Machismo como regime discursivo
Machismo como regime discursivo

Machismo como regime discursivo + atividade para a aula

Machismo como regime discursivo

 

Cristiano das Neves Bodart

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O machismo é uma prática social, mas o que produz e sustenta essas práticas ao longo do tempo? Não se trata apenas de atitudes individuais ou escolhas morais isoladas, mas de um conjunto de condições sociais que tornam determinadas condutas possíveis, legítimas e recorrentes. É nesse ponto que entra o discurso.

O discurso não apenas nomeia ou descreve a realidade: ele produz sentidos, organiza percepções, define posições sociais e estabelece regimes de verdade que orientam o modo como homens e mulheres devem agir, sentir e se relacionar. Ao naturalizar hierarquias e expectativas de gênero, o discurso acaba por normalizar desigualdades, fazendo com que práticas machistas pareçam evidentes, necessárias ou “naturais”. Entre os pensadores mais influentes do século XX, o francês Michel Foucault (1926-1984) oferece instrumentos analíticos fundamentais para compreender esse processo, ao permitir pensar o machismo não como um simples preconceito individual, mas como um regime discursivo que produz subjetividades, regula corpos e estrutura relações de poder no cotidiano social.

Michel Foucault não formulou uma teoria específica da dominação masculina, mas oferece ferramentas conceituais (uma espécie de caixas de ferramentas) para compreendermos como desigualdades de gênero são historicamente produzidas e naturalizadas em nossa sociedade.

A analítica foucaultiana permite deslocar o olhar de explicações moralizantes para os processos sociais que fabricam verdades, moldam subjetividades e regulam condutas. Para Foucault (2011) o poder não é apenas repressor, mas também produtivo, já que ele produz realidade, domínios de objetos e rituais de verdade. Partindo dessa perspectiva, podemos pensar o machismo não como emergente de preconceitos individuais isolados, mas de regimes discursivos que classificam corpos, organizam expectativas e legitimam hierarquias de gênero.

Discurso e a fabricação de verdades de gênero

Para Foucault, os discursos não apenas comunicam ideias; eles estruturam campos de possibilidade, definindo aquilo que pode ser dito, pensado e reconhecido como verdadeiro. Ele afirma que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por meio do qual e pelo qual se luta” (Foucault, 1996, p.10). Ao longo da história, discursos jurídicos, religiosos, médicos e pedagógicos produziram classificações como “mulher frágil”, “homem racional”, “feminino cuidador” e “masculino ativo”. Essas categorias não funcionam como descrições neutras, mas como instrumentos de governo dos corpos e das condutas.

A crítica feminista inspirada em Foucault aprofunda esse diagnóstico. Judith Butler (2003) argumenta que o gênero é performativo: um efeito reiterado de normas que regulam gestos, práticas e modos de se apresentar no mundo. Joan Scott (2017), por sua vez, compreende o gênero como uma forma primária de significação das relações de poder. Essas leituras evidenciam que as “verdades” sobre homens e mulheres são construções históricas, continuamente reproduzidas por discursos que se apresentam como naturais.

Normalização e a naturalização das desigualdades

A força do poder moderno, segundo Foucault, reside em sua capacidade de se infiltrar nos detalhes da vida cotidiana, orientando comportamentos de maneira sutil e contínua. A norma torna possível exercer um poder que é, ao mesmo tempo, contínuo e discreto (Foucault, 2011). No caso do machismo, a normalização atua transformando desigualdades em costumes aparentemente banais, como a desvalorização do trabalho doméstico, a associação entre autoridade e masculinidade, a erotização desigual dos corpos e o silenciamento das mulheres em espaços públicos. O que parece naturalizado é, na verdade, sedimentação histórica de dispositivos de poder que ensinaram homens e mulheres a ocupar posições distintas no mundo social.

Essa dinâmica expressa o princípio foucaultiano do saber-poder, sintetizado na formulação de que não há relação de poder sem constituição correlata e sustentadora de um campo de saber (Foucault, 2018). O machismo se sustenta, assim, como um sistema que define quem fala, quem interpreta e quem decide, perpetuando diferenças sob o manto da normalidade.

Biopoder e o governo dos corpos femininos

Ao lado das disciplinas, Foucault (1988) identifica o biopoder como “tecnologia” da modernidade, voltada para a gestão da vida coletiva, da reprodução e dos corpos. Essa perspectiva é fundamental para compreender dispositivos que regulam a sexualidade feminina, administram a reprodução, definem moralidades e instituem expectativas sobre maternidade e comportamento sexual. As análises feministas, algumas derivadas das contribuições de Foucault, demonstram como padrões de beleza, moralidades corporais, regimes alimentares e normas de conduta moldam o corpo feminino de forma minuciosa, produzindo subjetividades adaptadas às exigências do patriarcado. O corpo torna-se, assim, não apenas alvo de dominação, mas palco onde se inscrevem e se reproduzem desigualdades.

