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  • Agricultura Brasileira: alguns apontamentos

    Introdução: a agricultura brasileira no centro das disputas sociais e ideológicas

    A agricultura brasileira, ao longo de sua história, esteve profundamente entrelaçada aos processos de modernização conservadora, à concentração fundiária e aos interesses do capital. Desde a década de 1960, com o avanço das políticas de modernização impulsionadas pelo Estado, o campo tornou-se palco de intensos conflitos de classe, disputas ideológicas e interesses antagônicos entre os modelos de agricultura patronal, familiar e empresarial.

    No bojo dessas contradições, a agricultura brasileira não pode ser compreendida apenas como setor produtivo, mas como um espaço simbólico e político em disputa. Segundo Marques (1996), a ascensão do agribusiness como projeto hegemônico não se dá apenas por razões econômicas, mas por um processo ativo de construção ideológica que envolve entidades representativas como a Associação Brasileira de Agribusiness (ABAG). Essa entidade, conforme o autor, ressignifica conceitos como “Segurança Alimentar” à luz dos interesses empresariais, contribuindo para consolidar a hegemonia do setor no debate público.

    A análise sociológica da agricultura brasileira, portanto, demanda uma abordagem crítica, capaz de compreender os embates entre os modelos de desenvolvimento agrícola, os projetos de sociedade em jogo e os atores sociais que os sustentam. É nesse contexto que este artigo busca investigar as implicações sociais, econômicas e políticas da agricultura brasileira contemporânea, em especial a partir da atuação da ABAG como agente de produção ideológica, como demonstrado por Marques (1996).

    Agricultura e hegemonia: a emergência do agribusiness

    O conceito de agribusiness surge nos Estados Unidos, sendo posteriormente apropriado no Brasil para designar o conjunto das atividades que envolvem a produção, industrialização e comercialização de produtos agropecuários. No entanto, como afirma Marques (1996), o uso dessa categoria no Brasil se dá dentro de um contexto de profunda concentração de poder, marcada pela modernização excludente do campo promovida pelo Estado pós-1964.

    Essa modernização não teve como objetivo democratizar o acesso à terra ou melhorar as condições de vida da população rural. Ao contrário, visou inserir o setor agrícola na lógica do capital monopolista, promovendo a integração subordinada do Brasil ao mercado internacional. De acordo com Ianni (1986), a agricultura brasileira passou a funcionar como um apêndice do sistema agroalimentar global, exportando commodities e importando tecnologias e insumos.

    A ABAG surge nesse contexto como uma articulação político-ideológica dos interesses do capital agroindustrial. Seu papel, conforme analisado por Marques (1996), ultrapassa a simples representação setorial e adentra o campo da disputa ideológica, buscando impor uma visão sistêmica e empresarial da agricultura, na qual o Estado deve assumir um papel subsidiário, voltado à infraestrutura, financiamento e à pesquisa voltada aos interesses privados.

    Ao redefinir a “Segurança Alimentar” como um problema de oferta de alimentos em larga escala, a ABAG desloca o debate da questão do acesso e da desigualdade para a eficiência e a produtividade. Essa operação conceitual, que Marques chama de “ressignificação”, revela a intencionalidade ideológica de moldar políticas públicas conforme os interesses do grande capital agrícola.

    Segurança alimentar: uma noção em disputa

    O conceito de segurança alimentar é, como observa Marques (1996), uma verdadeira “nebulosa de significados”. A pluralidade de sentidos atribuídos ao termo reflete as distintas visões de mundo e os interesses conflitantes entre os diversos atores sociais. Enquanto movimentos populares e setores da sociedade civil organizada defendem uma concepção centrada no direito humano à alimentação adequada, a ABAG promove uma leitura funcionalista e mercadológica da segurança alimentar.

    Essa disputa conceitual, situada no campo da produção ideológica, revela-se fundamental para compreender os rumos das políticas públicas brasileiras. Para a ABAG, a segurança alimentar está diretamente ligada à eficiência produtiva, à competitividade internacional e ao livre mercado. A fome, nesse modelo, é tratada como consequência da baixa produtividade ou da escassez de oferta, e não como uma expressão da desigualdade social ou da concentração fundiária.

    Essa visão é profundamente criticada por autores como Maluf (2003), que ressalta a necessidade de articular a segurança alimentar ao conceito de soberania alimentar, entendido como o direito dos povos de definir suas próprias políticas agrícolas e alimentares. Em contraste, a ABAG opera para consolidar uma noção de segurança alimentar subordinada à lógica do agronegócio, afastando o debate de questões estruturais como reforma agrária, acesso à terra e justiça social.

    Marques (1996) evidencia que essa ressignificação do conceito de segurança alimentar é estratégica. Ao redefini-lo em termos de produção e mercado, a ABAG se apresenta como protagonista da solução da fome no Brasil, mesmo sendo um dos principais vetores de concentração de renda, de exclusão do campesinato e de degradação ambiental.

    O papel do Estado e a lógica neoliberal

    A consolidação do agronegócio brasileiro está diretamente vinculada ao papel do Estado, especialmente no período pós-1964. Como aponta Marques (1996), a intervenção estatal foi decisiva para criar as condições materiais e institucionais necessárias à modernização da agricultura. Essa modernização, no entanto, deu-se de forma seletiva e excludente, beneficiando sobretudo os grandes produtores e as corporações multinacionais do setor agroquímico e alimentício.

    Com a ascensão do neoliberalismo nas décadas de 1980 e 1990, o papel do Estado foi reconfigurado. A retórica da “eficiência”, da “redução do gasto público” e da “governabilidade” passou a justificar a retração de políticas públicas voltadas à agricultura familiar e à reforma agrária, ao mesmo tempo em que se ampliavam os subsídios e incentivos ao agronegócio.

    Segundo Oliveira (1994), o neoliberalismo no Brasil operou como um “projeto de reprivatização da relação social de produção”, deslocando o Estado da função de garantidor de direitos sociais para o papel de garantidor dos interesses do capital. Nesse cenário, a ABAG emerge como força hegemônica, capaz de pautar o Estado conforme suas diretrizes ideológicas.

    A contradição torna-se evidente: o discurso neoliberal apregoa a mínima intervenção estatal, mas o agronegócio depende estruturalmente de financiamento público, de infraestrutura subsidiada e de políticas cambiais favoráveis. Como denuncia Marques (1996), o agribusiness reivindica liberdade de mercado apenas para os pequenos produtores; para si, exige o aparato estatal.

    As consequências sociais e ambientais do agronegócio

    O modelo de agricultura impulsionado pelo agronegócio e defendido pela ABAG traz consigo implicações profundas para o meio rural brasileiro. Conforme analisa Marques (1996), a modernização agrícola provocou a expulsão de milhões de trabalhadores do campo, a substituição da diversidade agroecológica por monoculturas e a intensificação do uso de agrotóxicos e insumos industriais.

    A desigualdade fundiária, marca histórica do Brasil, foi agravada pelo modelo de desenvolvimento promovido pelo agribusiness. Dados do Censo Agropecuário confirmam que uma minoria de propriedades concentra a maioria das terras, enquanto a agricultura familiar, responsável por grande parte da produção de alimentos consumidos internamente, enfrenta dificuldades estruturais para se manter.

    Autores como Delgado (2012) e Martins (2009) apontam que o agronegócio, ao priorizar a exportação de commodities, desarticula os circuitos locais de produção e abastecimento, fragiliza os territórios rurais e compromete a segurança alimentar em nível nacional. O discurso da modernização esconde a violência simbólica e física contra populações indígenas, quilombolas e camponesas, frequentemente vítimas de grilagem, desmatamento e criminalização de suas lutas.

    No plano ambiental, os impactos são alarmantes. A expansão da fronteira agrícola sobre biomas como o Cerrado e a Amazônia compromete a biodiversidade e contribui para a crise climática global. O uso intensivo de venenos agrícolas torna o Brasil um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos, com graves consequências para a saúde pública.

    Agricultura familiar e a construção de alternativas

    Em oposição ao modelo concentrador e excludente do agronegócio, a agricultura familiar emerge como alternativa socioprodutiva capaz de combinar produção de alimentos, preservação ambiental e fortalecimento das comunidades rurais. Diferente do agronegócio, cuja lógica se ancora na exportação e na financeirização da terra, a agricultura familiar está mais vinculada ao abastecimento local e à soberania alimentar.

    Como aponta Abramovay (1992), a agricultura familiar no Brasil não deve ser vista como uma forma arcaica de produção, mas como um modelo com racionalidade própria, que combina trabalho familiar, redes de cooperação e produção diversificada. Esse modelo é especialmente relevante para a segurança alimentar, pois é responsável por mais de 70% dos alimentos que compõem a dieta básica dos brasileiros, conforme dados do Censo Agropecuário de 2017.

    Marques (1996), embora tenha centrado sua análise na atuação da ABAG, reconhece que a luta pela ressignificação da segurança alimentar passa necessariamente pela valorização da agricultura familiar. No entanto, ele também denuncia que as políticas públicas voltadas a esse setor são frequentemente frágeis, instáveis e insuficientes diante da força política e econômica do agronegócio.

    A construção de alternativas ao agronegócio envolve, portanto, uma disputa não apenas técnica ou econômica, mas profundamente ideológica. Implica retomar o debate sobre reforma agrária, democratização da terra, agroecologia e fortalecimento das organizações populares do campo. Nessa perspectiva, a agricultura familiar não é apenas uma forma de produção, mas uma proposta de sociedade baseada em valores como solidariedade, justiça social e sustentabilidade.

    O campo de disputa ideológica: a produção de consenso sobre a agricultura

    A força do agronegócio no Brasil não se dá apenas no plano material, mas também no simbólico. Conforme argumenta Marques (1996), a ABAG atua de forma sistemática para produzir consensos sociais sobre a agricultura brasileira, promovendo a imagem do “agro que alimenta o mundo” e do “Brasil celeiro do planeta”. Essas representações ocultam as contradições sociais, os conflitos fundiários e os impactos ambientais associados ao modelo dominante.

    A atuação da ABAG no campo da produção ideológica é estratégica: ela busca legitimar um projeto de sociedade, apresentando-o como técnico, neutro e eficiente. Entretanto, como bem alerta Bourdieu (1997), não há neutralidade nas disputas simbólicas. Todo discurso carrega consigo uma visão de mundo, um projeto de futuro e um conjunto de interesses.

    Marques (1996) mostra que a segurança alimentar, longe de ser um conceito neutro, tornou-se um território de disputa entre diferentes projetos sociais. De um lado, o agronegócio propõe uma segurança alimentar baseada na abundância de produtos e no livre mercado. De outro, movimentos sociais e setores críticos da academia defendem uma segurança alimentar ancorada na soberania, no direito à terra e na participação popular.

    Essa disputa é central para o futuro da agricultura brasileira. A hegemonia do agronegócio só se mantém porque consegue mobilizar uma rede de instituições, discursos e práticas que invisibilizam alternativas e naturalizam a exclusão. Desconstruir esse consenso é um passo fundamental para a construção de um modelo agrícola mais justo e sustentável.

    Considerações finais: para onde caminha a agricultura brasileira?

    A análise sociológica da agricultura brasileira, especialmente à luz da dissertação de Paulo Eduardo Moruzzi Marques (1996), revela que estamos diante de um campo em constante disputa. A ascensão do agronegócio como força hegemônica não é apenas fruto de sua capacidade produtiva, mas da articulação ideológica promovida por entidades como a ABAG, que reconfiguram conceitos e moldam políticas públicas segundo os interesses do capital.

    O conceito de segurança alimentar, transformado em bandeira do agronegócio, perde seu conteúdo social e emancipador quando desvinculado da questão do acesso, da soberania e da justiça agrária. Como afirmam autores como Maluf (2003) e Delgado (2012), sem enfrentar a desigualdade estrutural do campo brasileiro, qualquer política de combate à fome será incompleta e paliativa.

    A agricultura brasileira precisa ser resgatada como um espaço de cidadania, de diversidade e de vida. Isso implica romper com a lógica concentradora do agronegócio e investir em políticas públicas robustas de apoio à agricultura familiar, à agroecologia e à reforma agrária. Mais do que produzir alimentos, é preciso garantir o direito de todas e todos de comê-los.

    Como alerta Demo (1994), a construção do conhecimento social precisa estar comprometida com a transformação da realidade. Conhecer a agricultura brasileira é, portanto, um exercício não apenas de análise, mas de posicionamento ético e político. Nesse sentido, a sociologia cumpre um papel fundamental ao iluminar as contradições do presente e abrir caminhos para o futuro.

    Referências bibliográficas

    ABAG. Segurança alimentar: uma abordagem de agribusiness. São Paulo: Edições ABAG, 1993.

    ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Hucitec, 1992.

    BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

    DELGADO, Guilherme Costa. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: UFRGS, 2012.

    DEMO, Pedro. Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.

    IANNI, Octavio. A ditadura do capital financeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.

    MALUF, Renato Sérgio. Segurança alimentar e nutricional: conceitos e políticas públicas. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 48, 2003.

    MARQUES, Paulo Eduardo Moruzzi. Segurança Alimentar: A intervenção da Associação Brasileira de Agribusiness no campo de disputa e produção ideológica. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 1996.

  • Artigo: o que é e para que serve

    Artigo, o que é? A produção textual científica é um dos pilares fundamentais do conhecimento moderno, especialmente no contexto das Ciências Sociais. Entre os gêneros mais utilizados para expressar, analisar e divulgar esse conhecimento está o artigo. Mas afinal, artigo: o que é? A pergunta aparentemente simples carrega uma complexidade conceitual e prática que demanda uma reflexão cuidadosa sobre a função social, os critérios acadêmicos e os processos históricos que conferiram ao artigo um lugar de destaque na produção intelectual contemporânea.

    O artigo, como gênero textual, transcende o mero registro de ideias. Ele é, antes de tudo, uma forma de comunicação entre sujeitos sociais, historicamente situados, que buscam construir consensos, provocar debates ou revelar contradições. É nesse cenário que o presente texto se propõe a investigar profundamente o que é um artigo, tomando como referência a tradição crítica das Ciências Sociais. A partir desse campo, compreende-se que toda produção textual está inserida em um campo de disputas simbólicas, políticas e epistêmicas (Bourdieu, 1994).

    Ao longo deste texto, exploraremos os elementos que constituem o artigo científico, os objetivos que ele busca alcançar, sua função social e as formas pelas quais ele contribui para a construção de conhecimento. Buscaremos dialogar com autores como Bourdieu, Giddens, Santos, Minayo, entre outros, para compreender não apenas a estrutura formal do artigo, mas também sua inserção na lógica das práticas científicas e sociais. Trataremos também da distinção entre tipos de artigo (científico, de opinião, jornalístico), bem como dos critérios de validade e legitimidade reconhecidos pelas instituições acadêmicas e científicas.


    O artigo como forma de expressão científica

    Na tradição das Ciências Sociais, o artigo ocupa uma posição de destaque como mecanismo de socialização do saber. Não se trata apenas de um exercício de escrita, mas de um artefato social que condensa, organiza e apresenta uma forma de ver e interpretar o mundo. Conforme Bachelard (2004), o conhecimento científico não é espontâneo, mas construído socialmente. O artigo, portanto, se configura como um dos instrumentos privilegiados dessa construção.

    O artigo científico é caracterizado por sua capacidade de articular problemas, hipóteses, métodos e conclusões de forma sistemática. Sua função não é apenas apresentar resultados, mas construir argumentos, estabelecer vínculos com teorias e demonstrar domínio sobre determinado campo do saber. Minayo (2009) reforça essa ideia ao destacar que o artigo não é apenas um “resumo” de uma pesquisa, mas um momento de síntese e de diálogo com a comunidade científica.

    A escrita do artigo demanda, portanto, competências específicas, que vão desde a capacidade analítica até a adequação a normas formais. Ao mesmo tempo, é importante compreender que essas exigências não são neutras, mas refletem padrões hegemônicos de produção e validação do conhecimento (Santos, 2006). Nesse sentido, o artigo também pode ser visto como parte de um sistema que reproduz desigualdades epistêmicas entre centros e periferias do saber.


    Tipos de artigo: científico, de opinião e jornalístico

    Embora o termo “artigo” possa se referir a diferentes tipos de textos, é necessário distinguir entre suas variações mais comuns. No campo acadêmico, o artigo científico é aquele que resulta de uma pesquisa empírica, teórica ou metodológica, seguindo critérios rigorosos de validação. Já o artigo de opinião, mais comum em espaços midiáticos, tem como característica principal a argumentação subjetiva sobre um tema de interesse público. Por fim, o artigo jornalístico, ainda que baseado em fatos, busca transmitir informações de forma acessível e rápida, sem o mesmo grau de profundidade teórica.

    Cada tipo de artigo cumpre uma função social distinta. O artigo científico busca validar e disseminar descobertas dentro da comunidade acadêmica. O de opinião tenta influenciar o debate público, enquanto o jornalístico visa informar amplamente. Essa distinção é fundamental, pois cada tipo demanda formas específicas de escrita, argumentação e validação.

    Segundo Severino (2007), o artigo científico é uma peça-chave no processo de produção e circulação do conhecimento, sendo muitas vezes o primeiro contato que um pesquisador tem com a atividade de divulgação científica. Já o artigo de opinião representa uma forma de intervenção no debate público, revelando a posição do autor sobre temas controversos ou de relevância social.


    A estrutura do artigo científico

    A estrutura do artigo científico é organizada para garantir clareza, objetividade e rigor metodológico. Embora possa variar conforme as áreas do conhecimento, sua organização básica costuma seguir um modelo consagrado: título, resumo, palavras-chave, introdução, referencial teórico, metodologia, resultados e discussão, considerações finais e referências.

    A introdução é o espaço de apresentação do problema de pesquisa e da justificativa. Nela, o autor precisa demonstrar por que seu trabalho é relevante e como ele se insere no debate existente. Segundo Lakatos e Marconi (2003), a introdução deve ser precisa, clara e informativa, estabelecendo os objetivos e a hipótese do trabalho.

