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O golpe sobre a Educação brasileira

O golpe sobre a Educação brasileira

Por Cristiano das Neves Bodart

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O Conselho Nacional de Educação (CNE), cuja representatividade é questionável, aprovou no em 04 de dezembro de 2018 a também questionável Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio. Estamos diante de um golpe sobre uma Educação, esta já marcada por muitos problemas históricos. A aprovação da BNCC, somada a Reforma do Ensino Médio, poderá causar: i) o aprofundamento das desigualdades educacionais; ii) a privação do acesso à uma educação integral; iii) o retrocesso quanto às abordagens de temas importantes ao respeito, a tolerância e a proteção do corpo e; iv) desvalorização de alguns disciplinas em detrimento a valorização de outras. Trata-se de uma reforma/deforma de caráter ideológico instrumental que nos regressa décadas no tempo. Trata-se de um golpe pela conteúdo e pela forma como se deu a Reforma e a aprovação da BNCC.

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O risco do aprofundamento das desigualdades educacionais

A Lei da Reforma do Ensino Médio desobriga o Estado de ofertar em todas as escolas a mesma educação, uma vez que desobriga a oferta de todos os itinerários formativos (Art. 35A, § 4º). Frente aos exames de seleção para ingresso nas Universidade, as instituições privadas que ofertam o ensino as classes sociais mais elevadas certamente ofertarão todos os itinerários, o que – certamente – não ocorrerá no ensino público; ampliando ainda mais as desigualdades educacionais e, consequentemente, sociais. Em síntese, a escola pública ofertará o mínimo e as particulares continuarão a ofertar uma escola melhor, aprofundando o dualismo já existente.

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Privação do acesso à uma educação integral

A Lei da Reforma do Ensino Médio não garante oferta aos alunos que desejarem cursar mais de um itinerários formativos (Art. 36, § 5º).

A proposta de itinerário é, por si só, uma privação ao conhecimento. Os Alunos saem no Ensino Fundamental sem ainda ter tido contato com as disciplinas de Física, Biologia, Filosofia e Sociologia. Como irão optar por itinerários sem mesmo os ter conhecido? Se não optar por algo desconhecido, como pensarão em cursar o ensino superior nessas áreas de conhecimento?

O mundo contemporâneo exige cada vez mais sujeitos dotados de conhecimentos múltiplos e teremos uma escola cada vez mais restrita em relação aos tipos de conhecimento.

Fica claro que a BNCC e a Reforma do Ensino Médio buscam meramente dar resposta aos indicadores internacionais existentes, por isso apenas duas disciplinas são obrigatórias: Português e Matemática. Essa situação aprofunda a hierarquia curricular, reproduzindo a ideia de que há disciplinas mais e menos importantes. Disciplinas desconhecidas pelos alunos que saem do Ensino Fundamental, tais como a Sociologia, serão profundamente prejudicadas.

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Retrocesso quanto às abordagens de temas importantes ao respeito, a tolerância e a proteção do corpo

Nas últimas décadas diversos temas entraram na escola, temas importantes que buscam promover o respeito, a tolerância e a proteção do corpo. Tratar, por exemplo, do tema homofobia foi um passo importante para que tenhamos uma sociedade mais tolerante e respeitosa. Minorias passaram a ser objeto de estudos dos alunos com a proposta de buscarmos caminhos para a inclusão e a garantia dos direitos básicos desses grupos. Falar de sexualidade vem sendo um caminho frutífero para combater a pedofilia, as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada. Excluir esses temas, não colocando foco sobre eles, como faz a BCNN, é um retrocesso civilizatório.

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A reforma está marcada pelo caráter ideológico instrumental

A reforma é conduzida por um pseudo “processo natural” de modernização, marcada pelo fetiche do determinismo tecnológico-inovador e apontada como a solução dos problemas econômicos do país, por isso a forte ênfase no caráter instrumental e utilitarista. Sob essa perspectiva a educação visa potencializar o capital humano, atendendo a recomendações de organismos internacionais ligados a histórica exploração da mão de obra barata dos países mais pobres ou “em desenvolvimento” como o Brasil.