Corpo, disciplinamento e subjetivação

A afirmação foucaultiana de que o corpo estaria diretamente mergulhado num campo político (Foucault, 2011) sintetiza a compreensão de que normas e práticas atravessam materialmente os corpos. O machismo se reproduz no modo como meninas aprendem a ocupar menos espaço, controlar emoções e adotar condutas de cuidado, enquanto meninos são incentivados a projetar autoridade, assertividade e autonomia. Essas pedagogias silenciosas, disseminadas por famílias, escolas, mídias e instituições, transformam classificações simbólicas em disposições incorporadas, de modo que desigualdades passam a parecer espontâneas, quando são profundamente históricas.

Disputar discursos e criar novas possibilidades de existência

Desnaturalizar o machismo requer tornar visíveis os mecanismos discursivos que sustentam desigualdades e abrir possibilidades de subjetivação alternativas. Foucault (1988) lembra que “onde há poder, há resistência”, o que significa que não há ordem social sem fissuras ou conflitos. Judith Butler (2003) amplia esse ponto ao sugerir que resistir às normas de gênero não consiste apenas em rejeitá-las, mas em reiterá-las de outro modo, deslocando performatividades e tensionando expectativas que sustentam a ordem patriarcal. Assim, a crítica não é mera denúncia, mas criação de novos modos de ser, capazes de desafiar regimes discursivos que aprisionam homens e mulheres em papéis rígidos.

À guisa de síntese

A leitura foucaultiana, enriquecida pela recepção feminista, permite compreender o machismo como um regime discursivo e biopolítico que produz subjetividades, regula corpos e estrutura práticas sociais. Suas raízes estão em sistemas de saber-poder que operam desde instituições até gestos cotidianos, naturalizando hierarquias e desigualdades. Tornar esses mecanismos visíveis é condição para superá-los. Mais do que modificar atitudes individuais, é necessário intervir nos discursos e nas tecnologias de poder que fazem a desigualdade parecer inevitável.

Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, 2017.    

Atividades

1) Texto-base

“Para Michel Foucault, discursos não são simples formas de comunicação, mas práticas sociais que produzem realidades, classificam sujeitos e regulam comportamentos. No caso das desigualdades de gênero, discursos que historicamente definiram ‘papéis masculinos’ e ‘papéis femininos’ contribuíram para naturalizar hierarquias, apresentando como inevitáveis práticas socialmente construídas.”

A partir da perspectiva foucaultiana, o machismo persiste na sociedade contemporânea porque:

  1. A) decorre de diferenças biológicas fundamentais entre homens e mulheres, que se expressam naturalmente em comportamentos distintos.
    B) resulta de disputas morais internas aos indivíduos, que precisam controlar impulsos negativos para evitar reproduzir preconceitos.
    C) é produzido e reforçado por discursos e práticas institucionais que moldam percepções, comportamentos e expectativas sociais ao longo do tempo.
    D) manifesta-se exclusivamente em comportamentos individuais conscientes, sendo pouco influenciado por normas sociais ou instituições.
    E) desaparece automaticamente quando há leis que garantem igualdade formal entre homens e mulheres.

Gabarito: C

 

2) Atividade em Grupo

Proposta de atividade

Dividam a turma em grupos de 4 a 6 estudantes.

Cada grupo deve escolher um material discursivo real, como:
– uma propaganda publicitária;
– um vídeo curto;
– um trecho de livro didático antigo;
– uma música;
– uma publicação de rede social.

O grupo deverá analisar como esse discurso produz, reforça ou questiona papéis de gênero, considerando:

Que “verdades” sobre homens e mulheres aparecem ali?

Que comportamentos são normalizados, esperados ou valorizados?

Como essas representações contribuem para manter ou tensionar relações de poder?

Que elementos podem ser compreendidos como efeitos de tecnologias de normalização (no sentido foucaultiano)?

O resultado deverá ser apresentado em formato de cartaz, slides ou podcast com até 3 minutos.

3) Atividade de Redação

Tema da redação: “O machismo como construção discursiva: como normas sociais naturalizam desigualdades de gênero no Brasil contemporâneo?”
Orientações

Produza um texto dissertativo-argumentativo que:

Explique, com suas próprias palavras, o que Michel Foucault entende por “discurso” e por que esse conceito é útil para analisar o machismo.

Mostre como normas e expectativas sociais contribuem para naturalizar diferenciações entre homens e mulheres.

Utilize exemplos concretos da realidade brasileira (mídia, escola, família, trabalho, política, redes sociais etc.).

Aponte possíveis caminhos de transformação social, considerando a relação entre poder, resistência e práticas discursivas.

Evite moralismos: concentre-se na interpretação sociológica dos fenômenos.

 

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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O blog é uma das referências na temática de ensino de Sociologia, sendo acessado também por leitores de outras áreas. Há vários materiais didáticos disponíveis: textos, provas, dinâmicas, podcasts, vídeos, dicas de filme e muito mais.

Em 2019 o blog já havia alcançado a marca de 9 milhões de acessos.

O trabalho do blog foi premiado e reconhecido na 7º Edição do Prêmio Professores do Brasil e conta atualmente com milhares de seguidores nas redes sociais e leitores assíduos.

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