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O que é Uberização do Trabalho?

O que é Uberização do Trabalho?
O que é Uberização do Trabalho?

Por Agenor Florêncio

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Agenor Florêncio
Agenor Florêncio, doutorando em Ciências Sociais pela UFRN

Contextualizando

A uberização do trabalho é resultado de uma interseção dos avanços tecnológicos e das políticas econômicas de cunho neoliberal, que procuraram remodelar as estruturas de ofertas de postos de trabalho. O fenômeno da uberização é recente, teve seu desabrochar no final de 2010, e foi com as plataformas digitais, como a UBER e mescla tecnologia de ponta, economia de plataforma (ou gig economy) além de mediar um modelo flexível de trabalho, mas com uma dinâmica exploratória de trabalho precarizado na base do processo.

Conceituando

Considerando o trabalho como uma atividade condicionante na constituição da vida humana, ou seja, ponto de partida para o processo de humanização, argumentamos que a sociedade capitalista o transformou em trabalho assalariado, alienado, fetichizado, ou seja, uma atividade reduzida a mero meio de subsistência (Antunes, 2004).

A partir do século XIX as forças produtivas desenvolvem-se cada vez mais e os meios de produção deixam de serem controlados pelos grêmios, associações e cooperativas de ofício, passando a se concentrarem cada vez mais nas mãos da burguesia. O trabalhador deixar de ser o produtor direto dos meios necessários para a sua subsistência e subordina-se a relações salariais com os capitalistas.

Tal expropriação se torna o fio condutor de todo o processo de revolução das forças produtivas do sistema capitalista. A maioria dos trabalhadores expropriados de suas terras e ferramentas não veem alternativas a não ser vender a sua força de trabalho em troca de uma relação salarial que faz com que o trabalho seja reduzido à criação do valor de troca. Valor este que apenas ganha sentido e se objetiva no dinheiro, resultante do assalariamento, da condição de escravatura assalariada de uns em detrimento de outros (Marx, 1996, p. 339-382).

A classe trabalhadora, portanto, é resultado de um processo histórico de acumulação de capital em que os indivíduos forçadamente destituídos dos seus meios de produção são empurrados à venda da sua força de trabalho e submetidos a condições precárias de trabalho.

O trabalho, essa importante atividade, submete os seres humanos ao estranhamento frente ao produto do seu próprio trabalho e frente ao próprio ato de produção da vida material, alterando todas as relações sociais e impedindo que a maioria dos seres humanos possa dar sentido as suas vidas de forma concreta (Antunes; Braga, 2009).

O coroamento da “grande indústria” analisada por Marx quando do início da sociedade industrial do século XIX resultará na sociedade do trabalho taylorista-fordista do século XX. Nesse itinerário, os trabalhadores assumiram-se como classe social e conquistaram direitos.

Direitos estes, entretanto, que passaram a serem atacados quando da crise do modelo taylorista-fordista a partir dos anos 1970. Crise como expressão da perda de dinamismo do modelo do pós-guerra – padrão de acumulação padronizada (Harvey, 1989) associada à crise do petróleo e do desinteresse americano na manutenção do arranjo [padrão ouro-dólar].

Num contexto de forte retração da produção e do consumo, intensificou-se o desemprego, possibilitando terreno fértil para a ideologia liberal. A ordem do capital passou a ser a derrogação e desregulamentação de direitos conquistados. Medidas como: a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e o sucateamento do setor produtivo estatal foram adotas para que o processo de reestruturação da produção e do trabalho mantivesse os patamares de lucro e expansão de mercado (Antunes, 1999, p. 29-31).

É nesse contexto de ataque do capital ao trabalho e, simultaneamente, a evolução das forças produtivas – Revolução Tecnológica/Informacional (Castells, 2005) que se assiste ao surgimento do padrão de acumulação flexível (Harvey, 1989). A Revolução Informacional a partir de meados de 1970 irá contribuir também para mudanças no chão de fábrica (Castells, 2005: 80-95), agora de inspiração toyotista.

