Epistemologias Ecológicas – Antropologias, Etnografias e Ontologias (parte 2)*

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V – Antropologia do Conhecimento: o antropólogo nativo e “antropologia do verbo”.

No terceiro dia do minicurso, começamos a retomar do ponto de onde havíamos parado. O paradigma da corporeidade de Csordas, as relações entre M. Ponty, Bourdieu e Focault. A fenomenologia entre corpo e objeto, posta como abstração. Avançando, assim, sobre a ideia de que “a consciência se projeta no mundo físico” e atravessa o corpo, enquanto objeto da consciência, enquanto possibilidade de se perceber o mundo numa experiência culturalmente situada. Reconhecendo ainda a consciência aquém da objetificação, indica-se o modus operatus na constituição do objeto de investigação científica. Logo, alcança-se a emergência do objeto no universo da experiência humana.

Se, a partir, de Bourdieu o corpo é dado como socialmente formado e informado, então questiona-se, no entanto, como opera? Em Bourdieu recorre-se ao conceito de habitus para colapsar a dualidade posta entre a alteridade e os fluxos e continuidades. Por meio do sistema de disposições articuladas em função dos princípios geradores de práticas. O que por sua vez não dissolve a tensão do conflito imposta ao processo, como também se pode observar em Norbert Elias, na sua constituição do conceito. No âmbito deste debate, Mauss e sua noção de técnicas corporais, apresenta os usos do corpo padronizado pela cultura, pela história ou pela estrutura. Em Mauss, o corpo é o objeto original que se realiza na expressão e manifestação enquanto lugar de inscrição da cultura, além de ser também ferramenta original com a qual o trabalho da cultura se realiza.

O corpo, em regime de semelhança ou simetrização, entre as formas como as coisas se produzem, organiza o habitus com o gosto – e o sentido de gosto – em relação às influências do lugar, situação ambiente, que constitui a corporeidade do sujeito exposto aos exercícios de poder e a criação de regras. Nesse conjunto de discursos de poder e disciplina entre corpo e mundo (instituições, sistemas) a incidência sobre os sujeitos, a partir destas mediações, de questões de poder e agência operam através da experiência no contexto sobre o sujeito.

Assim, no complexo da relação sujeito/corpo a agência quer recuperar as forças e os fluxos do corpo no mundo e do mundo no corpo. O corpo-sendo incorporado pelo Ser e pelo acontecer-sendo, onde a experiência é o momento-espaço onde a ação acontece e o mundo/situação corresponde a uma agência mútua. Vejo com reserva o debate sobre agência posto num regime de crítica entre Tim Ingold e Alfred Gell, mas para além deste caso, a centralidade do colapso entre corpo/meio, corpo/signo/significado é uma constante metodológica para a pesquisa antropológica e sua apropriação para os dilemas da etnografia atualmente.

Logo, com a desnaturalização do habitus através da empatia e com aquilo que pode acontecer de fato entre a experiência e a narrativa, pode-se entender a etnografia enquanto técnica narrativa dos corpos na mediação evento/contexto – teoria/técnica –, o que contribui para a formulação de do conceito antropólogo nativo. De tal maneira, chegamos até as reflexões da problemática ontologia/cultura, reconhecendo-se, desde já, o papel da ontologia na crítica da produção de conhecimento.

Para esse antropólogo, o trabalho epistemológico depende de uma certa forma de “desobediência ontológica”. Com a passagem pela “antropologia do verbo”, traz-se a vida em seu movimento, em sua ação que se projeta no mundo pela transitividade/intransitividade de habitar/existir/viver/morrer/crescer o que implica uma relação entre forma – morte – movimento/ação – vida. O que pode ser representado pelo decreto de que: a ciência ocidental encontrou um ponto sem volta quando os antropólogos começaram a fazer filosofia.

As transformações nas formas de apreender um objeto, se como matéria/materialidade ou rede/malha expõe a percuciência da indagação filosófica posta pela antropologia contemporânea. A busca por uma revisão das condições para a observação da agência do objeto – esse agregado vital –, das coisas, da vida expõe uma reflexividade entre mundo material e mundo de materiais, quase uma alquimia. Além de que, o reconhecimento do espaço vivido como “textura”, como ensina Lefebvre sobre a produção do espaço ente o projeto e o trajeto, reconhece-se como resultado de relações. E onde a filosofia é mais aguda é na investigação do ser humano, considerado não um ser, mas um devir, não um nome, mas sim um verbo, já que fora do movimento estaríamos mortos.

A ontologia, posta entre o monismo e a ontogênese, leva-nos ao devir, por exemplo das transformações afroindígenas ou entre humanos e não-humanos. A diferença não está na cultura que reveste o fenômeno, mas sim na natureza do objeto, como presumiu Eduardo Viveiros em seu multinaturalismo. Com a investigação da natureza da experiência acrescenta-se algo àquilo que se é dado.

Os debates postos pela corrente chamada de “novos materialismos” nos convidam a algumas reflexões. A distinção entre o hilemorfismo e o funcionalismo parece povoar essa nova imaginação antropológica. As contradições da visão da matéria morta, inerte ante a forma que contem a vida, movimento, ação parece ser o ponto de partida. Já que se a matéria está contida na forma para uma interpretação arquetípica para a ideia de vida, opera-se então a ruptura com a necessidade do sopro divino.

