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O ensino de Sociologia e a importância de desnaturalizar a naturalização

Tema central: desnaturalizar a naturalização

O ensino de Sociologia e a importância de desnaturalizar a naturalização

Cristiano das Neves Bodart[1]

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Dentre os diversos propósitos do ensino de Sociologia está o de desnaturalizar os fenômenos sociais. Aqui cabe um importante esclarecimento: desnaturalizar não é uma tarefa limitada à Sociologia, mas de todas as Ciências Humanas e Sociais. O mesmo vale para o estranhamento, com a diferença de ser essa a tarefa basilar de todas as Ciências, assim como da Filosofia.

Já tive a oportunidade de escrever sobre a necessidade de professores e professoras de Sociologia avançarem para além da compreensão de que a especificidade do ensino de Sociologia estaria no estranhamento e na desnaturalização (BODART, 2021). Isso não exclui, na prática docente, a necessidade de tomar o estranhamento e a desnaturalização como ato pedagógico, pois sem eles não há ensino de Ciência Humana, apenas senso comum. Outro esclarecimento importante: o senso comum é aqui entendido como o conhecimento não refletido e não testado pelo método científico, adquirido nas experiências ordinárias do cotidiano e reforçado pelo compartilhamento coletivo e por suas repetições entre as gerações. Por sua origem não há garantias de que seja verdadeiro ou válido, mas também não significa ser mentira ou inválido. O fato é que o senso comum deve ser valorizado na prática docente não como algo a ser superado e descartado, mas como um dos conhecimentos possíveis a compor o repertório que os/as estudantes devem possuir, já que muitas vezes são tais conhecimentos que os/as possibilitam “resolver” os desafios presentes em suas vidas cotidianas – espero poder escrever de forma mais detida sobre essa questão em outra oportunidade.

O que importa, neste momento, neste texto, é trazer a seguinte proposição: não adianta apenas criar condições para que o corpo discente desnaturalize os fenômenos sociais nas – e a partir das – aulas de Sociologia, é necessário desnaturalizar a naturalização!

Há uma frase presente na sociedade brasileira que revela bem a naturalização: “sempre foi assim”. Tal expressão, com a aparência de considerar a história (sempre foi), a nega. Ao afirmar “sempre foi assim” há uma segunda negação, a negação da dialética inerente da história e das relações sociais, negação das dinâmicas políticas que determinam a manutenção ou a mudança.

Num primeiro momento, o “sempre foi assim” parece ser apenas a repetição que conduz a uma espécie de amnésia da gênese que naturaliza as relações significantes, estas mesmo que são produtos da história. Em outros termos, se coloca como sendo apenas a negação das origens de seu significado, uma espécie de “inconsciente natural”, diria Bourdieu e Passeron (2016). Ao dizer “sempre foi assim” o objetivo é inferir que não há porque buscar suas origens, já que o fenômeno não mudou e nem mudará e que sua origem pouco importa em sua configuração. Contudo, é necessário ampliar a compreensão do “sempre foi assim”, talvez expressão máxima da naturalização. Dito de outra forma, é necessário desnaturalizar a naturalização.

Desnaturalizar não deve ser reduzido à demonstração de que há um “inconsciente natural” e uma produção social – o que é verdade – mas, sobretudo, demonstrar de quais maneiras as estruturas sociais materiais e simbólicas de ontem e hoje reforçam o estado das coisas e como o “sempre foi assim” o legitima. O processo de naturalização não é espontâneo, natural, mas socialmente produzido. Em miúdos, a naturalização é um fenômeno socialmente construído, reproduzido e mantido por estruturas sociais estabelecidas a partir de arbitrários culturais, as quais interessam alguns grupos sociais privilegiados e, por isso, uma prática política (marcada por relações de poder) e uma violência simbólica.

Nesse sentido – repito! –, não adianta apenas criar condições para que o corpo discente desnaturalize os fenômenos sociais nas, e a partir, das aulas de Sociologia, é necessário também desnaturalizar a naturalização, conduzindo os/as estudantes a compreender que a naturalização é também um fenômeno social resultante de uma configuração política, marcadas por jogos de poder e que ocorre sem que os envolvidos tenham consciência, ou plena consciência, do processo, e por isso é violenta.

Então, cabe aos/às professores de Sociologia desnaturalizar a naturalização, problematizando como que os fenômenos sociais naturalizados assim o foram e quais os jogos políticos estão presentes nos processos de naturalização. Importa tomar a naturalização como um fenômeno social também naturalizado, por isso a importância de desnaturalizar a naturalização a partir do ensino de Sociologia.

Referências Bibliográficas

BODART, Cristiano das Neves. O ensino de Sociologia para além do estranhamento e da desnaturalização: por uma percepção figuracional da realidade social. Latitude, edição especial, v. 15, 2021. Disponível em: <https://www.seer.ufal.br/index.php/latitude/article/view/11397>

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2016.

Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. O ensino de Sociologia e a importância de desnaturalizar a naturalização. Blog Café com Sociologia. jun. 2021. Disponível em: <https://cafecomsociologia.com/ensino-de-sociologia-desnaturalizacao-naturalizacao/> 

 

Nota:

[1] Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Centro de Educação e do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Vice-presidente da Associação Brasileiro de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) e editor do Café com Sociologia. E-mail: cristianobodart@gmail.com

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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