    O referencial teórico oferece o embasamento conceitual necessário para sustentar a análise. É aqui que se estabelecem os diálogos com autores e teorias que orientam a interpretação dos dados. A metodologia, por sua vez, detalha os caminhos seguidos para a produção do conhecimento, tornando o processo reprodutível e passível de avaliação.

    A seção de resultados e discussão apresenta as evidências empíricas e sua interpretação à luz do referencial adotado. Por fim, as considerações finais retomam os objetivos do artigo, destacam os principais achados e propõem desdobramentos para pesquisas futuras.


    A função social do artigo na ciência e na sociedade

    Mais do que um instrumento técnico, o artigo tem uma função social crucial: ele participa da produção simbólica do mundo. Como ressalta Giddens (2005), o conhecimento é um elemento constitutivo da vida social, e a ciência moderna exerce papel fundamental na organização das instituições contemporâneas. Ao escrever um artigo, o autor não apenas comunica resultados, mas participa ativamente da constituição do campo científico e das disputas que o atravessam.

    A produção de artigos também está inserida em lógicas institucionais de avaliação e financiamento da ciência. No Brasil, a CAPES e o CNPq, por exemplo, utilizam a publicação de artigos em periódicos qualificados como critério para concessão de bolsas e fomento. Isso gera uma pressão produtivista que pode comprometer a qualidade e a originalidade dos trabalhos, como observa Sguissardi (2009).

    Entretanto, não se deve perder de vista que o artigo pode ser um espaço de resistência e de afirmação de epistemologias outras. Ao tematizar questões sociais urgentes e ao dialogar com saberes populares ou subalternizados, o artigo pode contribuir para a democratização do conhecimento. Essa é uma das propostas da ecologia de saberes defendida por Boaventura de Sousa Santos (2006), que propõe a valorização da diversidade epistemológica.

    A escrita do artigo como prática formativa

    A produção de um artigo não é apenas resultado de uma atividade intelectual já consolidada; ela é, também, um exercício de formação contínua. Para estudantes, pesquisadores iniciantes e docentes, o processo de escrever um artigo exige reflexão, pesquisa, leitura crítica e organização do pensamento. Trata-se, portanto, de uma prática formativa que articula teoria e prática, saber e linguagem.

    Segundo Paulo Freire (1996), o ato de escrever é um ato político, uma forma de se posicionar no mundo e dialogar com os outros. Ao escrever um artigo, o autor se engaja em uma prática discursiva que implica responsabilidade com o conhecimento que produz e com os sujeitos aos quais se dirige. A linguagem acadêmica, por mais técnica que seja, não deve se afastar do compromisso ético com a clareza, a acessibilidade e a transformação social.

    Nesse sentido, a escrita científica não pode ser reduzida a um ritual de validação institucional. Ela deve ser, antes de tudo, uma prática de emancipação, na medida em que possibilita ao autor compreender melhor o mundo social e intervir sobre ele com maior consciência. Como destaca Bourdieu (1994), o campo científico é um espaço de lutas simbólicas, onde diferentes posições competem por legitimidade. Produzir um artigo é, portanto, tomar parte nessas disputas, com suas implicações epistemológicas, políticas e sociais.


    O artigo como instrumento de democratização do saber

    Uma das potencialidades mais significativas do artigo está na sua capacidade de contribuir para a democratização do saber. Em contextos como o brasileiro, marcados por profundas desigualdades de acesso ao conhecimento, o artigo pode ser uma ferramenta poderosa de divulgação científica, especialmente quando publicado em revistas de acesso aberto.

    A popularização da ciência é um tema que tem ganhado destaque nos últimos anos. A ideia de que o conhecimento científico deve circular apenas entre especialistas tem sido contestada por aqueles que defendem uma ciência mais aberta, participativa e comprometida com os problemas sociais. Nesse contexto, o artigo científico pode assumir uma nova função: não apenas comunicar a outros pesquisadores, mas também dialogar com a sociedade civil organizada, movimentos sociais e gestores públicos.

    De acordo com Leite (2014), a ciência precisa ser compreendida como um bem público, e não como patrimônio exclusivo das universidades. Isso significa repensar a linguagem dos artigos, suas formas de distribuição e os públicos aos quais se destinam. A prática da ciência cidadã, por exemplo, tem demonstrado que é possível envolver comunidades locais na produção de dados e na formulação de problemas de pesquisa, quebrando a lógica verticalizada entre pesquisador e “objeto” de estudo.


    Ética e responsabilidade na produção de artigos

    Escrever um artigo não é apenas um exercício intelectual, mas também um ato ético. O autor é responsável pelo conteúdo que apresenta, pelas fontes que utiliza, pelas interpretações que propõe e pelos efeitos que seu texto pode produzir. Por isso, a ética na pesquisa e na redação de artigos é um tema que precisa ser enfrentado com seriedade.

    No Brasil, o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) estabelece diretrizes claras para a realização de pesquisas com seres humanos. Além disso, instituições como a Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) orientam boas práticas editoriais, incluindo critérios de autoria, plágio, revisão por pares e conflitos de interesse.

    É fundamental que o artigo reflita um compromisso com a integridade científica. Isso implica não apenas evitar fraudes e plágios, mas também adotar uma postura transparente quanto aos limites da pesquisa, às contradições dos dados e às possibilidades de interpretação. Como afirma Demo (2000), fazer ciência é, acima de tudo, um exercício de argumentação crítica e responsabilidade social.


    Desafios contemporâneos da produção de artigos

    Apesar de sua importância, a produção de artigos enfrenta uma série de desafios no contexto contemporâneo. Um dos principais é o produtivismo acadêmico, alimentado por políticas de avaliação baseadas na quantidade de publicações. Isso tem levado muitos pesquisadores a adotar estratégias de “fatiamento” de pesquisas, submissão simultânea a vários periódicos e priorização de temas “vendáveis” em detrimento da originalidade e relevância social.

    Outro desafio diz respeito à concentração editorial e à desigualdade de acesso. A maior parte das revistas de prestígio mundial cobra taxas elevadas para publicação e para acesso ao conteúdo, o que marginaliza pesquisadores do Sul Global e reforça a lógica da ciência como mercadoria. Santos (2006) denuncia esse modelo como parte de uma “economia política do conhecimento” que exclui saberes alternativos e consolida hierarquias epistêmicas.

    Além disso, há uma tensão crescente entre a complexidade dos temas sociais e as exigências formais da escrita acadêmica. Muitos temas fundamentais – como racismo, gênero, desigualdade, meio ambiente – demandam abordagens interdisciplinares, metodologias participativas e linguagens sensíveis à pluralidade de sujeitos. O desafio é conciliar esses imperativos com os padrões rígidos das revistas científicas tradicionais.


    Considerações finais: escrever como forma de transformação

    Concluímos este texto reafirmando que o artigo é mais do que um gênero textual: ele é uma prática social complexa, situada histórica e institucionalmente, carregada de intencionalidade, disputa e poder. Escrever um artigo é, ao mesmo tempo, inserir-se em uma tradição acadêmica e contribuir para a renovação do conhecimento.

    Nas Ciências Sociais, o artigo é uma das formas privilegiadas de intervir no mundo. Através dele, é possível denunciar injustiças, propor alternativas, sistematizar experiências e construir pontes entre saberes distintos. É também uma maneira de formar novos sujeitos críticos, capazes de interpretar e transformar a realidade que os cerca.

    Diante disso, cabe a todos que escrevem – estudantes, professores, pesquisadores – repensar continuamente os sentidos, os alcances e os limites daquilo que produzem. Mais do que cumprir exigências institucionais, é necessário afirmar uma escrita comprometida com a verdade, com a justiça e com a emancipação humana. artigo o que é


    Referências bibliográficas

    • BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

    • BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1994.

    • DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.

    • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

    • GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.

    • LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

    • LEITE, Denise. Universidade e democracia: por uma ecologia dos saberes. Porto Alegre: UFRGS, 2014.

    • MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2009.

    • SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2006.

    • SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

    • SGUISSARDI, Valdemar. Universidade, produtividade e avaliação. Campinas: Autores Associados, 2009.

  • Filme sobre Síndrome de Tourette

    Filme sobre Síndrome de Tourette “Primeiro da classe”. “O Primeiro da Classe” (Front of the Class, 2008) é um filme biográfico que retrata a vida de Brad Cohen, um homem que, desde a infância, convive com a Síndrome de Tourette. Dirigido por Peter Werner e estrelado por James Wolk no papel de Brad, o filme é baseado no livro autobiográfico “Front of the Class: How Tourette Syndrome Made Me the Teacher I Never Had”, coescrito por Brad Cohen e Lisa Wysocky.

    O que é o transtorno?

    A Síndrome de Tourette é um transtorno neurológico do desenvolvimento que se manifesta na infância ou adolescência, caracterizado por múltiplos tiques motores e pelo menos um tique vocal. Esses tiques são movimentos ou sons involuntários, repetitivos e rápidos, como piscar, tossir ou emitir sons, que podem variar em frequência e intensidade ao longo do tempo.

    Embora a causa exata da Síndrome de Tourette não seja completamente compreendida, acredita-se que envolva uma combinação de fatores genéticos e ambientais. O diagnóstico é clínico, baseado na observação dos sintomas, e geralmente não requer exames laboratoriais. O tratamento pode incluir terapias comportamentais e, em alguns casos, medicação para controlar os tiques e melhorar a qualidade de vida do indivíduo.

     

    Desde os seis anos, Brad manifesta tiques motores e vocais característicos da Síndrome de Tourette, o que o torna alvo de incompreensão por parte de professores, colegas e até mesmo de seu pai. Determinada a entender a condição do filho, sua mãe pesquisa e descobre o diagnóstico correto, oferecendo-lhe o apoio necessário. Apesar dos desafios, Brad decide seguir seu sonho de se tornar professor, enfrentando inúmeras rejeições em entrevistas de emprego até ser finalmente contratado por uma escola que reconhece seu potencial.

    Temas Abordados

    O filme destaca a importância da perseverança e da resiliência diante das adversidades. A trajetória de Brad evidencia como o apoio familiar e a busca por compreensão são fundamentais para enfrentar preconceitos e alcançar objetivos. Além disso, “O Primeiro da Classe” ressalta a necessidade de inclusão e aceitação das diferenças no ambiente educacional e na sociedade como um todo.

    Recepção e Impacto

    A atuação de James Wolk como Brad Cohen foi amplamente elogiada por sua sensibilidade e autenticidade. O filme recebeu críticas positivas por sua abordagem honesta e inspiradora sobre a vida com a Síndrome de Tourette, servindo como uma ferramenta educativa para aumentar a conscientização sobre o transtorno.

    Outros filmes com a mesma temática:

    🎬 O Primeiro da Classe (Front of the Class, 2008)

    Baseado na autobiografia de Brad Cohen, o filme narra a trajetória de um jovem com Tourette que enfrenta preconceitos desde a infância para realizar seu sonho de se tornar professor. A obra destaca a importância da aceitação e da perseverança diante das adversidades.

    🎷 O Código do Amor (The Tic Code, 1999)

    Este drama acompanha Miles, um prodígio do piano de 11 anos com Tourette, que desenvolve uma amizade com um saxofonista também afetado pela síndrome. A música serve como elo entre os personagens, explorando temas de aceitação e expressão artística.

    🚗 Vicente Quer Ver o Mar (Vincent Will Meer, 2010)

    O filme alemão segue Vicente, um jovem com Tourette, que foge de uma instituição psiquiátrica com dois amigos para realizar o último desejo de sua mãe: ver o mar. A jornada aborda a amizade, a liberdade e a superação de limitações impostas pela sociedade.

    🎭 A Menina no País das Maravilhas (Phoebe in Wonderland, 2008)

    Phoebe é uma garota com Tourette que encontra refúgio no mundo do teatro escolar. A obra explora como a arte pode ser uma válvula de escape e uma forma de lidar com os desafios da condição.

    🎥 Toc Toc (2017)

    Nesta comédia espanhola, pacientes com diferentes transtornos, incluindo a Síndrome de Tourette, aguardam por seu psiquiatra. O filme trata com humor e empatia as peculiaridades de cada personagem, promovendo a compreensão e a aceitação.

    Esses filmes oferecem perspectivas variadas sobre a vida com a Síndrome de Tourette, contribuindo para a conscientização e o entendimento da condição.

  • Filme sobre Israel e Palestina

    Filme sobre Israel e Palestina “Sem chão” dá uma dimensão do conflito. Em um cenário cinematográfico frequentemente dominado por narrativas distantes e análises geopolíticas abstratas, o documentário Sem Chão (No Other Land, 2024) emerge como uma obra visceral que rompe com a neutralidade e mergulha nas entranhas do conflito israelo-palestino. Dirigido por um coletivo formado por Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor, o filme é fruto de uma colaboração inédita entre palestinos e israelenses, unidos não apenas por laços profissionais, mas por uma causa comum: documentar e denunciar a destruição sistemática da comunidade de Masafer Yatta, na Cisjordânia ocupada.

    A gênese do projeto remonta a 2019, quando Basel Adra, ativista palestino nascido e criado em Masafer Yatta, e Yuval Abraham, jornalista israelense fluente em árabe, uniram forças para registrar as demolições e expulsões promovidas pelo exército israelense. Ao longo de quatro anos, com recursos limitados e enfrentando constantes ameaças, eles construíram um retrato íntimo e devastador da realidade vivida pelos palestinos na região. A produção contou ainda com a participação de Hamdan Ballal e Rachel Szor, que contribuíram para a direção e fotografia, consolidando a obra como um testemunho coletivo de resistência e solidariedade.

    O filme transcende a mera documentação de eventos; ele se posiciona como um ato de resistência, utilizando a câmera como arma para expor as injustiças e violências perpetradas contra a população palestina. A narrativa é construída a partir de imagens cruas e impactantes, capturadas em tempo real, que revelam a brutalidade das operações militares e a resiliência dos moradores locais. A ausência de uma estrutura tradicional e a escolha por uma abordagem direta e pessoal conferem à obra uma autenticidade que ressoa profundamente com o espectador.

    Sem Chão não busca oferecer respostas fáceis ou soluções simplistas para um conflito complexo; ao contrário, ele convida à reflexão e ao questionamento, desafiando o público a confrontar as realidades muitas vezes ignoradas ou distorcidas pelas narrativas dominantes. Ao dar voz aos que frequentemente são silenciados, o documentário se estabelece como um marco no cinema político contemporâneo, evidenciando o poder da arte como instrumento de denúncia e transformação social.

    II. Masafer Yatta: A Terra que Resiste à Destruição

    Masafer Yatta, situada na região sul de Hebron, na Cisjordânia ocupada, é composta por um conjunto de vilarejos palestinos que enfrentam há décadas a ameaça constante de expulsão e demolição por parte das autoridades israelenses. Desde os anos 1980, o exército de Israel designou a área como “Zona de Fogo 918”, alegando a necessidade de treinamento militar, o que resultou em ordens de despejo para centenas de famílias palestinas. Apesar de sua presença ser reconhecida em mapas desde o século XIX, a Suprema Corte de Israel rejeitou apelos dos habitantes, não reconhecendo a existência legal de Masafer Yatta.

    O documentário “Sem Chão” captura, ao longo de cinco anos (2019-2023), a resistência dos moradores contra a destruição sistemática de suas casas, escolas e infraestrutura básica. As Forças de Defesa de Israel (IDF) impõem restrições severas à população, incluindo prisões arbitrárias e demolições de construções essenciais. Em uma cena impactante, o pai de Basel Adra, Nasser, é detido durante um protesto pacífico, exemplificando a repressão enfrentada pelos residentes.

    A narrativa do filme também destaca a violência perpetrada por colonos israelenses, que, armados e protegidos pelo exército, aterrorizam a população palestina. Em outubro de 2023, durante as filmagens, um colono atira à queima-roupa em Zakriha Adra, primo de Basel, evidenciando a escalada da violência na região.

    “Sem Chão” não apenas documenta a destruição física de Masafer Yatta, mas também a resiliência de sua comunidade, que, mesmo diante de adversidades extremas, continua a lutar por sua terra e dignidade.

    III. Basel e Yuval: Uma Amizade Complexa

    No cerne de Sem Chão está a relação entre Basel Adra, um jovem ativista palestino de Masafer Yatta, e Yuval Abraham, um jornalista israelense de Be’er Sheva. Desde a infância, Basel testemunha e resiste à destruição de sua comunidade pela ocupação israelense. Yuval, por sua vez, se aproxima da causa palestina ao conhecer Basel, formando uma aliança marcada por solidariedade e tensões. Enquanto Basel vive sob constante ameaça e violência, Yuval desfruta de liberdade em Israel, evidenciando as disparidades entre suas realidades.

    A amizade entre os dois é construída ao longo de cinco anos de colaboração na documentação das demolições em Masafer Yatta. Essa parceria é desafiada pelas diferenças em suas condições de vida: Basel enfrenta opressão e violência constantes, enquanto Yuval goza de liberdade e segurança. O filme retrata essa complexidade, mostrando como, apesar das divergências, a amizade entre Basel e Yuval se fortalece em meio à luta comum por justiça.

    Sem Chão não apenas documenta a destruição física de Masafer Yatta, mas também a resiliência de sua comunidade e a solidariedade que transcende fronteiras. A relação entre Basel e Yuval simboliza a possibilidade de empatia e colaboração entre indivíduos de lados opostos de um conflito, oferecendo uma perspectiva humana e íntima sobre a resistência palestina.

    IV. Reconhecimento Internacional e Impacto

    Desde sua estreia no Festival Internacional de Cinema de Berlim em fevereiro de 2024, onde conquistou o Prêmio do Público Panorama de Melhor Documentário e o Prêmio de Documentário da Berlinale, Sem Chão vem acumulando reconhecimento internacional. A obra também foi agraciada com o Spirit Awards e o Gotham Awards como melhor documentário nos Estados Unidos, além de prêmios no European Film Awards e no IDA Documentary Awards em Los Angeles.