Nesse novo “modelo” de caráter neoliberal e novas modalidades de trabalho se produzem nas empresas, novas e precárias identidades coletivas que contribuem consideravelmente para o discurso ideológico do trabalho flexível e meritocrático. As pessoas se sentem seduzidas pelos novos mecanismos geradores de valor em uma atividade globalizada que direciona para os indivíduos todos os insucessos e fracassos do sistema capitalista à luz da alienação do trabalho informacional (Antunes; Braga, 2019, p. 9- 18).

Nesse contexto, a busca pelo restabelecimento da acumulação produtiva e a tentativa de reposição de parte da hegemonia perdida com as lutas sociais ocorridas durante o fim da década de 1960, fizeram o capitalismo se reorganizar. Adotam-se medidas que contribuíram para o disciplinamento de grande parte dos trabalhadores e “adaptação” frente ao desmantelamento dos direitos trabalhistas.

Inicia-se, como destacamos, a mundialização da lógica econômico-produtiva da acumulação flexível. As indústrias passam de padrões hierarquizados a estratégias de reengenharia, terceirização, privatização e financeirização (Sennett, 2006). A mundialização do novo padrão de acumulação do capital adapta-se ao processo de reprodução social às novas tecnologias, recompondo o controle e gestão do trabalho, socializando para os trabalhadores, especialmente nas suas trajetórias profissionais, modos de trabalho precarizado.

A uberização é, portanto, o resultado cabal desse processo de introjeção de elementos do capitalismo neoliberal globalizado, aliado ao desenvolvimento tecnológico e a economia de plataforma uma vez que levam o discurso de flexibilidade profissional para o “colaborador” ou “parceiro” (não mais trabalhador) mas, na prática, entrega uma atividade produtiva, sem proteção trabalhista e jornadas de trabalho intermitentes.

O conceito em movimento

O conceito uberização do trabalho passou a ser utilizado em 2015 após as contribuições dos pesquisadores críticos ao capitalismo de plataforma. Nesse ano, o estadunidense Tom Slee publica seu livro “What’s Yours Is Mine: Against the Sharing Economy” no qual procurou argumentar de modo pertinente como a chamada economia do compartilhamento era um modelo repleto de contradições, pois procurava mascarar a natureza exploratória das plataformas uma vez que transfere para os trabalhadores riscos e custos colocando em definhamento a regulamentação trabalhista vigente, independente qual seja o país. Para criticar a falsa autonomia e flexibilidade trabalhista da economia de plataforma surgiu o conceito de uberização que carga consigo longa tradição teórica conforme o Quadro 2.

Quadro 2 – Contribuições para o entendimento do conceito de uberização do trabalho.

Século XIXSéculo XX O início do Século XXIA partir de 2010
Friedrich Engels publica “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (1845) e faz uma denúncia as condições precárias de trabalho e vida do operariado inglêsHarry Braverman publica “Trabalho e capital monopolista” (1974) e expõe os problemas do capitalismo no contexto pós-taylorismo e no auge do Toyotismo exemplificando a perda dos trabalhadores sobre o seu processo produtivo.Ricardo Antunes publica “Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho” (2000) com o objetivo de fazer um resgate das principais morfologias do mundo do trabalho e o movimento dialético do trabalho enquanto de um lado, é produtor da realização humana e, por outro lado, negação por levar a exploração e alienação cada vez mais intensas.Giovanni Alves publica “Trabalho e subjetividade do trabalho: O Espírito do Toyotismo na Era do Capitalismo Manipulatório” (2010) e procura mostrar que capitalismo proporciona uma degradação física, mental e subjetiva dos trabalhadores imersos, cada vez mais em condições de trabalho degradantes.
Karl Marx e Friedrich Engels publicam “O capital- volume I” (1867) e abordam o conceito de mais-valia, indispensável para compreender o processo de exploração do trabalho.David Harvey publica “A Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural” (1989) e procura abordar a acumulação flexível denunciando Redução da estabilidade empregatícia, aumento do trabalho temporário e informal, e enfraquecimento dos sindicatosRichard Sennett publica “A corrosão do caráter” (2000) e explica como as mudanças econômicas do capitalismo afetam a vida pessoal e social dos trabalhadores.Guy Standing publica

“O Precariado: A Nova Classe Perigosa” (2011) e procura entender o precariado enquanto uma nova classe social emergente caracterizada por trabalhadores ilegais ou com trabalhos instáveis ou, ainda, submetido ao trabalho das plataformas digitais.