Tim Ingold, por seu turno realiza uma inflexão com o abandono da dicotomia corpo/alma. A leitura das relações entre coisa/objeto e base/ontologia, parte de Heidegger e Gibson, sobre o segundo a considerar principalmente seu conceito de “affordance”, que significa agência dos objetos. Já que para Heidegger, a coisa é um acontecer, um acontecimento, um evento, as coisas são vivas, e antecipam a agência através da força vital do humano, enquanto o objeto – morto – é algo a ser construído, elaborado e um mundo de objetos é um mundo a ser ocupado. Logo se, a vida é um conjunto de aconteceres, então todo objeto é uma coisa reciclada a partir de uma intenção.

Essa agência se expressa na forma que é entendida como algo acoplada à matéria, ao ser, ao sujeito. Essa perspectiva ainda recupera uma crítica a ideia de abdução de Alfred Gell. Resultado da agência do sujeito no tempo composta de intenção, desejo, vontade. Como em Deleuze e Guatarri a matéria viva é explicada enquanto matéria-fluxo, forças materiais em regimes de movimento e variações ante a inércia encapsulada. Consiste, enfim, essas alternativas em elaborar o pensamento numa crítica do conceito de representação. Desde Bruno Latour e sua noção de ator/rede (network) para explicar a conexão, Tim Ingold revê as relações e pensa num complexo de malhas/teias formada de intersecções num quê que se entretece, se toca mas não se conecta; as distinções entre interação, intineração – de itinerário – estabelece as correspondências entre nossa vida social e os encontros no caminho do nosso habitar em processo de habitação do mundo. Na esteira dessas contribuições colabora a emergência de um conceito da envergadura de “rizoma” dos autores e Mil Platôs. Se Latour em sua teoria da ação pensa o mediador intermediado, para Ingold, a ontologia tem em si o núcleo da agência.

Sobre a etnografia e o trabalho de campo, ainda é possível tecermos alguns comentários. A diferenciação implicada no ato, aliada a “etnograficidade” essa capacidade de escrever o outro através dos encontros, conjugamentos e apropriação dos contextos segundo Ingold, corresponde a uma co-autoria do trabalho intelectual além de conter a intersubjetividade do verbo e da intenção a par com deslocamentos etnográficos, o que gera um contexto etnográfico crítico à ideia de situação em relação ao momento da interação. Se quando etnógrafo descreve, o antropólogo apreende ao desenvolver seu pensamento, ou ponto de vista, a partir de um lugar no mundo, então a educação permite aprender e tornar a prática etnográfica um ato político de troca e intervenção dialógica.

E essa interação que pressupõe a co-autoria, elabora uma forma de “antropologia engajada” na intersecção de/para e com quem o antropólogo escreve. Assim, de um ponto de vista de uma antropologia que não se resume a etnografia, ou seja, tornar-se uma prática do viver junto/viver com, interagindo, faz a transformação da experiência em etnografia.

Através da estabilização do fluxo da experiência, proporcionada pela etnografia, da entrega no campo ao ato de atualizar a potência da teoria etnográfica, sempre lembrando que a antropologia não pode reduzir-se ao seu método, a pesquisa antropológica, tem no trabalho de campo etnográfico seu processo de observação participativa, ou como sugerem agora, “engajada” no fluxo da vida. Então, o hiato posto entre a observação e a etnografia que imprime-se a posteriori, abriga o processo de aprendizagem que revela a passagem de uma “etnografia do particular” para uma “etnografia da vida”, ou seja, uma ocupação do presente, um tornar-se pela externalidade ontológica experiência.

A aprendizagem, aqui difere-se da educação, onde o processo cognitivo de aprender em campo e relatar no estilo etnográfico, encontra-se enquanto forma de conhecimento definido pela antropologia, filosoficamente, ao elaborar a matéria do campo. Aqui, a etnografia se transforma numa vontade de alargar a experiência, de recompor a vida sob a forma de um exercício mnemônico.

VII – Ingold e o conceito de paisagem

A passagem de landscape à takscape, no bojo do pensamento de Ingold, representa o momento da ação, da tarefa, do fazer, enquanto a primeira noção que buscava demarcar um espaço ao invés de um conjunto de ações, o que por vezes se escapa. Essa mudança além de indicar a oposição entre os conceitos, ilumina também os pontos de vista sobre o visível e o invisível, desde as noções postas M. Ponty, na tentativa de recuperar a experiência do corpo no mundo.

“Weather-word”, essa ideia de atmosfera-tempo, também parte desse conjunto de transformações, aponta para a transcendência do planeta na qual alcança-se o universo num fluxo transcendente do ambiente em que se pensa os processos, os materiais, os fenômenos. Atingindo assim uma espécie de pós-fenomenologia da percepção, Ingold estabelece um estatuto de validade a conceitos a partir da constatação de que a vida está na matéria, a força do fluxo dos materiais nos planos da ontologia e da cosmopolítica.

Assim, as narrativas cosmológicas voltam a ocupar um lugar e um “estatuto” de validade ontológica frente os aspectos da cultura e da história colonial elaborada pelo ocidente que interditam as experiências de transformações e “transportabilidade” e transfiguração ontológica de várias ordens e naturezas, sem esquecer da floresta enquanto fonte de todo multinaturalismo.

Notas:

*Reflexões baseadas em minicurso ministrado pelo professor Dr. Carlos Steil, da UFRGS.

1545756_588677031205736_1429779135_n**Camillo César Alvarenga, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGS/UFPB). Especialista em Estudos Étnicos e Africanos pelo ICS e ISCTE, Lisboa, Portugal. Bacharel em Ciências Sociais pelo Centro de Artes Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CAHL/UFRB). Pesquisador do Laboratório de Etnomusicologia, Antropologia e Audiovisual (LEAA/Recôncavo), atuando, sobretudo, na etnografia da paisagem sonora da região e, também, na organização do Memorial e Biblioteca Ernestina Santos Souza..

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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