    A consagração veio com a vitória no Oscar 2025 de Melhor Documentário. Durante a cerimônia, os diretores Basel Adra e Yuval Abraham utilizaram o palco para denunciar as ações militares israelenses em Gaza e na Cisjordânia. Adra compartilhou sua esperança de que sua filha não precise viver sob a constante ameaça de violência e deslocamento forçado, enquanto Abraham destacou as desigualdades entre suas realidades, enfatizando que “não há outro caminho” senão a liberdade e segurança para ambos os povos.

    Apesar do sucesso, o filme enfrentou resistência. O ministro da Cultura de Israel, Miki Zohar, instou instituições culturais a não exibirem o documentário, alegando que ele “serve aos inimigos do Estado”. Além disso, o codiretor palestino Hamdan Ballal foi agredido e detido por soldados israelenses após filmar um ataque de colonos à sua aldeia, em um episódio que ele descreveu como “vingança pelo nosso filme”.

    Sem Chão não apenas documenta a destruição física de Masafer Yatta, mas também simboliza a resistência e a solidariedade entre palestinos e israelenses que buscam justiça e coexistência. Seu impacto transcende o cinema, tornando-se um poderoso instrumento de denúncia e reflexão sobre os conflitos no Oriente Médio.

    V. Conclusão: “Sem Chão” — Um Chamado à Consciência Global

    Sem Chão transcende o formato tradicional de documentário para se tornar um poderoso instrumento de denúncia e reflexão sobre as realidades vividas pelos palestinos em Masafer Yatta. Através de uma narrativa íntima e crua, o filme expõe as injustiças e violências perpetradas contra uma comunidade que, apesar de décadas de opressão, continua a resistir e a lutar por sua terra e dignidade.

    A obra destaca a complexa amizade entre Basel Adra, um jovem ativista palestino, e Yuval Abraham, um jornalista israelense, simbolizando a possibilidade de empatia e colaboração entre indivíduos de lados opostos de um conflito. Essa relação, marcada por solidariedade e tensões, oferece uma perspectiva humana e profunda sobre a resistência palestina e os desafios enfrentados por aqueles que buscam justiça em meio à opressão.

    O reconhecimento internacional de Sem Chão, culminando com a vitória no Oscar de Melhor Documentário em 2025, evidencia a importância de dar voz às narrativas frequentemente silenciadas. Apesar das tentativas de boicote e censura, o filme alcançou um público global, provocando debates e incentivando uma análise mais crítica sobre o conflito israelo-palestino.

    Ao assistir Sem Chão, somos convidados a confrontar as realidades muitas vezes ignoradas pelas narrativas dominantes e a refletir sobre nosso papel na promoção da justiça e da paz. O documentário não oferece respostas fáceis, mas nos desafia a enxergar além das fronteiras políticas e a reconhecer a humanidade compartilhada por todos os envolvidos.

    Em última análise, Sem Chão é um testemunho da resiliência do povo palestino e um apelo urgente à consciência global. É uma obra essencial para compreender as nuances da resistência palestina e os desafios enfrentados por aqueles que buscam justiça em meio à opressão.

  • Artigo de opinião: como fazer?

    O artigo de opinião ocupa um espaço fundamental no jornalismo e na formação crítica do leitor, pois expressa posicionamentos argumentativos sustentados por fatos e por uma estrutura lógica de pensamento. Trata-se de um gênero opinativo que, embora seja marcado pela subjetividade do autor, exige rigor na apresentação das ideias, clareza textual e embasamento em argumentos consistentes. Escrever um artigo de opinião não é apenas emitir juízo sobre um tema; é construir uma tese, defendê-la com argumentos sólidos e considerar a pluralidade de pontos de vista.

    Conforme definições consagradas nos manuais de redação jornalística, o artigo de opinião é caracterizado por sua intenção persuasiva, seu vínculo com acontecimentos relevantes para a sociedade e sua função social de estimular o pensamento crítico. Para isso, exige-se domínio da linguagem escrita, capacidade de análise, articulação lógica e responsabilidade com a informação.

    Sob a ótica do jornalismo, o artigo de opinião também representa um espaço de liberdade e responsabilidade. É o lugar onde o autor assume sua voz pública — seja um colunista profissional, um professor convidado ou um estudante em processo de formação. É, portanto, tanto um exercício de cidadania quanto de técnica redacional. O domínio desse gênero é imprescindível para profissionais da comunicação e da educação, bem como para qualquer cidadão que deseja participar ativamente do debate público.

    Este texto tem por objetivo apresentar um guia acadêmico e prático para a produção de artigos de opinião, abordando seus fundamentos, estrutura, estratégias argumentativas e cuidados estilísticos, com ênfase em contribuições de autores brasileiros e alinhamento às normas da ABNT no uso de citações e referências.

    Estrutura e Lógica Textual no Artigo de Opinião

    A estrutura de um artigo de opinião se organiza em torno de uma lógica textual que visa a defender uma ideia central — a tese — com base em argumentos claros, coerentes e bem articulados. Embora não exista um modelo único e rígido, a maioria dos artigos de opinião segue uma estrutura tripartida: introdução, desenvolvimento e conclusão. Cada parte cumpre uma função retórica essencial no processo de persuasão.

    1. Introdução: apresentação do tema e da tese

    A introdução de um artigo de opinião deve ser impactante, chamando a atenção do leitor para o tema que será tratado. Nela, o autor apresenta o assunto em discussão, contextualiza o debate e introduz sua tese — ou seja, o ponto de vista que será defendido ao longo do texto. Essa tese deve estar formulada de modo claro e direto, preferencialmente em um único parágrafo.

    A clareza da tese é crucial para que o leitor compreenda, desde o início, qual é a posição do autor. Segundo Fiorin (2007), a tese é o eixo central do texto argumentativo, e sua explicitação precoce é uma exigência retórica que contribui para a persuasão.

    2. Desenvolvimento: argumentação e fundamentação

    É na etapa do desenvolvimento que o autor apresenta os argumentos que sustentam sua tese. Cada parágrafo deve corresponder a uma ideia ou argumento, desenvolvida com coesão e coerência. Além disso, o autor pode recorrer a exemplos, dados estatísticos, citações de especialistas, comparações, analogias ou relatos de fatos concretos para reforçar suas ideias.

    Conforme Koch (2009), um bom texto argumentativo apresenta não apenas razões a favor da tese, mas também antecipa e rebate possíveis objeções. Essa técnica, conhecida como refutação argumentativa, mostra que o autor conhece diferentes visões sobre o tema e sabe justificar sua escolha.

    É importante que os parágrafos se encadeiem logicamente, respeitando uma progressão temática. A transição entre os argumentos deve ser feita com conectivos e expressões coesivas, como “além disso”, “por outro lado”, “consequentemente”, entre outros.

    3. Conclusão: reafirmação e fechamento

    Na conclusão, o autor retoma a tese e a reafirma à luz dos argumentos apresentados. Trata-se de um momento de síntese, em que se retoma o fio condutor do texto e se oferece um fechamento lógico e retórico. Em alguns casos, pode-se também sugerir soluções, apontar caminhos ou deixar uma provocação ao leitor.

    É fundamental evitar que a conclusão traga novos argumentos ou informações que não foram discutidas previamente no desenvolvimento. Segundo Severo (2014), o fechamento precisa ser coerente com o percurso textual e oferecer ao leitor a sensação de completude.


    Resumo da Estrutura Tradicional:

    Parte do Texto Função
    Introdução Apresentar o tema e formular a tese
    Desenvolvimento Argumentar a favor da tese com fundamentação
    Conclusão Reafirmar a tese e oferecer um fechamento lógico

    4. Estratégias Argumentativas no Artigo de Opinião

    Uma das marcas centrais do artigo de opinião é a argumentação. Para que o texto seja convincente, é necessário que o autor mobilize estratégias argumentativas que sustentem racionalmente sua tese. Tais estratégias não apenas fortalecem a posição assumida, como também demonstram domínio do tema e responsabilidade na construção da opinião pública.

    4.1. Argumento de autoridade

    O argumento de autoridade é aquele que recorre à voz de especialistas, instituições reconhecidas ou fontes confiáveis para legitimar a opinião defendida. Ao citar, por exemplo, um cientista, um sociólogo, um filósofo ou um órgão oficial, o autor reforça a credibilidade do que está afirmando.

    Exemplo: “Segundo Paulo Freire (1996), o ato de educar é, antes de tudo, um ato político.”

    Contudo, é importante lembrar que o argumento de autoridade só é válido quando a fonte é legítima e relacionada ao tema tratado. Citar um especialista fora de seu campo de atuação pode soar como apelo indevido.

    4.2. Argumento lógico ou racional

    Esse tipo de argumento se baseia em deduções, relações de causa e consequência, ou explicações lógicas. É muito utilizado para demonstrar coerência interna nas ideias.

    Exemplo: “Se o acesso à internet é essencial para a educação, e muitos estudantes não o possuem, então a desigualdade digital compromete o direito à aprendizagem.”

    Trata-se de um recurso que exige clareza conceitual, ordenação das ideias e uso correto de conectivos argumentativos.

    4.3. Exemplificação

    Usar exemplos concretos — fatos, situações cotidianas, eventos históricos ou relatos pessoais — aproxima o texto da realidade do leitor e facilita a compreensão do ponto de vista.

    Exemplo: “Em 2019, o desastre de Brumadinho mostrou, de forma trágica, as consequências da negligência ambiental por parte de grandes corporações.”

    Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), a exemplificação é uma das formas mais eficazes de tornar a argumentação acessível e memorável.

    4.4. Comparação e analogia

    A comparação permite estabelecer semelhanças e diferenças entre dois ou mais elementos. Já a analogia, por sua vez, aproxima conceitos abstratos de situações concretas, facilitando a compreensão e reforçando o argumento.

    Exemplo: “Negar a mudança climática é como ignorar um incêndio porque a fumaça ainda não chegou à sua janela.”

    Esses recursos são especialmente úteis para tratar temas complexos, conectando-os ao repertório do leitor.

    4.5. Contra-argumentação e refutação

    Uma das estratégias mais sofisticadas é antecipar possíveis críticas ou visões contrárias à tese e refutá-las com elegância. Isso demonstra que o autor não apenas conhece diferentes pontos de vista, mas também sabe justificar por que adota a posição que defende.

    Exemplo: “Embora muitos afirmem que o ensino remoto democratiza o acesso à educação, é preciso considerar que grande parte dos estudantes sequer possui um dispositivo adequado ou conexão estável.”

    Essa técnica fortalece a credibilidade do texto, ao demonstrar abertura ao debate e domínio sobre a complexidade do tema.


    Quadro-resumo das principais estratégias argumentativas:

    Estratégia Finalidade
    Autoridade Apoiar com vozes legitimadas
    Lógica Construir raciocínios consistentes
    Exemplificação Tornar o argumento mais próximo do leitor
    Comparação/Analogia Facilitar o entendimento por aproximação
    Refutação Antecipar e rebater possíveis objeções

    5- Estratégias Linguísticas e Estilísticas no Artigo de Opinião

    O artigo de opinião é um gênero que exige clareza, objetividade e persuasão, características que se manifestam, sobretudo, por meio da linguagem. As escolhas estilísticas devem alinhar-se ao propósito do texto — defender um ponto de vista — e ao perfil do público-alvo. O domínio da norma-padrão da língua portuguesa é indispensável, mas deve ser articulado a uma escrita fluida, envolvente e precisa.

    5.1. Tom e vocabulário

    O tom do artigo de opinião costuma ser formal, porém acessível. Isso significa evitar tanto o excesso de jargões técnicos quanto expressões coloquiais. O equilíbrio entre sofisticação e clareza é essencial para manter a credibilidade sem afastar o leitor.

    Em vez de “a galera está sem acesso à internet”, prefira “grande parte da população estudantil não possui acesso adequado à internet”.

    No caso de veículos de comunicação voltados a públicos mais jovens ou populares, pode-se flexibilizar o vocabulário, mas sempre com intencionalidade e sem prejuízo à norma culta.

    5.2. Pronomes e ponto de vista

    Artigos de opinião geralmente utilizam a primeira pessoa do singular (“eu”) ou do plural (“nós”) para reforçar o caráter pessoal do posicionamento. Contudo, muitos autores preferem a impessoalidade estratégica — redigindo em terceira pessoa — para dar maior objetividade à argumentação.

    Com “eu”: “Acredito que a meritocracia ignora desigualdades estruturais.”
    Sem “eu”: “A meritocracia ignora desigualdades estruturais, sendo uma ilusão em contextos marcados pela exclusão social.”

    A escolha depende da identidade do autor, do veículo e da intencionalidade discursiva.

    5.3. Uso de conectivos argumentativos

    A coesão textual é garantida, em grande medida, pelo uso adequado de conectivos lógicos. Essas expressões guiam o leitor entre as partes do texto e ajudam a explicitar relações de causa, contraste, consequência, adição, etc.

    Exemplos:

    • Adição: além disso, também, bem como

    • Contraste: contudo, entretanto, apesar disso

    • Causa/consequência: porque, portanto, assim, logo

    • Exemplificação: por exemplo, isto é, ou seja

    O uso estratégico desses conectores fortalece a estrutura argumentativa e melhora a fluidez da leitura.

    5.4. Recursos retóricos

    Os recursos da retórica clássica, como a ironia, a interrogação retórica, a antítese e a hipérbole, são frequentemente empregados no artigo de opinião para intensificar o efeito persuasivo.

    Exemplo de ironia: “Ao que parece, a fome no Brasil foi solucionada — só esqueceram de avisar os que continuam sem ter o que comer.”
    Exemplo de interrogação retórica: “É justo exigir desempenho escolar de quem sequer tem comida na mesa?”

    Esses recursos não substituem os argumentos, mas os complementam, ativando a sensibilidade e o senso crítico do leitor.

    5.5. Parágrafos curtos e ritmo de leitura

    Um artigo de opinião deve ser agradável de ler, o que implica ritmo textual. Parágrafos longos tendem a cansar o leitor. O ideal é que cada parágrafo contenha de três a cinco frases bem articuladas, explorando uma única ideia por vez.

    Além disso, o uso de frases curtas, objetivas e variadas em estrutura contribui para a fluidez e o impacto do texto. A pontuação também deve ser usada estrategicamente, com vírgulas bem colocadas, travessões para destaque e dois-pontos para explicações diretas.

    Exemplos Comentados de Artigos de Opinião

    Observar bons modelos é uma forma eficaz de aprender a construir um texto argumentativo sólido. A seguir, apresento dois trechos de artigos de opinião — um sobre educação e outro sobre meio ambiente — acompanhados de comentários que destacam os aspectos estruturais, argumentativos e estilísticos empregados.


    Exemplo 1: Tema — Educação e Desigualdade

    Trecho do artigo:

    “A pandemia da Covid-19 escancarou uma realidade há muito ignorada pelas políticas públicas: a exclusão digital dos estudantes das periferias. Enquanto escolas privadas migravam com rapidez para o ensino remoto, alunos da rede pública sequer dispunham de celular, internet ou ambiente adequado para estudar. Dizer que todos ‘tiveram as mesmas oportunidades’ é, no mínimo, desonestidade intelectual. O discurso meritocrático desconsidera desigualdades estruturais e invisibiliza os efeitos perversos da pobreza sobre o desempenho escolar.”

    Análise:

    • Introdução forte, com contextualização clara e direta.

    • A tese está explicitada: o ensino remoto aprofundou desigualdades.

    • Utiliza exemplificação concreta (pandemia) e refutação de um argumento contrário (meritocracia).

    • O vocabulário é claro e preciso, com tom crítico e linguagem acessível.

    • Uso efetivo de conectores (“enquanto”, “sequer”, “é, no mínimo…”).


    Exemplo 2: Tema — Desmatamento e Política Ambiental

    Trecho do artigo:

    “O Brasil insiste em trilhar o caminho do retrocesso ambiental. O aumento do desmatamento na Amazônia, associado à retórica antiambiental de certos setores políticos, coloca o país na contramão dos compromissos climáticos internacionais. Não se trata apenas de proteger árvores, mas de garantir o equilíbrio climático global. Ao flexibilizar leis e enfraquecer órgãos de fiscalização, o governo empurra o país para uma crise ambiental de proporções irreversíveis.”

    Análise:

    • A tese é clara e direta: o Brasil está retrocedendo na política ambiental.

    • Aponta causas concretas (desmatamento, políticas públicas).

    • O argumento é lógico e bem encadeado, com progressão da ideia (de nacional a global).

    • Emprega vocabulário forte e engajado (“insiste”, “crise irreversível”).

    • Constrói um tom de urgência e denúncia, típico do gênero.


    Dicas Práticas para Revisar seu Artigo de Opinião

    Ao finalizar a escrita, é fundamental revisar com base nos seguintes critérios:

    Critério Perguntas para reflexão
    Clareza da tese A ideia central está explícita desde o início?
    Coerência dos argumentos Há lógica e consistência entre os parágrafos?
    Adequação linguística O vocabulário é apropriado ao público e ao tema?
    Coesão textual Os conectores foram bem utilizados?
    Persuasão O texto convence? Há dados, exemplos, refutações bem elaboradas?
    Ortografia e gramática Há erros gramaticais ou problemas de pontuação?
    Estilo e ritmo Os parágrafos estão equilibrados? O texto flui naturalmente?

    6.O Papel Social do Artigo de Opinião na Atualidade

    O artigo de opinião transcende a função meramente técnica de expressão textual. Ele é uma ferramenta de intervenção social, uma forma de participar ativamente do debate público e influenciar a formação da opinião coletiva. Em tempos de infoxicação — excesso de informações disponíveis — e de desinformação sistemática, o artigo de opinião cumpre uma função vital: organizar o pensamento crítico com base em argumentos racionais e éticos.

    6.1. O artigo de opinião como forma de cidadania

    A escrita de um artigo de opinião é, por si só, um ato de cidadania ativa. Ao construir e publicar um posicionamento sobre temas como direitos humanos, educação, saúde, política ou meio ambiente, o autor está exercendo seu direito à liberdade de expressão e contribuindo para o debate democrático.

    Segundo Gohn (2006), a cidadania contemporânea não se resume ao voto, mas envolve a capacidade de intervir publicamente com consciência crítica. O artigo de opinião é, portanto, uma das formas mais acessíveis e relevantes de manifestação cidadã.