Robert Castel publica “A Metamorfose da Questão Social: Uma Crônica do Salariado” (1995) Para denunciar os efeitos do neoliberalismo no que se refere ao desmantelamento dos direitos trabalhistas na sociedade europeia.Ruy Braga publica “A Nostalgia do Fordismo” (2003) e procura compreender as transformações do mundo do trabalho na contemporaneidade e as respostas sociais a contraofensiva neoliberal aos direitos trabalhistasTom Slee publica What’s Yours Is Mine: Against the Sharing Economy (2015) e argumenta como a economia de plataforma vem destruindo levando os trabalhadores para a uberização ao utilizar o discurso de trabalho flexível e “parceiro” entre empresa e trabalhador.

Fonte: Ver referências bibliográficas.

O conceito e seus usos

Já parou para pensar quando é a folga dos entregadores que levam a comida, pedida no aplicativo, até a sua casa? Já percebeu que a avaliação que você faz do serviço dos motoristas de aplicativo determina a condição de trabalho que ele terá nas próximas entregas? A sugestão é que você converse com algum trabalhador das plataformas para sentir o que eles pensam sobre os seguintes temas: tempo de lazer, direitos trabalhistas, remunerações e perspectivas para o futuro de longo prazo.

Será que as condições de trabalho dos entregadores de aplicativo são semelhantes as condições de trabalho do século XIX? Vejamos algumas afinidades: jornada intermitente, sem direitos trabalhistas, condições degradantes de trabalho; pressão para trabalhar a partir de subenumerações e sem tempo para o lazer. Que coisa! A tecnologia vende a ideia de progresso, mas mantém na sua base condições análogas a primeira etapa da revolução industrial!

 

Referências

ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade do trabalho: O Espírito do Toyotismo na Era do Capitalismo Manipulatório. São Paulo: Boi tempo Editoral, 2010

ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy (Org.). Infoproletários: Degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boi tempo Editoral, 2009.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 10. Ed. São Paulo: Unicamp, 2005.

ANTUNES, Ricardo. (Org.). A Dialética do Trabalho: Escritos de Mark e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boi tempo Editorial, 1999.

BARRETO, Júnior. Linha de Frente: os bastidores do telemarketing. São Paulo, Leia Sempre, 2007.

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

BRAGA, Ruy. A Nostalgia do Fordismo: Modernização e crise na teoria da sociedade salarial. São Paulo, Xamã, 2003.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. Rio de Janeiro: LTR, 1987

CASTEL, Roberto. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 8ª. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Atlas, 1989.

HELOANI, Roberto. Assédio Moral- um ensaio sobre a exploração da dignidade do trabalho. FGV, 2004.

LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza e NAVARRO, Vera Lucia (Orgs.), O Avesso do Trabalho III. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

SLEE, Tom. (2016). What’s Yours Is Mine: Against the Sharing Economy. 10.2307/j.ctt1bkm65n.

