons costumes” e impraticáveis no mundo real. Dentre os responsáveis pela construção dessa face estão políticos da direita e da extrema direita e religiosos conservadores.

Já na face freireana estereotipada relacionada à pedagogia, vamos observar a figura de um pensador equivocadamente divulgado como desautorizador da autoridade do(a) professor(a), contrário a todo e qualquer aspecto da pedagogia tradicional e culpabilizador dos docentes como exclusivos responsáveis pelo fracasso escolar, assim como defensor da aprovação automática dos(as) estudantes. Em síntese, há uma construção caricatural e deturpada de Paulo Freire a fim de apontá-lo como o responsável pelo fracasso escolar brasileiro, já que supostamente suas ideias estariam impregnadas na educação brasileira. Os mesmos que imputam à Freire estar “ideologizando” os professores, tentam ridicularizá-lo alegando, contraditoriamente, que suas ideias nunca teriam sido colocadas em práticas. Trata-se de uma construção de um Freire assustador, um demônio cujas faces são desarmônicas – e por isso, ainda mais aterrorizador.

Grosso modo, os ataques à Freire e à sua pedagogia são oriundos de diversos grupos, todos marcados por uma posição reacionária, liberal e neoliberal. Claro, não poderia esquecer que há os desinformados que apenas replicam o que recebe nos grupos de WhatsApp da família e dos colegas de trabalhos ou de farra. Dois dos principais aspectos que incomodam esses grupos são o caráter politico e politizador da pedagogia freireana. Freire ao propor uma educação que promova a percepção das relações de poder, evidencia o aspecto político da educação. O pensamento de Freire ao promover mobilização e mudança social mostra-se politizador.

A obra “Por que eles têm medo de Paulo Freire na escola?” (BODART; MARCHIORI; 2022) é um exemplo de leitura que descontrói esse demônio. A obra visa apresentar os aspectos desse Freire estereotipado, para, então, combater a desinformação, ao mesmo tempo que apresenta parte de seu pensamento. O livro explora maneiras como Freire é atacado (e/ou temido) por diversos grupos da sociedade brasileira contemporânea.

A referida obra traz os argumentos que visam culpar Freire pelo fracasso da educação brasileira e apresenta elementos que evidenciam ser falaciosos tais argumentos. Também problematiza porque alguns professores, especialmente ou que aderem as práticas tradicionais, têm receio de conhecer e se apropriar das ideias freireanas, o que implicaria se auto avaliar, rever suas práticas, especialmente de caráter depositárias. A obra desvela de quais formas a mídia vem construindo um Freire caricato e estereotipado. Para isso, explora as publicações de Olavo de Carvalho, um dos principais disseminadores desse estereótipo, visando demonstrar se deu a deturpação das ideias freireanas para o tornar um inimigo nacional entre aqueles que aderem aos discursos da direita e da extrema direita. Há também uma apresentação das formas como políticos da direita criam discursos contrários e de ataque à Freire, no intuito de demonstrar as motivações políticas que os levam a “demonizar” Paulo Freire. Há um esforço de evidenciar como a estratégia de combater Paulo Freire entre os conservadores é, antes de tudo, uma forma de garantir que não haja mudanças sociais no Brasil, já que isso interessa a justamente a esses grupos.

É urgente informar e conduzir à reflexão que desmistifique Paulo Freire. Atualmente temos notado uma pressa em emitir opiniões e isso reverbera na busca de “informações” rápidas, superficiais, sem rigor científico e/ou sem honestidade. Combater a desinformação é uma tarefa intelectual constante, ainda que não se alcance o pleno sucesso deve ser nosso horizonte (ou utopia, como descrito por Eduardo Galeano). Trata-se de se opor a um sistema de ideias que normatiza as formas de pensar, agir, sentir e crer que historicamente oprime grande parte da sociedade brasileira.

Estamos vivenciando um processo de democratização do discurso, o que é bom. Por outro lado, a precariedade educacional vem produzindo “subintelectuais” que acessam meios de comunicação, tais como as redes sociais, e dali propagam discursos problemáticos, imprecisos ou, simplesmente, reproduzem ideologias dos grupos sociais que tradicionalmente têm o controle da produção do sistema de ideias. Nosso esforço como intelectuais situados em favor dos menos favorecidos e dos historicamente oprimidos, é tentar desvelar os interesses existentes no atual sistema de ideias estabelecido e denunciar a opressão. Há uma ampliação de vozes, mas o discurso se mantém, reproduzindo o sistema de ideias estabelecido que interessa uma elite nacional diabólica. Precisamos ampliar as falas, sobretudo situadas socialmente do lado dos que foram sempre silenciados. Isso é fundamental para romper com os históricos discursos que oprimem os menos favorecidos e as minorias.

Desconstruir o estereótipo do Freire diabólico é evidenciar, ao menos duas coisas: (i) que precisamos entender melhor seu pensamento e aproveitar suas contribuições para a educação brasileira; e (ii) que há um projeto político ideológico no Brasil que visa o silenciamento dos que gritam pelos oprimidos. Em síntese, precisamos desconstruir esse Paulo Freire “pintado” como o inimigo da nação, como demônio. O caminho é evidenciar seu pensamento, demonstrar sua humanidade (por isso, falho/pecador, é claro) e defesa pela liberdade, igualdade e respeito. Por outro lado, é necessário emitir um alerta: os demônios que historicamente perturbam o sono de grande parte de nossa sociedade são outros.

 

Referências bibliográficas

BODART, Cristiano das Neves; MARCHIORI, Cassiane da C. Ramos. (Orgs.) Por que eles têm medo de Paulo Freire na escola? Maceió: Editora Café com Sociologia, 2022.

 

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Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. Desconstruindo “Paulo Freire, o demônio”. Blog Café com Sociologia. jul. 2022.

 

 

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Por que eles têm medo de Paulo Freire na Escola?

Título: Por que eles têm medo de Paulo Freire na escola?

Organizadores: Cristiano das Neves Bodart e Cassiane da C. Ramos Marchiori

Ano: 2022

Editora Café com Sociologia

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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