    6.2. O lugar do artigo de opinião nas mídias digitais

    Com o advento das redes sociais, blogs, portais de notícias e espaços colaborativos de publicação (como o Medium ou o LinkedIn), o artigo de opinião ganhou novas plataformas e maior alcance. Se antes o espaço opinativo estava restrito a colunistas profissionais em jornais impressos, hoje qualquer pessoa pode publicar seu posicionamento e alcançar milhares de leitores.

    Esse fenômeno, embora democratize a palavra, também exige responsabilidade ética na produção e circulação de opiniões. A defesa de ideias deve estar alicerçada na verdade factual, no respeito ao contraditório e na argumentação racional. Do contrário, corre-se o risco de transformar o artigo em desinformação ou discurso de ódio.

    6.3. O artigo de opinião e o combate à polarização

    Num cenário polarizado como o brasileiro, em que discursos extremados dominam o espaço público, o artigo de opinião se apresenta como uma alternativa ao sensacionalismo e à retórica vazia. Ao exigir fundamentação, o gênero convida o autor a abandonar o achismo e a intolerância, promovendo o exercício da escuta e da empatia.

    Para isso, é fundamental considerar a complexidade dos temas abordados, reconhecendo que, muitas vezes, os problemas sociais não têm soluções simples. O bom artigo de opinião não impõe verdades absolutas, mas oferece argumentos que estimulam a reflexão crítica do leitor.

    7. Conclusão — O Artigo de Opinião como Instrumento de Formação Crítica

    Escrever um artigo de opinião é um exercício de linguagem, de cidadania e de consciência histórica. Exige-se do autor não apenas habilidade com as palavras, mas também ética argumentativa, domínio conceitual e sensibilidade social. É por isso que esse gênero ocupa um lugar de destaque tanto na prática jornalística quanto na formação escolar e universitária.

    Dominar a escrita opinativa contribui para:

    • desenvolver a capacidade crítica e argumentativa;

    • dialogar com diferentes pontos de vista;

    • intervir na esfera pública com responsabilidade;

    • combater a desinformação e fortalecer a democracia.

    Seja em um jornal, em uma rede social, em um blog educacional ou em um concurso público, o artigo de opinião continuará a ser uma das formas mais poderosas de fazer valer a palavra — não como instrumento de imposição, mas de diálogo. E como nos lembra Paulo Freire (1996), “a palavra verdadeira, aquela que transforma o mundo, é também um ato de coragem”.


    Referências Bibliográficas

    • FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Ática, 2007.

    • FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

    • GOHN, Maria da Glória. Cidadania, justiça e violência. São Paulo: Cortez, 2006.

    • KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2009.

    • PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

    • SEVERO, Renato Janine. Ética. São Paulo: Publifolha, 2014.

  • Alienação em Marx

    O conceito de alienação ocupa lugar central na tradição filosófica ocidental, assumindo, porém, contornos e significados distintos conforme o horizonte histórico e teórico de cada pensador. No campo da sociologia, Karl Marx é a figura que confere ao termo sua formulação crítica mais contundente e revolucionária, ao vinculá-lo não apenas à esfera da consciência ou da religião, mas à materialidade concreta das relações sociais de produção. Esta concepção inaugura uma ruptura epistemológica fundamental com as abordagens idealistas de Hegel e mesmo com o materialismo antropológico de Feuerbach, conferindo à alienação um sentido estrutural, enraizado nas condições objetivas do modo de produção capitalista.

    A presente análise tem como objetivo central apresentar uma leitura sociológica e didática do conceito de alienação em Marx, tendo como principal referência os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, com apoio teórico na dissertação de Pablo Soares da Silva (2019), que realiza um minucioso percurso pelas influências filosóficas que moldaram a elaboração juvenil de Marx. Nesse caminho, destacam-se os debates com Hegel e Feuerbach, cujas formulações serão também aqui revisitadas, não apenas como pano de fundo, mas como marcos dialéticos indispensáveis à compreensão da originalidade do pensamento marxiano.

    De início, é preciso sublinhar que Marx não parte de abstrações metafísicas para pensar o ser humano, mas das relações concretas de sua existência, especialmente no âmbito do trabalho. É precisamente nesse espaço vital — o da produção e reprodução da vida — que a alienação adquire sua forma mais radical, expressando-se como uma cisão entre o trabalhador e sua atividade, entre o sujeito e o produto de seu próprio esforço. Esse processo, que desumaniza e reifica o ser social, é analisado por Marx como fenômeno histórico, e não natural, cuja superação exige transformações estruturais profundas na ordem socioeconômica vigente.

    Na análise marxiana, a alienação não se resume à perda de sentido ou de identidade individual. Trata-se, antes, de um mecanismo de dominação sistêmica, que impede a plena realização das potencialidades humanas. A alienação do trabalhador em relação ao produto do trabalho, ao processo produtivo, à sua própria essência e aos demais seres humanos constitui, segundo Marx, um dos pilares da lógica capitalista. Por isso, sua crítica se inscreve em um projeto mais amplo: o da emancipação humana através da supressão do trabalho alienado e da abolição da propriedade privada dos meios de produção.

    A alienação, portanto, não é, para Marx, uma falha acidental do sistema, mas uma necessidade funcional do capital. Ela é inseparável da divisão entre trabalho e capital, entre propriedade e proletariado, entre produção e consumo. Assim, o presente texto parte dessa concepção estrutural para discutir o papel do trabalho alienado nas sociedades capitalistas, com especial atenção às suas formas contemporâneas, à luz da tradição crítica da teoria social.

    O percurso que se seguirá está dividido em quatro partes principais. Primeiro, será analisada a genealogia filosófica do conceito de alienação, especialmente em Hegel e Feuerbach, buscando identificar os elementos aproveitados e superados por Marx. Em seguida, será detalhada a crítica marxiana a esses dois autores, evidenciando os limites de suas abordagens e as contribuições para a construção do materialismo histórico. Posteriormente, a teoria da alienação nos Manuscritos Econômico-Filosóficos será exposta em profundidade, examinando suas múltiplas dimensões. Por fim, será apresentada uma discussão sobre a atualidade do conceito de alienação à luz dos fenômenos sociais contemporâneos, com destaque para a precarização do trabalho, a fetichização das relações sociais e a reconfiguração do sujeito na era digital.

    Esse itinerário pretende, portanto, contribuir para a compreensão crítica das formas de dominação modernas e do potencial emancipatório contido na crítica marxiana da alienação — não apenas como conceito teórico, mas como ferramenta para a transformação das relações sociais em direção a uma sociabilidade mais justa e humanizada.

    1. As raízes filosóficas do conceito de alienação: Hegel e Feuerbach

    Antes de adentrar propriamente na teoria da alienação desenvolvida por Karl Marx, é imprescindível compreender suas bases filosóficas e os interlocutores com os quais ele dialoga criticamente. Os nomes centrais nesse processo são Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Ludwig Feuerbach. Ambos foram fundamentais para a formação intelectual do jovem Marx, embora suas concepções tenham sido posteriormente ultrapassadas e transformadas no interior da crítica marxiana. A análise dessas influências é importante não apenas para entender a gênese do conceito de alienação em Marx, mas também para evidenciar o salto qualitativo operado por ele rumo a uma teoria materialista e histórica das formas sociais.

    1.1 Hegel: a alienação como momento do espírito

    Na filosofia de Hegel, o conceito de alienação (Entfremdung) aparece no contexto da realização do Espírito (Geist), isto é, do processo pelo qual a consciência se desenvolve historicamente em direção ao autoconhecimento e à liberdade. A alienação, nesse sentido, não é um erro ou um mal a ser evitado, mas um momento necessário do desdobramento dialético da realidade. O Espírito precisa alienar-se, exteriorizar-se em formas objetivas (como o Estado, a cultura, a arte, a religião), para depois se reconhecer nessas formas e alcançar sua reconciliação com o mundo.

    Na Fenomenologia do Espírito (1807), Hegel apresenta a famosa dialética do senhor e do escravo como uma metáfora da formação da autoconsciência humana. Nessa relação, o escravo — ao trabalhar e transformar a natureza — desenvolve uma forma de consciência mais avançada que a do senhor, pois se reconhece nos produtos de seu trabalho. Ainda que subjugado, é o escravo quem efetivamente objetiva-se no mundo, construindo a ponte entre o espírito individual e a totalidade. Nesse sentido, a alienação é a mediação necessária entre o Eu abstrato e a realidade concreta, entre a subjetividade e a objetividade (Inwood, 1997).

    Contudo, essa concepção tem um traço nitidamente idealista. A realidade é compreendida como expressão da Ideia, e o movimento da história é, em última instância, a autoconsciência do Espírito absoluto. O problema da alienação é resolvido na esfera da consciência, do pensamento, por meio da reconciliação do sujeito com as instituições sociais — especialmente com o Estado moderno, visto por Hegel como a realização racional da liberdade.

    Essa perspectiva, embora profunda e inovadora, será duramente criticada por Marx. Para ele, a reconciliação não se dá no plano da consciência, mas na transformação concreta das condições materiais de existência. A alienação não é uma etapa do desenvolvimento do Espírito, mas um sintoma da cisão entre o trabalho e a vida, entre o homem e sua humanidade.

    1.2 Feuerbach: a alienação religiosa e o materialismo antropológico

    A crítica de Feuerbach à filosofia hegeliana se dá por meio de uma inflexão materialista e antropológica. Em obras como A essência do Cristianismo (1841) e Princípios da Filosofia do Futuro (1843), Feuerbach sustenta que a religião é uma forma de alienação: os homens projetam em Deus suas próprias qualidades — amor, justiça, inteligência — e passam a venerar como divino aquilo que, na verdade, é humano. Deus, nesse sentido, seria o “espelho da essência humana”, um reflexo invertido das potencialidades do homem.

    Essa inversão é o cerne da alienação religiosa. Ao transferir para um ser supremo tudo aquilo que o torna pleno, o homem esvazia a si mesmo. Segundo Feuerbach, o caminho da emancipação passa pela reintegração dessas qualidades ao ser humano, pela reapropriação da essência que lhe foi roubada pela teologia. Como ele afirma: “a religião é a alienação do homem de si mesmo; quanto mais o homem coloca em Deus, menos ele retém de si” (Feuerbach, 1988).

    A crítica feuerbachiana, ao contrário da de Hegel, não propõe uma superação dialética da alienação. Ela indica a necessidade de inverter a lógica da religião, substituindo Deus pelo Homem, o idealismo pelo materialismo, a especulação pela sensibilidade. Para Feuerbach, a essência do ser humano está na sua corporeidade, na sua afetividade, na sua relação imediata com o mundo.

    Embora Marx reconheça a importância dessa crítica, considera que Feuerbach ainda se limita a uma abordagem abstrata da essência humana. Para ele, o problema da alienação não pode ser resolvido apenas no plano da consciência religiosa ou da inversão conceitual. É preciso compreender as condições materiais que produzem essa alienação, as estruturas econômicas e sociais que fazem com que o homem se afaste de sua própria humanidade.

    1.3 Entre o idealismo e o materialismo: a superação marxiana

    A originalidade de Marx consiste em sintetizar dialeticamente os elementos de Hegel e Feuerbach, operando uma dupla crítica: à idealização da realidade proposta pelo primeiro e à abstração antropológica do segundo. Como destaca Pablo Soares da Silva (2019), Marx reconhece o valor metodológico da dialética hegeliana, mas recusa seu viés idealista. Por outro lado, valoriza o materialismo de Feuerbach, mas critica sua ausência de historicidade e de mediação social.

    É a partir dessa síntese crítica que Marx formula sua teoria da alienação como uma expressão das relações sociais concretas de produção. A alienação, para ele, é um fenômeno histórico determinado pela forma como os homens organizam sua vida produtiva. O trabalho, que deveria ser a atividade por excelência da realização humana, transforma-se sob o capitalismo em uma fonte de sofrimento, de expropriação e de estranhamento.

    Como afirma Mészáros (2006), Marx transforma a alienação em um conceito histórico e social, rompendo com sua concepção abstrata e ontológica. O homem alienado é aquele que, em determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas, perde o controle sobre sua própria existência, sendo subordinado às leis do mercado, à lógica do capital, à divisão entre propriedade e trabalho.

    Em síntese, Marx parte de Hegel e de Feuerbach, mas supera ambos. Sua crítica da alienação não é apenas uma crítica filosófica, mas uma crítica prática, orientada para a transformação revolucionária da sociedade. A alienação, nesse sentido, deixa de ser um problema da consciência ou da religião e passa a ser uma questão de estrutura, de classe, de modo de produção.

    2. A crítica marxiana a Hegel e Feuerbach

    A consolidação da teoria marxiana da alienação exigiu de Marx um movimento de apropriação crítica e superação das influências teóricas que marcaram sua formação. Nesse percurso, duas figuras se destacam como alvos fundamentais: Georg Wilhelm Friedrich Hegel, cuja filosofia idealista forneceu os instrumentos metodológicos da dialética; e Ludwig Feuerbach, cujas críticas à religião e ao idealismo de Hegel marcaram decisivamente a fase juvenil de Marx, especialmente na transição entre a filosofia e a economia política. Contudo, o pensamento de Marx, longe de ser uma simples extensão dessas ideias, realiza uma ruptura qualitativa, reposicionando a alienação no interior das estruturas materiais e sociais da existência humana.

    2.1 A crítica de Marx a Hegel: do idealismo à práxis

    A crítica de Marx a Hegel aparece de maneira sistemática em textos como Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843) e, posteriormente, em A Sagrada Família (1845) e A Ideologia Alemã (1846). A base dessa crítica reside na denúncia do caráter idealista da filosofia hegeliana, que inverte a relação entre pensamento e realidade. Para Hegel, o mundo real é a exteriorização da Ideia, uma manifestação da razão em desenvolvimento. Marx, ao contrário, parte da premissa de que é a existência social concreta que determina a consciência, e não o inverso.

    Como sintetiza Marx em A Ideologia Alemã, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 2007, p. 25). Essa afirmação representa uma guinada fundamental: rompe-se com a especulação abstrata e assume-se uma perspectiva materialista e histórica, na qual o ser humano é definido por suas práticas sociais, especialmente pelo trabalho e pelas relações de produção.

    No que diz respeito à alienação, Marx reconhece que Hegel identificou corretamente a existência de um processo de estranhamento nas relações humanas. Contudo, critica duramente o fato de Hegel tratar a alienação como um fenômeno puramente espiritual, resolvido no plano da autoconsciência do Espírito. Segundo Marx, essa abordagem “mistifica a realidade” ao encobrir os mecanismos materiais que alienam o trabalhador de sua produção, do processo produtivo, de sua essência e dos demais seres humanos.

    Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx denuncia o Estado hegeliano como uma abstração que encobre a dominação real das classes. Em vez de representar a racionalidade realizada, como queria Hegel, o Estado moderno é, para Marx, a expressão concentrada dos interesses das classes dominantes, mantendo o trabalhador numa posição de subordinação econômica e política.

    Como aponta Pablo Soares da Silva (2019), Marx inverte o ponto de partida hegeliano: enquanto Hegel parte do Estado para pensar a sociedade civil, Marx parte da sociedade civil, das relações materiais entre os homens, para pensar o Estado. Essa inversão marca a transição da dialética idealista para a dialética materialista e fundamenta a crítica da alienação como um fenômeno concreto e histórico, não como uma etapa do espírito.

    2.2 A crítica de Marx a Feuerbach: da antropologia à prática social

    No caso de Feuerbach, a crítica de Marx se dá em outro plano. Marx reconhece o avanço representado pelo materialismo feuerbachiano em relação ao idealismo especulativo de Hegel. Contudo, identifica nele uma limitação fundamental: a ausência de historicidade e de mediação social em sua concepção de homem.

    Para Feuerbach, o ser humano é uma essência genérica, dotada de atributos universais como a sensibilidade, a afetividade e a racionalidade. Essa essência, ao ser projetada em um ente divino, torna-se alienada, dando origem à religião. A solução seria, então, reapropriar-se dessa essência, abolindo a religião e recolocando o homem no centro do mundo. No entanto, como observa Marx em suas Teses sobre Feuerbach (1845), o erro de Feuerbach está em conceber o ser humano de forma abstrata, fora de suas determinações sociais e históricas.

    Na célebre sexta tese, Marx afirma que “a essência humana não é algo abstrato que reside no indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (Marx, 2010, p. 28). Com essa formulação, Marx rompe com o humanismo abstrato de Feuerbach e funda uma antropologia histórica e social. O ser humano só pode ser compreendido no interior de suas práticas concretas, especialmente do trabalho, e das estruturas sociais que o condicionam.

    Além disso, Marx critica Feuerbach por não compreender a dimensão transformadora da práxis. Em sua terceira tese, Marx afirma que “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (Marx, 2010, p. 27). Isso significa que a crítica da alienação não pode limitar-se à denúncia teórica das projeções religiosas ou à defesa de um retorno à essência. É preciso agir, intervir nas condições reais que produzem a alienação e transformá-las por meio da luta social e política.

    Como observa Mészáros (2006), o mérito de Marx foi ter elevado a crítica da alienação a um novo patamar: do plano da consciência ao plano da produção, da abstração ao concreto, da especulação à transformação. A alienação, em Marx, não é uma patologia do pensamento, mas uma estrutura objetiva que resulta das contradições do modo de produção capitalista.

    2.3 A superação dialética: crítica e fundação de uma nova ontologia

    A crítica de Marx a Hegel e Feuerbach não é apenas destrutiva. Trata-se de um processo dialético, no qual os elementos úteis são preservados e transformados. De Hegel, Marx retém a concepção de totalidade e o método dialético, mas rejeita seu conteúdo idealista. De Feuerbach, incorpora o materialismo e a crítica à religião, mas supera a abstração antropológica com uma visão histórico-social do ser humano.

    Esse processo culmina na elaboração de uma nova ontologia, centrada no trabalho como atividade fundante da existência humana. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx define o trabalho como a “relação vital” do homem com a natureza e com os outros homens. É no trabalho que o ser humano se objetiva, realiza sua essência, transforma o mundo e a si mesmo. Contudo, sob o capitalismo, essa atividade fundamental é pervertida, tornando-se fonte de sofrimento, submissão e estranhamento.