O que significa investir e “capital humano”? Significa investir em conhecimentos úteis para impulsionar a produtividade dos setores econômicos, enxergando a formação humana articulada com a formação da força de trabalho, sendo esta considerada um dos fatores de produção – como uma das máquinas necessárias para a produção. Não há nisso nenhuma sobra de “educação integral”. Em muitos dos discursos dos apoiadores da reforma, há uma confusão entre educação integral com educação (adquirir conhecimentos de todas as dimensões do saber) de tempo integral (estar na escola durante todo o dia).

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Há uma falácia presente no discurso da reforma e na BNCC

O desemprego seria por falta de qualificação e não por uma conjuntura estrutural. Nesse sentido, o discurso meritocrático torna os indivíduos responsáveis únicos pelo seu fracasso.

Uso dos termos “tecnologias” e “Aplicadas”, além do itinerário “formação técnica e profissional” deixam os objetivos da BNCC e da Reforma do Ensino Médio à mostra. Nota-se que sobram verbetes que denunciam o seu caráter neoliberal do capitalismo flexível.

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O discurso de “modernização” resume-se ao currículo

Há uma visão equivocada na reforma. Ela parte do princípio de que o desinteresse dos alunos dar-se por conta da falta de “modernização curricular”, ignorando outras dimensões mais impactantes, tais como as estruturas físicas das escolas, a formação dos professores, a qualidade das aulas, a disponibilidade de recursos didáticos, etc.

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A flexibilização do currículo por áreas de conhecimento

A flexibilização do currículo vende a ideia de que haverá a possibilitar dos jovens escolhessem os itinerários formativos, a partir de suas “vocações” e de seus interesses futuros. A ideia de vocação remete a uma pré-cientificidade, onde ser, por exemplo, professor requer apenas vocação e não profissionalização. Esse tipo de discurso tende a desvalorizar a profissionalização, atendendo aos interesses dos exploradores de mão de obra, já que por vocação tem se a ideia de que se trabalha até sem salário.

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A ausência de um processo democrático

O processo foi marcado pela falta de diálogo com pesquisadores e entidades científicas. Criou-se estratégias para falsear uma “participação” social. Na produção da primeira e da segunda versão da BNCC, ainda no governo Dilma, tivemos a participação de entidades e profissionais, além de seminários, fóruns e outros espaços colaborativos. A terceira versão em diante da BNCC foi produzida a partir de acordos escusos entre grupos privatistas, exclusão das entidades científicas públicas e falta de diálogo, além de ignorar por completo todas as contribuições dada à segunda versão. O governo alega ter sido o documento produzido com participação de milhares de pessoas. Na verdade houve a participação, o que não tivemos foi a consideração dessa participação na elaboração do documento. O “Dia D” foi uma última “jogada” do governo para legitimar o documento (já que os fóruns estavam sendo espaços de críticas), disponibilizando centenas de páginas para que os professores discutissem em 4 horas e enviassem sugestões (as quais nenhum tomou conhecimento e, portanto, não necessariamente chegaram ao CNE e/ou foram consideradas). A forma como foi conduzida a BNCC está longe de ter sido democrática, muito menos de ter buscado atender os interesses da sociedade brasileira.

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O retrocesso

O termo “Novo Ensino Médio” torna-se contraditória frente ao retorno de modelos já existentes durante a Ditadura Militar brasileira. Trata-se da volta do modelo tecnicista focado apenas em produzir mão de obra. Parece que não aprendemos com a experiência de Auschwitz.

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Algumas versões da BNCC

Versão da BNCC de abril de 2018 AQUI

Versão da BNCC de dezembro de 2018 AQUI

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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