STANDING, Guy. O Precariado: A Nova Classe Perigosa. Traduzido por Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2015

 

 

Dicas de leitura

Cartilha do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2ª Região): o trabalho por plataformas digitais. Domínio público disponível para acesso em:

https://ww2.trt2.jus.br/fileadmin/user_upload/20210910_cartilha_trabalho_app_MPT_online.pdf

Cartilha do Tribunal Regional do Trabalho (TRT- 19ª Região): Delivery sim! Superexploração não! Domínio público disponível para acesso em: https://site.trt19.jus.br/sites/default/files/2022-04/22620.pdf

HUGO, Victor: Os miseráveis (versão em quadrinhos). Domínio público disponível para acesso em:

https://www.lpm.com.br/pnld/2021/arquivos/livros/MidiaArquivo_900728.pdf?srsltid=AfmBOoo0lOz9uyaDANHHMqWHIOSvFqLHt5KSQ3eFFlOu1aVaeFzzy_eh

 

Dicas de filmes

EU, Daniel Blake. Direção de Ken Loach. Produção de Rebecca O’Brien. Londres (Inglaterra): Sofa Digital, 2018. (140 min.), P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Lgt4nDGM50Y. Acesso em: 01 dez. 2024.

‘GIG – A Uberização do Trabalho’. Direção de Carlos Juliano. Produção de Caue Angeli. Realização de Maurício Monteiro Filho. São Paulo: Repórter Brasil, 2019. (59 min.), P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cMPnAfrMLCk. Acesso em: 01 fev. 2025.

 

Dicas de músicas

SAMBA DO OPERÁRIO. Direção de Cartola (Angenor de Oliveira). Produção de Nelson Sargento. Música: Samba do Operário. Rio de Janeiro, 1968. (3 min.), P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p2ex7kVNQSg. Acesso em: 05 jan. 2025.

EU DESPEDI O MEU PATRÃO. Direção de Zeca Baleiro. Produção de Pet Shop Mundo Cão. Realização de Mza Music. São Paulo, 2008 (4 min). P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CLhjvJkjdho. Acesso em: 01 fev. 2025.

 

Dica de atividade

Atividade 01

Leia o poema “perguntas de um trabalhador letrado” (Bertold Brecht) e compare com a letra da música “samba do operário” do Cartola para responder o que se pede:

  1. Quais relações podemos estabelecer entre o poema de Brecht, a música do cartola e a vida dos trabalhadores na atualidade?
  2. É possível pensar a uberização do trabalho no poema? Aponte e comente possíveis afinidades
  3. É possível pensar a uberização do trabalho na letra da música? Aponte e comente possíveis afinidades
Questão no Padrão ENEM

Texto I
Trecho de “Samba do Operário” (Cartola)
“Se o operário soubesse reconhecer o valor que tem seu dia! Por certo que vallheria duas vezes mais o seu salário”

 

Texto II
Contexto sobre a Uberização do Trabalho

A uberização é um fenômeno contemporâneo que se caracteriza pela precarização das relações de trabalho, marcada pela flexibilização, ausência de vínculos empregatícios e controle algorítmico. Nesse modelo, os trabalhadores são tratados como “parceiros” ou “autônomos”, mas na prática, estão subordinados às plataformas digitais, que determinam suas rotinas, ganhos e condições de trabalho.

 

Com base nos textos e em seus conhecimentos, assinale a alternativa que melhor relaciona o trecho da música de Cartola com o fenômeno da uberização:

  1. A) O trecho da música reflete a autonomia do trabalhador, que, na uberização, tem liberdade para escolher seus horários e rotas, sem interferência das plataformas digitais.
    B)A repetição dos versos na música sugere a alienação do trabalhador, que, na uberização, é submetido a um ciclo de exploração em que o trabalho controla sua vida, assim como a plataforma controla o trabalhador.
    C) A música de Cartola celebra a relação harmoniosa entre o operário e o produto de seu trabalho, o que se assemelha à valorização do trabalhador autônomo no contexto da uberização.
    D) O trecho da música evidencia a independência do operário, que, assim como os motoristas de aplicativo, não depende de intermediários para realizar seu trabalho.
    E) A música critica a falta de reconhecimento do trabalho operário, problema que foi superado pela uberização, que garante direitos trabalhistas e proteção social aos motoristas.

 

 

 

Como citar este texto:

FLORÊNCIO, Agenor. O que é Uberização do Trabalho? Blog Café com Sociologia. Mar. 2025. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/o-que-e-uberizacao-do-trabalho/

 

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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