    A alienação, portanto, é a negação da humanidade do trabalhador, a ruptura entre sujeito e objeto, entre indivíduo e coletividade, entre existência e essência. Superá-la exige não apenas uma crítica teórica, mas uma revolução prática nas condições materiais que a produzem. Nesse sentido, a crítica marxiana da alienação é inseparável de seu projeto emancipador: a construção de uma sociedade onde o trabalho não seja mais uma atividade compulsória e expropriante, mas uma expressão livre da vida humana.

    3. A teoria da alienação nos Manuscritos Econômico-Filosóficos

    A obra Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, redigida por Marx durante seu exílio em Paris, marca um momento decisivo na consolidação de sua crítica à economia política e na elaboração de uma ontologia fundada na práxis e no trabalho. Nela, Marx retoma o conceito de alienação, que até então aparecia de forma dispersa em sua crítica à religião e à filosofia do Estado, e o articula diretamente às condições materiais da vida sob o capitalismo. Trata-se, portanto, de um texto fundamental para compreender a transição do jovem filósofo para o crítico radical da sociedade burguesa.

    Como destaca Pablo Soares da Silva (2019), os Manuscritos não são apenas um exercício filosófico, mas já anunciam o método do materialismo histórico-dialético, ao tratar a alienação como resultado de condições sociais e históricas concretas. Marx parte da análise da economia política para demonstrar como, sob o capitalismo, o trabalhador é expropriado de si mesmo, transformado em simples instrumento do capital. Essa expropriação se manifesta em quatro formas principais de alienação: do produto do trabalho, do processo de trabalho, da essência humana e da relação com os outros seres humanos.

    3.1 Alienação do produto do trabalho

    A primeira forma de alienação identificada por Marx diz respeito ao produto do trabalho. No sistema capitalista, o trabalhador produz objetos que não lhe pertencem; ao contrário, quanto mais trabalha, mais fortalece o mundo das coisas que o domina. Como afirma Marx, “o objeto que o trabalho produz, seu produto, se enfrenta a ele como algo estranho, como um poder independente do produtor” (Marx, 2010, p. 72).

    Esse processo inverte a relação natural entre o homem e sua criação. O que deveria ser expressão da atividade humana torna-se algo hostil, alheio, que o oprime. O produto do trabalho deixa de ser extensão do sujeito e converte-se em mercadoria, propriedade do capitalista. Assim, o trabalhador não se reconhece no que faz; seu trabalho deixa de ser um fim em si e torna-se meio de sobrevivência — um “trabalho morto” que se impõe sobre o “trabalho vivo”.

    3.2 Alienação do processo de trabalho

    A segunda forma de alienação refere-se ao processo de trabalho propriamente dito. O trabalho, que deveria ser uma atividade livre, criadora e autêntica, é transformado, sob o capitalismo, em um esforço forçado, mecânico e repetitivo. O trabalhador não tem controle sobre o que faz, como faz ou por que faz. Ele é um simples executor de tarefas determinadas por outros.

    Marx descreve esse fenômeno como “trabalho forçado” ou “trabalho exterior”. Nas palavras do autor: “O trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser; no trabalho, ele não se afirma, mas se nega, não se sente feliz, mas infeliz, não desenvolve livremente suas energias físicas e espirituais, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito” (Marx, 2010, p. 74).

    Essa alienação do processo significa que o trabalhador não se realiza enquanto age. Seu trabalho é desprovido de sentido, porque não está orientado por suas próprias finalidades, mas pelos interesses do capital. Ele trabalha não por prazer ou criatividade, mas por necessidade, para sobreviver. O tempo do trabalho é o tempo da negação de si, da expropriação da própria existência.

    3.3 Alienação da essência humana (Gattungswesen)

    A terceira forma de alienação, mais profunda, refere-se à própria essência do ser humano. Marx concebe o homem como um “ser genérico” (Gattungswesen), isto é, como um ser que se distingue dos demais por sua capacidade de produzir de forma consciente, planejada, orientada por finalidades. Essa capacidade de transformar a natureza de modo criativo é o que define sua humanidade.

    No entanto, sob o capitalismo, essa potência é mutilada. O homem já não se reconhece como ser genérico, pois seu trabalho — atividade que deveria exprimir sua essência — é alienado. O trabalhador se converte em mera engrenagem de um sistema que o impede de afirmar-se como sujeito livre e criador. Como afirma Pablo Soares da Silva (2019), a alienação da essência é o ponto culminante da crítica marxiana, pois revela que, ao alienar-se do produto e do processo, o homem aliena-se de si mesmo.

    Essa alienação da essência implica a perda da individualidade e da universalidade humana. O trabalho, em vez de promover o desenvolvimento das capacidades humanas, as reprime, reduzindo o homem a uma função subordinada à acumulação de capital. O ser humano, nesse processo, deixa de ser fim em si e torna-se meio para fins alheios.

    3.4 Alienação nas relações sociais

    A quarta e última forma de alienação trata da relação entre os homens. Ao alienar-se de seu produto, de sua atividade e de sua essência, o trabalhador também se aliena dos outros seres humanos. As relações sociais, que deveriam ser fundadas na cooperação, na solidariedade e no reconhecimento mútuo, tornam-se relações de competição, exploração e indiferença.

    Marx observa que, sob o regime da propriedade privada, o outro é visto não como um semelhante, mas como um obstáculo, um competidor ou um patrão. A relação social dominante é mediada pela mercadoria e pelo dinheiro, que se tornam os verdadeiros vínculos entre os homens. Como afirma o autor: “A relação imediata entre o trabalho e seus produtos é a relação entre o trabalhador e o capitalista” (Marx, 2010, p. 78).

    A alienação, portanto, não é apenas um fenômeno psicológico ou individual, mas uma estrutura objetiva que afeta todas as esferas da vida social. A própria sociedade torna-se alienada: suas instituições, seus valores, suas normas passam a reproduzir a lógica da dominação capitalista, naturalizando a desigualdade e a exploração.

    4. A atualidade do conceito de alienação

    Apesar de ter sido formulado no século XIX, o conceito de alienação permanece como uma chave analítica potente para compreender as dinâmicas das sociedades contemporâneas. As transformações ocorridas nas formas de trabalho, na mediação tecnológica das relações sociais e na constituição da subjetividade não superaram a alienação descrita por Marx; ao contrário, em muitos aspectos, a aprofundaram e reconfiguraram. Se no capitalismo industrial o trabalhador era alienado de seu produto e de seu processo de trabalho, no capitalismo informacional, digital e globalizado, o indivíduo é alienado também de sua própria identidade, de seu tempo e de suas relações afetivas.

    Como aponta Antunes (2018), o processo de reestruturação produtiva e a financeirização da economia deram origem a novas formas de exploração do trabalho, marcadas pela intensificação da precariedade, pelo esvaziamento da estabilidade e pela generalização da insegurança. O trabalho intermitente, a uberização e a plataformização da força de trabalho representam um retorno a formas ainda mais intensas de expropriação, nas quais o trabalhador não possui qualquer controle sobre seu tempo, seus ganhos ou seu futuro. O que Marx descrevia como alienação do processo produtivo atinge, nesse contexto, níveis ainda mais perversos: o trabalhador torna-se um “empreendedor de si mesmo”, autogerido, mas profundamente dependente das estruturas algorítmicas e dos interesses das grandes corporações digitais.

    Essa nova configuração da alienação se estende também ao produto do trabalho. Na economia de dados, o valor não está mais vinculado à produção material direta, mas à extração de informações, preferências e comportamentos. O indivíduo deixa de ser apenas um trabalhador alienado e converte-se também em um consumidor alienado, cujos traços mais íntimos são coletados, processados e vendidos como mercadoria. Nesse sentido, a alienação atinge não apenas o que fazemos, mas o que somos — e o que os algoritmos preveem que seremos.

    O filósofo Byung-Chul Han (2015) analisa esse fenômeno como um deslocamento do “paradigma disciplinar” para o “paradigma do desempenho”. Já não se trata de uma dominação direta e coercitiva, mas de uma autoexploração voluntária, em que o indivíduo assume a responsabilidade por seu fracasso, sua produtividade e sua felicidade. A alienação assume, então, uma forma subjetiva: somos compelidos a nos vender como marca, a produzir conteúdos, a render emocionalmente, a sermos permanentemente competitivos. O “eu” torna-se produto — e a alienação, identidade.

    No campo da sociabilidade, as redes sociais digitais exemplificam uma nova forma de alienação interpessoal. A promessa de conexão e liberdade convive com a reprodução de relações reificadas, mediadas por likes, métricas e algoritmos. As relações humanas são mercantilizadas, estetizadas e padronizadas segundo a lógica do consumo e da visibilidade. Nesse cenário, o reconhecimento deixa de ser interpessoal e passa a ser condicionado pela aprovação pública, alimentando um ciclo de ansiedade, comparação e solidão — sintomas profundos da alienação moderna.

    É preciso destacar, ainda, que essa alienação contemporânea não ocorre de forma homogênea. Como observa Ricardo Antunes (2020), ela se articula com as desigualdades de classe, gênero e raça, atingindo de forma mais brutal os setores historicamente marginalizados. O trabalho doméstico, o trabalho informal e o trabalho imigrante são expressões de uma alienação estrutural que, embora atualizada, preserva o núcleo da crítica marxiana: a expropriação do tempo, da dignidade e do reconhecimento.

    Contudo, mesmo diante dessa intensificação da alienação, a proposta marxiana mantém-se atual também por seu horizonte de superação. Marx não concebe a alienação como um destino inevitável, mas como um fenômeno histórico, passível de transformação. A luta contra a alienação é, em última instância, a luta pela emancipação do trabalho, pela apropriação coletiva dos meios de produção, pela reconstrução das relações sociais com base na solidariedade, na cooperação e na liberdade.

    A crítica da alienação permanece, portanto, um instrumento fundamental para denunciar as formas sutis e explícitas de dominação, mas também para alimentar a esperança e a práxis. Como dizia Marx em sua décima primeira tese sobre Feuerbach, não basta interpretar o mundo — é preciso transformá-lo.


    Considerações finais

    A análise aqui desenvolvida permitiu compreender o conceito de alienação como uma das contribuições mais poderosas e duradouras do pensamento de Karl Marx. Ao partir da crítica ao idealismo hegeliano e à abstração antropológica de Feuerbach, Marx constrói uma teoria materialista da alienação, centrada no trabalho e nas relações sociais de produção. Essa teoria revela como, sob o capitalismo, o ser humano é expropriado de sua atividade vital, transformado em engrenagem de uma máquina voltada para o lucro e separado de sua própria essência.

    Com base nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e nos estudos interpretativos contemporâneos, como o de Pablo Soares da Silva (2019), foi possível identificar quatro formas fundamentais de alienação: do produto, do processo, da essência humana e dos outros. Essas formas não apenas explicam a condição do trabalhador no século XIX, mas lançam luz sobre os mecanismos profundos que ainda hoje operam a dominação social, agora sob novas formas tecnológicas, subjetivas e econômicas.

    Por fim, a crítica marxiana da alienação permanece viva não apenas como diagnóstico, mas como horizonte de transformação. Ela nos convida a imaginar e a construir um mundo onde o trabalho não seja sofrimento, onde as relações não sejam mercadoria e onde o ser humano possa, enfim, reconciliar-se consigo mesmo, com os outros e com o mundo que constrói.


    Referências bibliográficas

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    • MÉSZÁROS, István. Marx: teoria da alienação. São Paulo: Boitempo, 2006.

    • SOARES DA SILVA, Pablo. O conceito de alienação em Karl Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo, 2019.

  • Estrutura social Merton

    O conceito de “estrutura social” ocupa posição central no vocabulário das ciências sociais, especialmente na Sociologia. Compreendê-lo é fundamental para analisar a organização da vida em sociedade, as formas de interação humana e os mecanismos de reprodução ou transformação das instituições sociais. O termo refere-se, em linhas gerais, ao padrão relativamente estável de relacionamentos sociais, papéis, normas e instituições que moldam o comportamento humano dentro de uma coletividade.

    A relevância dessa noção ganhou grande fôlego no século XX com o avanço das teorizações de autores como Émile Durkheim, Karl Marx, Max Weber e, de forma inovadora, Robert K. Merton, que acrescentou ao conceito as dimensões da anomia e da adaptação social. O capítulo “Estrutura Social e Anomia”, publicado em Direito em Série 3 (Merton, 2020), constitui uma das formulações mais influentes sobre o tema, conectando-o às disfunções sociais e à criminalidade.

    A proposta deste artigo é desdobrar o conceito de estrutura social em suas múltiplas dimensões, evidenciando sua complexidade e implicações para o entendimento dos fenômenos sociais contemporâneos. A abordagem adota como eixo principal a perspectiva da sociologia mertoniana, complementada por leituras de clássicos e contemporâneos da teoria social.

    1. A estrutura como forma e conteúdo da vida social

    A estrutura social, no sentido mais amplo, refere-se à rede de relações institucionalizadas que organiza a vida coletiva. Ela fornece os alicerces para que indivíduos e grupos saibam o que é esperado em termos de comportamento, deveres, direitos e papéis sociais. Em outras palavras, a estrutura social “orienta” as ações sem necessariamente as “determinar” de modo mecânico, oferecendo padrões para a interação.

    Autores como Durkheim (1989) entendiam a estrutura social como “fato social”, ou seja, como formas de coerção externa que moldam as ações individuais. Já Weber (1991) via a estrutura como o resultado das ações sociais racionalmente orientadas, sendo as instituições o produto histórico dessas ações. Para Marx (2013), a estrutura social se fundamenta na infraestrutura econômica, isto é, na maneira como os homens produzem sua existência material, sendo esta a base sobre a qual se erguem as demais dimensões da vida social (ideologia, política, cultura etc.).

    A perspectiva funcionalista, cuja expressão maior no século XX foi Merton, trata a estrutura como um sistema de posições inter-relacionadas que permite (ou bloqueia) oportunidades e distribui recompensas. Para ele, o estudo da estrutura implica examinar tanto os meios institucionalizados quanto as metas culturais, bem como a tensão existente entre eles (Merton, 2020).

    2. Estrutura, normas e desigualdade

    A estrutura social não se limita à organização abstrata da sociedade. Ela se materializa em relações concretas, especialmente nas formas de desigualdade social — econômicas, raciais, de gênero, regionais, entre outras. Um dos grandes méritos da sociologia contemporânea está em evidenciar que a estrutura social não é neutra: ela reflete interesses de determinados grupos sociais e pode reproduzir desigualdades históricas.

    Segundo Bourdieu (2002), as estruturas sociais se reproduzem por meio de habitus — disposições incorporadas pelos sujeitos — e capital (econômico, cultural, social e simbólico). A estrutura social, nessa ótica, é ao mesmo tempo constrangedora e possibilitadora: constrange porque delimita os caminhos possíveis de mobilidade social, mas também possibilita estratégias diferenciadas conforme o capital acumulado por cada indivíduo.

    No campo do direito, por exemplo, as estruturas jurídicas refletem padrões normativos legitimados, mas que podem estar dissociados das experiências reais das classes populares. Isso reforça a tese de que a estrutura social condiciona o acesso à cidadania, à justiça e à dignidade (Santos, 2004).

    3. Estrutura Social e Anomia: a contribuição de Robert K. Merton

    Entre as contribuições mais importantes da sociologia funcionalista ao estudo da estrutura social está a teoria da anomia desenvolvida por Robert K. Merton. Embora o termo tenha sido introduzido por Émile Durkheim no contexto da modernização acelerada e do colapso das normas tradicionais, Merton reelabora esse conceito em sua clássica obra “Estrutura Social e Anomia”, atribuindo-lhe uma perspectiva estrutural e pragmática.

    Para Merton (2020), anomia não é apenas o estado de desorganização social em tempos de crise, mas um descompasso entre os fins culturalmente valorizados — como sucesso econômico ou prestígio — e os meios institucionalizados para alcançá-los. Quando a estrutura social oferece metas valorizadas, mas falha em garantir a todos acesso equitativo aos meios legítimos, ocorre uma pressão estrutural sobre os indivíduos. Essa tensão é o cerne da anomia.

    Nesse cenário, as respostas dos indivíduos à anomia estrutural podem ser classificadas por Merton em cinco formas de adaptação:

    1. Conformidade: aceitação tanto dos fins culturais quanto dos meios institucionalizados (maioria da população).

    2. Inovação: aceitação dos fins, mas rejeição ou substituição dos meios (ex.: envolvimento com o crime para alcançar riqueza).

    3. Ritualismo: rejeição dos fins, mas adesão formal aos meios (cumprimento de rotinas sem propósito final claro).

    4. Retraimento: rejeição tanto dos fins quanto dos meios (ex.: uso de drogas, marginalidade voluntária).

    5. Rebelião: substituição tanto dos fins quanto dos meios por novos valores e práticas (ex.: movimentos revolucionários ou contraculturais).

    Essas formas de adaptação revelam como a estrutura social, ao invés de apenas organizar, também pode gerar disfunções, exclusões e comportamentos desviantes. Como salienta o autor, “a anomia é um produto social, não um defeito individual” (Merton, 2020). A inovação criminal, por exemplo, não é explicada por falhas morais, mas por barreiras estruturais impostas a determinados segmentos sociais.

    4. A estrutura social como geradora de comportamentos desviantes

    A proposta mertoniana tem implicações profundas para a análise sociológica da criminalidade, da marginalidade e das desigualdades sociais. Ao propor que o desvio é funcional — ou seja, cumpre papéis na manutenção do sistema social —, Merton reinterpreta o crime não como uma anormalidade isolada, mas como expressão legítima (embora condenada) das tensões estruturais de uma sociedade desigual.

    Essa concepção oferece importantes ferramentas para pensar políticas públicas e reformas institucionais. Em vez de investir exclusivamente em repressão penal, o que o modelo mertoniano sugere é que se devem combater as causas estruturais da anomia: ampliar o acesso à educação, ao emprego digno, aos direitos sociais e ao reconhecimento cultural, de modo a diminuir o fosso entre fins e meios.

    A estrutura social, portanto, não apenas influencia o comportamento, mas o modela conforme a posição ocupada por cada sujeito dentro do sistema social. Como ensina Castel (1998), os processos de vulnerabilidade social são construídos historicamente por meio da retirada progressiva das garantias sociais, o que amplia o campo da exclusão e favorece comportamentos de ruptura ou rebelião.

    Nesse sentido, a abordagem de Merton estabelece pontes entre sociologia, direito e políticas públicas, oferecendo uma matriz analítica poderosa para interpretar fenômenos como o encarceramento em massa, o tráfico de drogas, a evasão escolar e até mesmo a ascensão de discursos autoritários em contextos de desagregação social.

    5. Estrutura Social, desigualdades e interseccionalidades

    Ao ampliar o foco da análise da estrutura social para além das categorias econômicas, torna-se necessário considerar os múltiplos eixos de desigualdade que se intercruzam e moldam as experiências sociais dos indivíduos. Classe social, raça, gênero, orientação sexual, etnia, deficiência e territorialidade compõem um mosaico de fatores estruturais que impactam o acesso a recursos, direitos e reconhecimento.

    Essa abordagem interseccional, originalmente formulada no campo dos estudos feministas e racializados por autoras como Kimberlé Crenshaw (2002), insere-se hoje no cerne da análise sociológica da estrutura social. Ela permite compreender, por exemplo, por que uma mulher negra periférica vivencia a estrutura social de modo muito distinto de um homem branco de classe média urbana, mesmo que ambos compartilhem alguma forma de exclusão.

    No Brasil, as desigualdades raciais e de gênero são estruturantes da sociedade. Como destaca Almeida (2018), o racismo estrutural está imbricado nas instituições sociais, de forma que não se trata apenas de preconceitos individuais, mas de uma lógica sistêmica que organiza o acesso a oportunidades e poder. O mesmo se aplica às desigualdades de gênero, denunciadas por diversos movimentos sociais e corroboradas por indicadores sobre violência doméstica, feminicídio, divisão sexual do trabalho e disparidade salarial.

    A estrutura social, nesse sentido, não pode ser pensada como um arranjo neutro ou puramente técnico de posições sociais, mas como um campo de lutas, no qual se inscrevem relações de dominação e resistência. É nesse ponto que a leitura crítica do conceito ganha força analítica, permitindo compreender como a ordem social vigente é sustentada por interesses específicos, ao mesmo tempo em que é contestada por sujeitos historicamente oprimidos.

    6. Globalização e reconfiguração da estrutura social

    Nas últimas décadas, o avanço da globalização e das transformações tecnológicas reconfigurou significativamente a estrutura social das sociedades contemporâneas. O processo de mundialização do capital, aliado à financeirização da economia, à flexibilização das relações de trabalho e ao avanço das tecnologias de informação, provocou deslocamentos importantes nas relações sociais e nos mecanismos de coesão.

    Autores como Bauman (2001) e Giddens (1991) destacam que vivemos em um contexto de modernidade líquida, onde as antigas referências de classe, comunidade e Estado-nação foram relativizadas, dando lugar a formas mais fragmentadas e instáveis de pertencimento. Isso não significa o fim da estrutura social, mas sua recomposição sob novas lógicas: redes em vez de instituições; consumo em vez de cidadania; algoritmos em vez de mediações sociais.

    Essa nova estrutura social, profundamente marcada pela lógica neoliberal, intensificou os processos de individualização, responsabilização e insegurança. O sujeito contemporâneo é pressionado a ser empreendedor de si mesmo, a competir por reconhecimento e a internalizar o fracasso como culpa pessoal — mesmo quando sua posição social é determinada por um conjunto de fatores estruturais que ele não controla.

    Merton, se estivesse vivo, certamente veria nesse cenário a amplificação dos efeitos anômicos. A promessa do sucesso individual permanece culturalmente valorizada, mas os meios legítimos para atingi-la tornam-se cada vez mais inacessíveis para a maioria. A tensão estrutural permanece, mas agora sob novas formas — mais sofisticadas, invisíveis e, por isso mesmo, mais difíceis de serem denunciadas.

    7. Superando desigualdades: a sociologia como ferramenta de transformação social

    A estrutura social não é apenas objeto de descrição analítica; ela deve também ser enfrentada, debatida e transformada à luz de um projeto ético-político de justiça social. Nesse sentido, a sociologia crítica exerce papel decisivo ao desnudar os mecanismos que reproduzem a desigualdade, denunciar as formas de dominação simbólica e propor alternativas baseadas na equidade, na redistribuição e no reconhecimento.

    O pensamento de Merton, ainda que enraizado no funcionalismo estrutural, abre brechas para leituras transformadoras, especialmente quando reconhece que os padrões institucionais vigentes produzem adaptações desviantes em função das barreiras estruturais impostas à realização das metas culturais. Nesse ponto, o desvio — especialmente a inovação — aparece não apenas como patologia, mas como índice de disfuncionalidade sistêmica.

    No contexto brasileiro, essa abordagem pode contribuir para compreender por que políticas públicas orientadas apenas para a repressão (como a guerra às drogas) falham em reduzir a violência estrutural. A criminalização de condutas adotadas por sujeitos privados de meios legítimos para acessar os bens culturais valorizados (trabalho formal, educação de qualidade, moradia digna) acaba punindo o efeito e preservando a causa.

    Por outro lado, experiências exitosas na área da educação, do acesso à justiça e da inclusão social revelam que é possível tensionar e redesenhar a estrutura social. A ampliação das universidades públicas por meio das políticas de cotas, por exemplo, promoveu não apenas mobilidade social, mas também transformação do habitus acadêmico e das representações de pertencimento (Souza, 2019).

    No campo jurídico, a análise estrutural permite questionar a seletividade penal, a desigualdade no acesso à Justiça e o caráter simbólico de muitas normas. O direito, tradicionalmente visto como instrumento neutro, é, na verdade, profundamente enraizado nas estruturas de poder que organiza. A própria noção de cidadania — constitucionalmente garantida — encontra barreiras reais na estrutura social que regula o acesso a bens e direitos.

    A sociologia, ao dialogar com o direito e a política, pode oferecer indicadores concretos para a formulação de políticas públicas mais eficazes e justas. Isso exige, porém, uma leitura crítica da estrutura social que vá além das aparências institucionais e revele os mecanismos ocultos de exclusão. Como destaca Gohn (2019), “o conhecimento sociológico é essencial para a ação política transformadora, pois fornece o mapa das desigualdades e os caminhos possíveis de intervenção”.

    8. Caminhos para uma estrutura social mais justa

    Embora a estrutura social não seja facilmente modificável, sua natureza histórica e socialmente construída abre espaço para a ação coletiva. Movimentos sociais, partidos políticos, organizações da sociedade civil e intelectuais engajados são agentes centrais na luta por estruturas mais justas e inclusivas.

    Um ponto essencial é a articulação entre redistribuição econômica e reconhecimento simbólico. Isso significa que políticas sociais precisam ir além do assistencialismo e buscar efetivamente integrar os sujeitos historicamente marginalizados à vida pública e ao processo de tomada de decisão. A inclusão não pode ser apenas material, mas também epistêmica e cultural.

    É também fundamental repensar os sistemas de avaliação social. As estruturas que valorizam apenas o mérito individual, sem considerar os condicionantes estruturais das trajetórias, reforçam a exclusão e legitimam a desigualdade. Nesse aspecto, a crítica à meritocracia feita por autores como Lilia Schwarcz (2019) ganha relevância ao mostrar como a narrativa meritocrática invisibiliza os privilégios herdados e responsabiliza os indivíduos pelo fracasso.

    A sociologia da estrutura social, nesse sentido, oferece uma perspectiva que combina análise e ação. Ela nos convida a olhar para o mundo com lucidez, mas também com esperança: a esperança de que, ao compreender os mecanismos de dominação, possamos rompê-los e construir uma sociedade mais justa, plural e democrática.

    Conclusão

    A análise da estrutura social, a partir da perspectiva funcionalista de Robert K. Merton e complementada por outras correntes sociológicas críticas, revela a complexidade das relações sociais e os mecanismos estruturais que moldam os comportamentos, distribuem privilégios e perpetuam desigualdades. Ao enfatizar a tensão entre metas culturais e meios institucionalizados, Merton não apenas contribui para a compreensão das adaptações desviantes, como também propõe uma leitura estrutural das condutas humanas, revelando o caráter social do que muitas vezes é tratado como problema individual.

    O conceito de anomia, revisitado sob o prisma da estrutura social, permite compreender os fenômenos da criminalidade, da marginalização e da frustração como expressões legítimas de uma sociedade que promete mais do que é capaz de entregar. Tais contradições ganham contornos ainda mais dramáticos em contextos de profunda desigualdade como o brasileiro, marcado por intersecções entre classe, raça, gênero e território.

    Nesse cenário, a estrutura social aparece como terreno de disputa simbólica e material, sendo possível e necessário tensioná-la por meio da ação política, da crítica intelectual e da mobilização coletiva. O conhecimento sociológico, longe de ser neutro, oferece ferramentas indispensáveis para intervir no mundo social — seja por meio da educação, da formulação de políticas públicas, da atuação jurídica ou da construção de novas formas de convivência mais igualitárias.

    Assim, compreender a estrutura social não é apenas uma exigência acadêmica ou teórica. É, acima de tudo, um compromisso ético com a construção de uma sociedade mais justa, onde os fins culturalmente valorizados estejam acessíveis por meios legitimamente compartilhados. Esse é o desafio de nossa época — e também nossa tarefa histórica.


    Referências Bibliográficas

    ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2018.

    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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    CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.

    CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Comitê para Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU. Genebra, 2002.

    DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

    GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2019.

    GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

    MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.

    MERTON, Robert K. Estrutura social e anomia. In: PEREIRA, Jailson; MELO, Ana Cristina Corrêa (org.). Direito em série 3. Capivari de Baixo: Editora FUCAP, 2020. p. 154-166.

    SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

    SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2004.

    SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2019.

    WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1991.

  • Agricultura patronal

    A agricultura patronal no Brasil tem suas raízes fincadas nas estruturas coloniais de exploração da terra e da mão de obra. No decorrer do século XX, esse modelo consolidou-se especialmente na Zona da Mata Nordestina por meio do sistema de monocultura canavieira, estruturado sob o regime de grandes propriedades – os engenhos – e fortemente articulado à indústria sucroalcooleira. Com base nesse sistema, formou-se um padrão de dominação territorial centrado na figura do usineiro, cuja atuação extrapolava os limites econômicos e alcançava o controle político e social dos trabalhadores rurais (Melo, 1975; Andrade, 1986).

    A denominada agricultura patronal, conforme apontado por Olalde (2010), caracteriza-se pela dissociação entre gestão e trabalho, centralização administrativa, uso extensivo da terra e ênfase na produtividade em larga escala, com forte apoio das políticas estatais voltadas ao agronegócio. Nesse modelo, o uso intensivo de mão de obra assalariada era comum, frequentemente em condições precárias, o que agravava a alienação cultural e a exclusão social no campo.

    Com o avanço da crise da agroindústria canavieira nas últimas décadas do século XX, muitas usinas declararam falência, gerando desemprego em massa e deixando vastas extensões de terras improdutivas. Esse contexto abriu espaço para a atuação dos movimentos sociais e do Estado por meio da reforma agrária, o que possibilitou a transição, em determinados territórios, da agricultura patronal para a agricultura familiar. Essa transição, no entanto, não se deu de forma homogênea, mas em intensidades variadas conforme a especificidade de cada local.

    No caso do Assentamento Ilhetas, situado na Zona da Mata Sul de Pernambuco, tal transição representa uma experiência emblemática. Trata-se de um território anteriormente ocupado pela Usina Central Barreiros, cuja falência permitiu a desapropriação das terras pelo INCRA e a instalação de um projeto de reforma agrária, resultando em significativas mudanças socioespaciais. A passagem do engenho ao assentamento, do patrão ao coletivo, configura não apenas uma mudança estrutural, mas simbólica e cultural, expressando uma nova forma de relação com a terra, com o trabalho e com a política rural (PDA, 2004).

    A análise proposta adota a perspectiva dialética do espaço geográfico, conforme delineado por Milton Santos (1978; 2002), entendendo o espaço como simultaneamente causa e consequência das práticas sociais. Assim, este estudo busca compreender como a substituição do modelo patronal por um modelo familiar alterou as dinâmicas de poder, a estrutura fundiária, as formas de produção e as condições de vida dos agricultores assentados, oferecendo uma reflexão crítica sobre os limites e possibilidades da agricultura familiar como alternativa ao agronegócio tradicional.

    O Caso Ilhetas: Transição, Território e Repercussões

    O Assentamento Ilhetas, localizado no município de Tamandaré (PE), integra uma região marcada historicamente pela presença da monocultura canavieira, com forte concentração fundiária e exploração sistemática da força de trabalho. A usina Central Barreiros, que antes ocupava o território, foi durante décadas o principal eixo econômico local, empregando trabalhadores em condições precárias, sustentando uma estrutura hierárquica rígida e promovendo a alienação cultural dos camponeses, cujas vidas giravam em torno do “tempo da cana” e da autoridade do patrão (Silva, 2012).

    Com a crise estrutural da agroindústria canavieira nordestina – causada, entre outros fatores, pela defasagem tecnológica, pela concentração de incentivos nas usinas mais competitivas do Sudeste e pela reestruturação dos mercados de açúcar e álcool – a falência da usina Central Barreiros criou um vácuo socioeconômico e territorial. Esse vácuo foi preenchido por uma reorganização dos atores sociais: antigos assalariados se engajaram em movimentos de luta pela terra, demandando a desapropriação das terras ociosas. Através da intervenção do INCRA e da atuação de sindicatos rurais e movimentos sociais como o MST, constituiu-se o Assentamento Ilhetas como uma experiência concreta de reforma agrária na Zona da Mata.

    O processo de transição da agricultura patronal para a agricultura familiar provocou o que Silva (2012) denomina “repercussões sócio-espaciais”: alterações profundas na organização do território, nas práticas agrícolas e nas dinâmicas sociais. A terra, antes monopólio de um grupo reduzido, passou a ser redistribuída em minifúndios produtivos; o trabalho, antes subordinado, tornou-se autônomo; e a monocultura da cana-de-açúcar deu lugar a práticas mais diversificadas, ainda que, em alguns casos, mantendo a cana como cultura dominante, mas agora sob nova gestão.

    Do ponto de vista da estrutura fundiária, observou-se um processo de fragmentação do latifúndio e o surgimento de múltiplas unidades produtivas familiares. Essa mudança rompe com o histórico modelo concentrador de terras e representa uma inflexão nas relações de poder locais. Ao mesmo tempo, a figura do trabalhador rural assalariado cede lugar à do agricultor familiar, agente de sua própria produção, gestor de seu tempo e de sua terra.

    Contudo, a transição não foi isenta de contradições. Como aponta a dissertação de Silva (2012), a mudança de modelo não eliminou por completo os resquícios da lógica patronal. Em muitos casos, a presença simbólica do engenho, o hábito da monocultura e as dificuldades de acesso a políticas públicas específicas ainda limitam o potencial da agricultura familiar como modelo plenamente emancipador. Persistem desafios ligados à infraestrutura, à comercialização, à assistência técnica e à organização coletiva da produção.

    Ainda assim, o caso do Assentamento Ilhetas revela um importante deslocamento paradigmático: de um território controlado por uma lógica empresarial centrada na exploração e no lucro, para um espaço em que os sujeitos da terra se tornam protagonistas de suas trajetórias. A territorialidade do assentamento se define não apenas pela posse da terra, mas pelo uso social que dela se faz, pela diversificação das culturas, pela ressignificação do tempo e pela reconstrução da identidade rural.

    Repercussões Sociais, Econômicas e Simbólicas da Transição

    A substituição da agricultura patronal pela agricultura familiar no Assentamento Ilhetas produziu transformações significativas nas dimensões sociais, econômicas e simbólicas da vida rural. A análise dialética dessas mudanças revela uma reconfiguração do espaço agrário, que não é apenas produtiva, mas também cultural e política. Conforme destaca Silva (2012), as mudanças vão além da mera troca de atores ou de sistemas técnicos: envolvem a constituição de novas formas de pertencimento, de trabalho e de organização do tempo e do espaço.

    No plano econômico, houve um redesenho das formas de produção agrícola. A diversificação das culturas, ainda que parcialmente condicionada pela persistência da cana-de-açúcar como herança do modelo anterior, permitiu a produção de hortaliças, frutas, milho e feijão em regime de policultura. Essa nova lógica produtiva não visa à exportação nem à maximização de lucros, mas sim à segurança alimentar, à geração de renda mínima e à sustentabilidade familiar. Com isso, as cadeias produtivas passam a ser organizadas com base em redes curtas de comercialização, como feiras locais e vendas diretas à margem das rodovias (Silva, 2012).

    A propriedade da terra e dos meios de produção, agora em mãos dos próprios agricultores, inaugura uma lógica de autogestão e autonomia, ainda que essa autonomia seja relativa e permeada por novos desafios, como o acesso limitado ao crédito, à assistência técnica e à tecnologia apropriada. Como mostra a pesquisa de campo da dissertação, a ausência de políticas públicas consistentes limita o alcance transformador da reforma agrária. Apesar disso, a própria gestão comunitária dos lotes, o associativismo e o engajamento em cooperativas apontam para práticas de fortalecimento da economia solidária no território.

    No plano social, a transição trouxe implicações expressivas para a vida cotidiana dos agricultores. A centralidade do trabalho familiar no cultivo da terra implicou uma revalorização dos vínculos de parentesco e da divisão do trabalho com base na colaboração. O tempo deixou de ser ditado pela lógica da usina e passou a ser regulado pelas estações, pelo ritmo da comunidade e pelas necessidades das famílias. A reocupação do território por sujeitos antes subalternizados implicou, portanto, um reposicionamento do trabalhador rural como produtor e cidadão.

    Além disso, houve também repercussões simbólicas fundamentais. O espaço anteriormente dominado pelo engenho – símbolo da dominação patronal – foi ressignificado enquanto território de resistência e reconstrução de identidades. A escola comunitária, as casas autoconstruídas, os eventos culturais e as feiras de agricultura familiar se tornaram marcos materiais e imateriais de uma nova territorialidade. Como aponta Silva (2012), o território de Ilhetas tornou-se um espaço ativo e contínuo, que conserva elementos do passado (a presença da cana, a memória da usina), mas também projeta novos horizontes de vida rural.

    Outro elemento simbólico relevante é a reconstrução do sentimento de pertencimento. Enquanto o trabalhador das usinas era subordinado, invisibilizado e descartável, o agricultor familiar assume a condição de sujeito histórico. A terra, que antes era propriedade de poucos, torna-se fonte de identidade coletiva, espaço de luta e expressão cultural. Essa reapropriação do território representa uma profunda ruptura com a alienação herdada do sistema patronal e configura uma nova racionalidade no uso do espaço agrário.

    No entanto, o estudo não idealiza essa transição. Como ressalta o autor, há permanências importantes: a cana ainda domina parte da paisagem; os desafios estruturais persistem; e a dependência de políticas públicas evidencia a fragilidade do modelo familiar diante das forças do mercado e do capital. A coexistência dos dois modelos no espaço rural – agricultura patronal e agricultura familiar – torna o território híbrido, instável, mas também potencialmente transformador.

    Considerações Finais

    A transição da agricultura patronal para a agricultura familiar no Assentamento Ilhetas não representa apenas uma mudança na forma de produzir, mas uma inflexão profunda na estrutura social do campo. A análise desenvolvida por Silva (2012) permite observar como a reforma agrária, embora limitada e marcada por tensões, produziu efeitos concretos na vida dos trabalhadores antes submetidos ao regime da monocultura e do assalariamento.

    Sob a perspectiva de Karl Marx, o modelo patronal reproduz as lógicas clássicas da exploração capitalista: separação entre o trabalhador e os meios de produção, alienação do tempo de vida e organização do trabalho em função da mais-valia. Já para Kautsky, o pequeno produtor tende a ser absorvido pelo capital, tornando-se apenas uma variante da racionalidade burguesa. Em Ilhetas, contudo, observa-se uma zona de tensão entre essas duas perspectivas. A agricultura familiar ali instalada não corresponde integralmente ao modelo camponês autônomo idealizado por Marx nem ao pequeno capitalista descrito por Kautsky. É, antes, um espaço de síntese entre resistência e adaptação.

    A perspectiva de Chayanov, que compreende o camponês como agente de uma economia moral, baseada na organização familiar do trabalho e na busca pela reprodução social, parece dialogar mais diretamente com o que se verifica em Ilhetas. A centralidade da família, a gestão autônoma da produção e a resistência à lógica do lucro imediato compõem elementos desse paradigma. No entanto, as dificuldades impostas pelo mercado, pela política agrária e pelas heranças do modelo patronal indicam os limites dessa forma de resistência.

    Do ponto de vista geográfico, a contribuição de Milton Santos (2002) é fundamental. A noção de espaço como totalidade, como algo dinâmico, reprodutor, ativo e contínuo, ajuda a compreender Ilhetas como um território híbrido, onde passado e presente se entrelaçam. A coexistência de práticas patronais (como o cultivo da cana em moldes tradicionais) com experiências agroecológicas e autogestionárias revela que o espaço não é estático, mas campo de disputa e possibilidade.

    As repercussões socioespaciais observadas no assentamento demonstram que o território é, acima de tudo, produto da ação humana em contexto de conflitos e negociações. A superação do modelo patronal não se dá por decreto ou ruptura súbita, mas por um processo contínuo de transformação, onde permanências e mudanças se entrelaçam. O reconhecimento dessas ambivalências é essencial para evitar leituras idealizadas tanto da agricultura familiar quanto da reforma agrária.

    Assim, o caso Ilhetas nos ensina que a transformação social no campo requer mais do que redistribuição fundiária. Exige o fortalecimento das políticas públicas, o incentivo à agroecologia, o acesso a crédito e mercados, a valorização dos saberes locais e a construção de uma nova cultura territorial. Em última instância, trata-se de reconhecer que o direito à terra é também o direito de produzir, de viver e de pertencer.

    Referências Bibliográficas

    ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Atlas, 1986.

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    CHAYANOV, Alexander. A organização da unidade econômica camponesa. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1990.

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    KAUTSKY, Karl. A questão agrária. São Paulo: Nova Cultura, 1995.

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    OLALDE, Rosa Maria. O desenvolvimento rural sustentável e a agricultura familiar. Brasília: NEAD, 2010.

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    SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 2002.

    SILVA, Heverton Ralph Arcanjo Batista da. Repercussões sócio-espaciais na Zona da Mata Pernambucana: a transição da agricultura patronal para a agricultura familiar no Assentamento Ilhetas. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.

  • Agricultura moderna e transformações

    Nas últimas décadas, a agricultura passou por profundas transformações técnicas, sociais e econômicas, marcando o que se convencionou chamar de “agricultura moderna”. Longe de ser um fenômeno meramente técnico ou agronômico, a modernização agrícola é um processo enraizado em relações sociais, políticas e estruturais. Seu avanço está associado à industrialização do campo, à introdução de pacotes tecnológicos e à reconfiguração das dinâmicas de produção, trabalho e sustentabilidade ambiental.

    A perspectiva sociológica, ao lado da agronomia, permite compreender que a agricultura moderna não é apenas um avanço técnico, mas uma reestruturação social do espaço rural. Conforme Gohn (1999), as transformações nos modos de produção são sempre atravessadas por disputas de poder e por interesses econômicos, o que se aplica diretamente ao processo de modernização agrícola.

    As raízes da modernização agrícola

    A chamada Revolução Verde, iniciada no pós-Segunda Guerra Mundial, é apontada como marco inicial da agricultura moderna. Esse processo consistiu na introdução massiva de insumos químicos, mecanização, sementes geneticamente modificadas e práticas de irrigação intensiva, com o objetivo declarado de aumentar a produtividade agrícola e combater a fome mundial (Altieri, 2002).

    Contudo, do ponto de vista sociológico, essa revolução não se deu de forma neutra ou homogênea. De acordo com Porto-Gonçalves (2006), a adoção do modelo tecnocrático de agricultura beneficiou grandes produtores, aprofundando desigualdades sociais no campo. Pequenos agricultores, muitas vezes, não tiveram acesso aos insumos, créditos e tecnologias necessários para competir nesse novo cenário, levando à concentração fundiária e ao êxodo rural.

    Além disso, a lógica da produtividade como valor supremo deslocou a centralidade da agricultura familiar e da agroecologia, substituindo práticas sustentáveis por modelos de monocultura e uso intensivo de agrotóxicos, o que resultou em sérios impactos ambientais e sociais.

    Transformações nas relações de trabalho rural

    A modernização da agricultura provocou uma reconfiguração profunda das relações de trabalho no campo. A introdução de maquinário agrícola e o uso intensivo de insumos industriais diminuíram a demanda por mão de obra, gerando um processo de desemprego estrutural e deslocamento populacional rural-urbano.

    Na perspectiva sociológica, esse processo pode ser compreendido a partir do conceito de “exclusão produtiva” (Santos, 2000), no qual trabalhadores deixam de ser absorvidos pelas novas exigências do modelo técnico e são marginalizados social e economicamente. Com o advento da agricultura moderna, a figura do trabalhador rural tradicional — inserido em arranjos familiares ou em relações de parceria — deu lugar a formas precarizadas de trabalho, como o bóia-fria, o terceirizado e o assalariado eventual.

    Paralelamente, houve um aumento na informalidade e nas jornadas intermitentes, especialmente em atividades sazonais como a colheita da cana-de-açúcar, laranja e soja. Conforme relata Delgado (2012), essa mudança favoreceu a intensificação da exploração do trabalho e a fragmentação das identidades coletivas dos camponeses e assalariados rurais.

    Outro ponto importante é o envelhecimento do trabalhador rural e a evasão dos jovens, que buscam alternativas urbanas diante da ausência de políticas públicas para a permanência no campo. A sociologia do trabalho rural revela, portanto, que a modernização agrícola não significou uma melhoria automática nas condições de vida, mas antes, um redesenho do trabalho pautado por maior produtividade e menor inclusão.

    A lógica da produtividade também tem implicações de gênero. Estudos apontam que, com a mecanização, muitas atividades tradicionalmente desempenhadas por mulheres deixaram de ser valorizadas economicamente, agravando desigualdades e invisibilizando o papel feminino na produção rural (Carvalho, 2015).

    A agricultura moderna e o meio ambiente

    Um dos maiores paradoxos da agricultura moderna é o seu impacto ambiental. Enquanto promove avanços produtivos, também intensifica a degradação dos recursos naturais. A dependência de fertilizantes químicos e defensivos agrícolas tem contribuído para a contaminação de solos, lençóis freáticos e corpos hídricos. Segundo Altieri (2002), essa lógica rompe com os ciclos naturais e reduz a biodiversidade, tornando os ecossistemas mais vulneráveis.

    O uso de monoculturas em larga escala — como soja, milho e cana-de-açúcar — implica a substituição de ecossistemas diversos por paisagens homogêneas, com baixa resiliência ecológica. A erosão do solo, a compactação da terra e a desertificação são efeitos colaterais comuns em regiões onde a agricultura moderna avança sem planejamento ambiental adequado.

    Além disso, a emissão de gases de efeito estufa pela queima de combustíveis fósseis, pelo uso de nitrogênio sintético e pela decomposição de resíduos orgânicos contribui significativamente para as mudanças climáticas. A agropecuária industrial é uma das principais fontes globais de metano, um gás de efeito estufa com alto potencial de aquecimento global.

    Na perspectiva sociológica, esses impactos ambientais são inseparáveis das estruturas de poder que orientam as decisões sobre uso da terra. A “ecologia política”, termo utilizado por autores como Guha e Martinez-Alier (1997), enfatiza que a degradação ambiental é uma consequência de um modelo econômico centrado no lucro, que desconsidera os saberes locais e os limites ecológicos.

    A crise ambiental gerada pela agricultura moderna, portanto, é também uma crise social, pois afeta diretamente as comunidades rurais mais vulneráveis, expostas à contaminação, à insegurança hídrica e à expropriação de seus modos de vida.

    Soberania alimentar e controle corporativo

    A agricultura moderna, ao incorporar práticas industriais e tecnológicas, alterou radicalmente o paradigma da produção e do consumo de alimentos. Um dos aspectos mais críticos desse processo é o crescente controle corporativo sobre as cadeias produtivas alimentares. Grandes conglomerados multinacionais passaram a dominar a produção de sementes, fertilizantes, defensivos agrícolas, equipamentos, logística, distribuição e até mesmo o varejo alimentar (Silveira, 2005).

    Esse domínio verticalizado tem implicações diretas na soberania alimentar dos povos, conceito que, segundo Altieri e Toledo (2011), se refere ao direito das populações de decidir seus próprios sistemas alimentares, respeitando culturas locais e práticas sustentáveis. Ao monopolizar os insumos e ditar os padrões de produção, as corporações transnacionais fragilizam a autonomia dos agricultores e impõem um modelo de consumo desvinculado das necessidades locais.

    A dependência de sementes transgênicas, por exemplo, representa uma ruptura com o ciclo tradicional de cultivo e reprodução das variedades agrícolas. Agricultores que antes selecionavam e guardavam suas próprias sementes agora precisam comprá-las anualmente, muitas vezes acompanhadas de pacotes tecnológicos obrigatórios (como fertilizantes e agrotóxicos da mesma marca). Isso não apenas compromete a biodiversidade agrícola, mas também cria uma relação de dependência econômica.

    Além disso, o modelo agroindustrial voltado à exportação — centrado na produção de commodities como soja, milho e carnes — desvia recursos naturais e terras férteis da produção de alimentos básicos para o consumo interno. Esse fenômeno, conhecido como “acaparamento de terras”, impacta gravemente a segurança alimentar, especialmente nos países periféricos (Borras Jr. et al., 2012).

    Do ponto de vista sociológico, estamos diante de um processo de alienação alimentar, em que os sujeitos perdem o controle sobre o que produzem e consomem. Conforme aponta Bourdieu (1983), a dominação simbólica se expressa também na cultura alimentar, que é cada vez mais moldada por interesses mercadológicos e padrões globalizados, em detrimento de práticas locais e saberes tradicionais.

    Portanto, a agricultura moderna, embora tecnicamente avançada, tem contribuído para a concentração de poder no campo e para a erosão da diversidade alimentar e cultural dos povos. Esse modelo hegemônico tem sido questionado por movimentos sociais, como a Via Campesina, que defendem uma reforma agrária popular, a agroecologia e a retomada do controle comunitário sobre os alimentos.

    Alternativas sociotécnicas — agroecologia e agricultura regenerativa

    Diante das contradições geradas pela agricultura moderna, diversos movimentos sociais, pesquisadores e agricultores têm se articulado em torno de propostas alternativas que buscam aliar produtividade, justiça social e equilíbrio ambiental. Entre essas propostas destacam-se a agroecologia e a agricultura regenerativa, que representam não apenas técnicas agronômicas distintas, mas verdadeiros paradigmas sociotécnicos de transformação do campo.

    A agroecologia, conforme definido por Altieri (2009), é uma ciência, prática e movimento social que propõe a integração entre os saberes tradicionais e os conhecimentos científicos na construção de sistemas agrícolas sustentáveis, resilientes e socialmente justos. Ela valoriza a biodiversidade, o manejo ecológico do solo, o uso racional da água, o fortalecimento da agricultura familiar e o protagonismo dos agricultores nos processos de inovação.

    Na perspectiva sociológica, a agroecologia configura-se como um projeto contra-hegemônico. Como destaca Gohn (2014), ela articula demandas políticas e culturais por autonomia, equidade e reconhecimento de modos de vida historicamente marginalizados. Os movimentos agroecológicos não apenas propõem novas práticas técnicas, mas também lutam por políticas públicas, reforma agrária e democratização do acesso à terra e aos recursos naturais.

    A agricultura regenerativa, por sua vez, compartilha vários princípios com a agroecologia, mas enfatiza ainda mais o papel ativo da agricultura na restauração de ecossistemas degradados. Seus métodos incluem o plantio direto, o uso de cobertura vegetal permanente, a integração lavoura-pecuária-floresta, o uso de biofertilizantes e a recuperação da microbiota do solo. Como argumenta Savory (2013), esse modelo busca reverter os efeitos da degradação ambiental provocada pelo modelo industrial, restaurando os ciclos naturais e o sequestro de carbono atmosférico.

    Do ponto de vista da agronomia, essas práticas são viáveis e já demonstraram ganhos em produtividade e resistência a variações climáticas. Do ponto de vista sociológico, representam uma ruptura com a lógica extrativista da agricultura moderna e uma abertura para uma nova racionalidade produtiva baseada na convivência com os ciclos da natureza, na cooperação e na valorização dos conhecimentos locais.

    É fundamental observar que essas alternativas não são neutras, tampouco destituídas de disputa. Conforme Gramsci (2000), todo novo modelo social e produtivo disputa hegemonia com o modelo dominante, e sua consolidação depende tanto de experiências práticas exitosas quanto da capacidade de gerar uma nova consciência coletiva. A agroecologia, portanto, é também uma prática política que visa redefinir os significados de desenvolvimento, sustentabilidade e bem viver.

    Essas alternativas ganham força em experiências como os assentamentos da reforma agrária no Brasil, as escolas de formação agroecológica, as feiras de alimentos orgânicos e as políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Ao desafiar a lógica da agricultura moderna convencional, agroecologia e agricultura regenerativa apontam para um futuro rural mais plural, justo e sustentável.

    Considerações finais e perspectivas futuras

    A agricultura moderna representa uma das mais profundas transformações já ocorridas nas sociedades humanas, ao redefinir não apenas as formas de cultivo, mas também as estruturas sociais, econômicas e políticas associadas à produção de alimentos. Ao longo deste artigo, procuramos demonstrar, sob a perspectiva sociológica e agronômica, que esse processo não pode ser compreendido apenas em termos de progresso técnico, mas deve ser analisado a partir das relações de poder, das desigualdades sociais e dos impactos ambientais que engendra.

    Como vimos, a Revolução Verde e seus desdobramentos consolidaram um modelo agrícola centrado na produtividade, na tecnificação e na mercantilização dos recursos naturais. Se, por um lado, esse modelo ampliou os volumes de produção agrícola, por outro, intensificou desigualdades sociais, degradou o meio ambiente e comprometeu a soberania alimentar de inúmeras populações.

    A sociologia contribui para revelar que a modernização agrícola está inserida em lógicas sistêmicas de dominação, tanto nos planos econômicos quanto culturais. A dependência tecnológica, a concentração fundiária, a invisibilização dos saberes tradicionais e o controle corporativo sobre as cadeias alimentares são elementos que demonstram o caráter excludente da modernidade agrária.

    Contudo, também observamos a emergência de práticas e saberes alternativos, que indicam outras possibilidades de produção agrícola mais justas, sustentáveis e democráticas. A agroecologia e a agricultura regenerativa se apresentam como paradigmas capazes de articular ciência, tradição, justiça social e sustentabilidade ecológica, desafiando a hegemonia do agronegócio e propondo novas formas de organização do trabalho, do consumo e da convivência com a natureza.

    Para o futuro, é necessário construir políticas públicas que incentivem práticas sustentáveis, garantam a permanência das famílias no campo, promovam a reforma agrária e assegurem acesso à terra, à água e aos recursos produtivos. É também urgente fortalecer a educação no campo, valorizando os saberes locais e a formação crítica dos sujeitos rurais, em sintonia com os princípios da Educação do Campo (Caldart, 2004).

    Mais do que um debate técnico, a agricultura moderna e suas alternativas exigem uma reflexão ética, política e epistemológica sobre o tipo de sociedade que desejamos construir. Em tempos de crise climática, insegurança alimentar e desigualdade crescente, repensar o modelo agrícola é uma tarefa coletiva inadiável.


    Referências bibliográficas

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  • Teatro do absurdo: alguns apontamento sociológicos

    O “Teatro do Absurdo” é um movimento artístico e dramatúrgico que emergiu no contexto do pós-guerra europeu, especialmente entre as décadas de 1940 e 1960. Sua essência reside na ruptura com a lógica tradicional da narrativa linear, da coerência psicológica dos personagens e da progressão dramática típica do teatro clássico. Em vez disso, esse teatro coloca em cena o absurdo da existência humana, caracterizado pela falta de sentido, pela incomunicabilidade e pela repetição estéril das ações cotidianas. A partir de uma perspectiva sociológica, esse estilo dramatúrgico pode ser interpretado como uma poderosa crítica à racionalidade moderna, à alienação e às estruturas sociais que oprimem o sujeito em uma sociedade cada vez mais burocratizada e esvaziada de sentido.


    1. O Teatro do Absurdo: Origens e Fundamentos

    A expressão “Teatro do Absurdo” foi cunhada pelo crítico Martin Esslin em sua obra homônima publicada em 1961. Para Esslin (2006), esse teatro expressa uma visão de mundo influenciada pelo existencialismo e pela filosofia do absurdo, em especial pelas ideias de Albert Camus, segundo as quais o ser humano está condenado a buscar sentido em um mundo que, por sua natureza, é essencialmente desprovido de lógica última.

    Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a experiência do holocausto, o uso da bomba atômica e a escalada da Guerra Fria produziram uma sensação generalizada de colapso da razão ocidental. O ideal de progresso, sustentado desde o Iluminismo, foi abalado, e os artistas passaram a buscar novas formas de representar esse desencanto coletivo. É nesse cenário que o Teatro do Absurdo floresce como resposta estética à crise de sentido da modernidade.

    Ao abolir a lógica dramática tradicional, os dramaturgos do absurdo buscam representar a vida tal como ela se apresenta: fragmentada, desordenada e muitas vezes incoerente. As falas dos personagens, repletas de silêncios, repetições e contradições, refletem a dificuldade do ser humano em se comunicar e estabelecer relações autênticas. Como afirma Camus (1996), “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio do mundo”.


    2. A Sociologia e o Absurdo: Entre Alienação e Performatividade

    Do ponto de vista sociológico, o Teatro do Absurdo pode ser interpretado como uma metáfora das estruturas sociais que regulam a vida moderna. A alienação — conceito central no pensamento de Karl Marx — adquire novas dimensões nas obras absurdas, pois não se limita apenas ao mundo do trabalho, mas se estende às relações interpessoais, à linguagem e à própria identidade.

    Erving Goffman, em sua teoria da interação social, compara a vida cotidiana a uma encenação teatral. Para ele, os indivíduos são “atores sociais” que desempenham papéis em diferentes “palcos”, buscando manter uma imagem coerente diante dos “espectadores”. Essa visão dialoga profundamente com a estética do absurdo, em que os personagens estão presos a rotinas e comportamentos vazios de sentido, como ocorre em Esperando Godot, de Beckett (2006), onde dois homens esperam indefinidamente por alguém que nunca chega, repetindo diálogos estéreis e gestos mecânicos.

    Nesse contexto, a obra de Eugène Ionesco, A Cantora Careca (2009), representa um exemplo paradigmático. O texto expõe o esvaziamento da linguagem e a banalização da comunicação no cotidiano da classe média. A repetição de frases clichês, a desconexão entre os interlocutores e a circularidade do enredo funcionam como uma crítica ao automatismo das relações sociais modernas.

    Zygmunt Bauman, ao analisar a modernidade líquida, oferece uma chave de leitura contemporânea para o Teatro do Absurdo. Segundo o autor, as relações sociais na modernidade são marcadas por sua fragilidade e volatilidade, o que torna o sujeito cada vez mais inseguro e desamparado. Os personagens absurdos, muitas vezes sem passado definido e sem perspectiva de futuro, habitam esse universo de incertezas, traduzindo, em cena, a fluidez das identidades e o colapso das instituições de sentido.

    3. O Absurdo como Crítica à Burocracia e ao Autoritarismo

    Um dos traços mais marcantes do Teatro do Absurdo é sua capacidade de transpor para a cena não apenas o vazio existencial do sujeito moderno, mas também o funcionamento opressivo das instituições burocráticas e autoritárias. Por meio de situações repetitivas, diálogos ilógicos e personagens sem profundidade psicológica, esse teatro satiriza os sistemas sociais que, sob o pretexto da ordem e da racionalidade, engendram a desumanização e o controle impessoal dos indivíduos.

    A burocracia, como destacava Max Weber (1999), é uma forma de dominação racional-legal, na qual o poder se estrutura por meio de normas, procedimentos e hierarquias formais. Se, por um lado, ela é necessária à organização das sociedades modernas, por outro, pode se tornar um instrumento de alienação e submissão, quando transforma os sujeitos em simples números ou peças de uma engrenagem impessoal. O Teatro do Absurdo, ao colocar em cena personagens presos a estruturas ininteligíveis e situações opressoras, opera uma crítica feroz à racionalidade burocrática moderna.

    Na peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco (2008), por exemplo, os cidadãos de uma cidade fictícia passam a se transformar em rinocerontes, num processo de metamorfose coletiva que simboliza a adesão irracional e conformista a sistemas totalitários. O protagonista, Bérenger, é o único a resistir, mas sua resistência se dá de modo ambíguo, marcada por dúvidas e hesitações. A peça, escrita no contexto do crescimento do fascismo e do stalinismo, denuncia os perigos do conformismo burocratizado, da massificação e da diluição da responsabilidade individual.

    Essa crítica também pode ser observada na obra de Franz Kafka, cuja estética influenciou profundamente o Teatro do Absurdo. Em O Processo, Josef K. é preso sem saber o motivo e submetido a um sistema judicial incompreensível e intransigente. A lógica kafkiana — impregnada de circularidade, desamparo e arbitrariedade — é retomada por dramaturgos do absurdo como um espelho das práticas autoritárias e burocráticas que esvaziam o sujeito de sua autonomia e voz.

    Do ponto de vista sociológico, a crítica à burocracia e ao autoritarismo no Teatro do Absurdo pode ser interpretada como um alerta contra o fetichismo da ordem e da racionalidade. Ao representar personagens que obedecem mecanicamente a normas sem sentido, os dramaturgos expõem como as estruturas sociais podem se tornar cárceres simbólicos. Tal como analisa Michel Foucault (1987), o poder moderno se exerce não apenas por meio da repressão direta, mas também por dispositivos disciplinares que naturalizam o controle e a vigilância.

    Nesse sentido, o riso gerado pelo absurdo não é escapista; ao contrário, ele carrega uma função crítica. Como lembra Bakhtin (2010), o riso tem o poder de desestabilizar as formas de poder estabelecidas, subvertendo-as através da paródia e do grotesco. As cenas repetitivas, as falas sem nexo e os gestos mecânicos das peças absurdas parodiam o cotidiano das instituições modernas, revelando sua rigidez e ineficácia.

    Ademais, essa crítica pode ser estendida à própria linguagem burocrática, marcada por uma formalidade vazia que oculta relações de poder. A linguagem no Teatro do Absurdo, ao invés de esclarecer, confunde; ao invés de comunicar, silencia. Como aponta Pierre Bourdieu (1996), a linguagem não é apenas um meio de expressão, mas um instrumento de dominação simbólica. Ao desconstruir os códigos convencionais do discurso, os autores do absurdo desestabilizam a autoridade do “discurso oficial” e abrem espaço para outras formas de expressão e resistência.

    4. Teatro, Ideologia e Resistência: O Absurdo como Contranarrativa Política

    Embora muitos críticos tenham inicialmente interpretado o Teatro do Absurdo como apolítico — uma vez que evita referências diretas a eventos históricos ou figuras públicas —, essa leitura tem sido progressivamente revista à luz de uma abordagem sociológica mais crítica. Longe de ser uma forma de escapismo ou resignação diante do caos do mundo, o absurdo opera como uma potente contranarrativa política: ao recusar os parâmetros do teatro realista e as lógicas do discurso dominante, ele abre espaço para a problematização dos valores hegemônicos e das ideologias naturalizadas.

    A subversão das convenções teatrais — como a quebra da linearidade temporal, a dissolução da coerência dos personagens e a fragmentação do enredo — constitui, por si só, um ato político. Segundo Eagleton (2011), toda forma estética carrega uma dimensão ideológica. O teatro tradicional, ao reproduzir estruturas narrativas previsíveis e personagens com trajetórias claras, tende a reforçar a ideia de que o mundo social é ordenado, compreensível e funcional. Já o Teatro do Absurdo, ao expor o não sentido, a incomunicabilidade e a repetição estéril, desmonta essa ilusão de harmonia e questiona as bases da ordem social vigente.

    Essa estratégia de desestabilização se alinha à crítica da ideologia proposta por autores da Escola de Frankfurt, especialmente Theodor Adorno e Herbert Marcuse. Para Adorno (1993), a arte verdadeira não deve oferecer consolo, mas provocar desconforto, desautomatizar a percepção e revelar as contradições da sociedade. O Teatro do Absurdo encarna essa função negativa da arte, operando como uma espécie de “espelho deformante” que evidencia a alienação, o conformismo e o esvaziamento simbólico da vida social sob o capitalismo tardio.

    A ideologia, segundo Althusser (1985), interpelaria os indivíduos como sujeitos por meio de aparelhos ideológicos, como a escola, a religião e os meios de comunicação. O teatro tradicional poderia ser entendido como parte desses aparelhos, ao reforçar normas e valores dominantes. Já o teatro absurdo escapa a essa lógica ao não oferecer modelos de identificação ou mensagens moralizantes. Seus personagens não são heróis nem vilões; são figuras anônimas, perdidas em situações sem propósito, o que impede o espectador de projetar-se neles e, assim, o força a refletir criticamente sobre o sentido da ação e da existência.

    Um exemplo disso pode ser observado na peça Fim de Partida, de Samuel Beckett (2006), na qual personagens mutilados e cegos vivem confinados em um espaço fechado, mergulhados em rotinas repetitivas e diálogos circulares. A ausência de enredo e de resolução final nega qualquer expectativa de redenção ou progresso. Em vez de oferecer uma narrativa de superação, a peça confronta o espectador com a estagnação e a falência do sentido. Trata-se de uma forma de resistência simbólica que rompe com as promessas da racionalidade instrumental moderna.

    No contexto latino-americano, essa função crítica do absurdo também foi apropriada por autores que utilizaram a linguagem do nonsense para denunciar regimes autoritários. Um exemplo é o trabalho do dramaturgo argentino Griselda Gambaro, que, embora não filiada diretamente ao Teatro do Absurdo europeu, explorou o grotesco e a fragmentação cênica para tematizar a repressão política e o desaparecimento forçado durante a ditadura militar.

    Do ponto de vista sociológico, o absurdo pode ser visto como uma “forma estética da resistência”, nos termos de James C. Scott (2002). Ainda que não opere por meio da denúncia direta, ele desestabiliza os modos habituais de ver e compreender o mundo, abrindo fissuras no discurso dominante. Trata-se de uma política do estranhamento, que atua por meio da dissonância, da negação e do deslocamento simbólico.

    Portanto, longe de ser neutro ou alienado, o Teatro do Absurdo deve ser compreendido como uma estética crítica que resiste à normatização da experiência e denuncia as estruturas sociais opressoras por meio da desordem, do silêncio e do vazio.

    5. O Teatro do Absurdo no Brasil: Recepção, Adaptações e Crítica Social

    No Brasil, a recepção do Teatro do Absurdo se deu em um contexto peculiar, marcado pelas tensões entre modernização acelerada, desigualdade social crônica e repressão política, especialmente durante os períodos do Estado Novo (1937–1945) e da Ditadura Militar (1964–1985). Embora o movimento não tenha tido uma escola própria no país, suas influências foram significativas tanto no plano estético quanto no político, especialmente entre os dramaturgos que buscavam romper com os modelos realistas tradicionais e refletir criticamente sobre a condição humana e social brasileira.

    A assimilação do absurdo no teatro brasileiro ocorreu de forma híbrida, muitas vezes mesclando elementos do grotesco, da sátira política, do teatro do oprimido e da crítica social. Um dos maiores expoentes dessa abordagem é Plínio Marcos. Embora não seja um representante direto do Teatro do Absurdo europeu, suas obras compartilham da crítica feroz às estruturas de poder e da recusa de narrativas consoladoras. Em peças como Navalha na carne (1967), Plínio escancara o esvaziamento das relações humanas e a violência institucional, utilizando linguagem crua, repetição e situações de impasse existencial.

    Outro nome importante é Fernando Arrabal, espanhol radicado na França, mas bastante traduzido e montado no Brasil, especialmente nos círculos universitários e nos grupos de teatro alternativo nas décadas de 1960 e 1970. Seu trabalho influenciou dramaturgos brasileiros a experimentar com a fragmentação da cena e a metáfora política disfarçada de nonsense.

    Nesse ambiente, o Grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa, também dialogou com o teatro do absurdo, sobretudo em sua fase mais experimental. Ao transformar o teatro em ritual coletivo, desconstruir a linguagem cênica tradicional e escancarar as tensões sociais brasileiras, o grupo promoveu uma dramaturgia radical que, embora de matriz antropofágica e tropicalista, compartilha do espírito iconoclasta e libertário do absurdo.

    É importante destacar, ainda, a relevância das encenações de autores absurdistas estrangeiros, como Samuel Beckett e Eugène Ionesco, nos palcos brasileiros, especialmente nos circuitos universitários e em companhias de vanguarda. Montagens de Esperando Godot e A Cantora Careca, por exemplo, tornaram-se instrumentos de crítica social e política, reatualizando os sentidos dessas peças no contexto brasileiro — como metáforas da espera por transformações que nunca chegam ou da alienação das classes médias urbanas.

    Do ponto de vista sociológico, o Teatro do Absurdo no Brasil foi apropriado como uma linguagem de resistência simbólica, capaz de expressar o desalento diante da inércia política, da exclusão social e da violência institucionalizada. Através da desestruturação da linguagem e da inversão do cotidiano, os dramaturgos brasileiros — mesmo que não filiados diretamente ao movimento absurdista europeu — utilizaram estratégias semelhantes para questionar a lógica dominante e propor rupturas simbólicas com a ordem estabelecida.

    Além disso, o teatro do absurdo teve papel importante na formação crítica de plateias, sobretudo em universidades e centros culturais engajados, ao desnaturalizar a linguagem e provocar o estranhamento da realidade social. Como destaca Paulo Freire (1987), a conscientização se dá pelo rompimento da visão acrítica do mundo. O teatro, ao desautomatizar a percepção, contribui com esse processo, e o absurdo, ao negar a lógica convencional, convoca o espectador a reconstruir sentidos — ou a perceber sua ausência.

    Assim, no Brasil, o Teatro do Absurdo ganha novas camadas de significação, ao se entrelaçar com as particularidades do nosso contexto social: a desigualdade estrutural, o autoritarismo histórico, a violência cotidiana e a resistência cultural.

    6. Sentido, Não Sentido e Emancipação: Considerações Finais

    A análise sociológica do Teatro do Absurdo permite reconhecer nessa forma artística muito mais do que uma negação gratuita da lógica ou uma celebração do niilismo. Em sua estrutura fragmentada e em sua estética do não sentido reside uma crítica contundente às formas modernas de dominação, alienação e esvaziamento simbólico da existência. O absurdo, ao romper com os referenciais tradicionais do teatro, denuncia os mecanismos pelos quais a sociedade moderna sufoca a subjetividade e a criatividade, substituindo-as por repetição, automatismo e conformismo.

    A recusa em oferecer respostas claras ou finais reconfortantes não implica uma ausência de proposta ética ou política. Ao contrário, ela desafia o espectador a assumir a responsabilidade de construir o sentido a partir do confronto com o vazio. Em Esperando Godot, Beckett não diz quem é Godot, nem se ele virá — mas nos mostra a espera como uma experiência humana profunda, reveladora da fragilidade, da esperança e da desesperança que habitam o cotidiano social. A peça, ao não se resolver, revela a própria irresolução do mundo.

    Do ponto de vista sociológico, o Teatro do Absurdo representa uma poderosa forma de desnaturalizar o real. Ele desconstrói a linguagem como veículo da ideologia, revela a burocracia como ritual vazio, denuncia a comunicação como ruído e a convivência como dissimulação. A sua força está justamente em sua recusa em alinhar-se a qualquer forma de conciliação com a ordem vigente. Trata-se, como diria Adorno (1993), de uma arte “negativa”, cujo valor está na resistência à coisificação do mundo.

    O absurdo, nesse sentido, cumpre uma função emancipadora. Ele rompe o feitiço da racionalidade instrumental e do espetáculo contínuo que organiza o cotidiano nas sociedades capitalistas avançadas. Sua estética é a da recusa — mas uma recusa que desestabiliza, desautomatiza, convoca ao pensamento. Como afirma Horkheimer (1980), o pensamento crítico é aquele que não se acomoda, que mantém o desconforto diante das promessas não cumpridas da modernidade. O teatro absurdo, ao expor a falta de sentido das estruturas sociais, torna-se, paradoxalmente, um espaço de liberdade.

    No Brasil, sua apropriação crítica e criativa pelas mãos de grupos e autores engajados ampliou sua potência, incorporando denúncias locais e temas estruturais, como a violência, o racismo, a exclusão social e o autoritarismo. Sua influência segue viva na produção teatral contemporânea, que continua a explorar a fragmentação, a linguagem opaca e o silêncio como formas de resistência simbólica frente a um mundo que insiste em oferecer respostas simplistas a problemas complexos.

    Assim, ao abordar o Teatro do Absurdo por uma perspectiva sociológica, compreendemos que seu “não sentido” não é ausência de mensagem, mas sua forma mais radical de expressar a falência do sentido imposto — e de convidar à criação de outros modos de ver, de dizer e de existir.

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