Por que os excluídos e menos favorecidos não se identificam com conceitos à esquerda?

conceitos da esquerda

Por Cristiano das Neves Bodart*

Uma pesquisa realizada na periferia de São Paulo chamou atenção por indicar que as comunidades de baixo status econômicos não se identificam com conceitos considerados à esquerda, tais como lutas de classe, burguesia, proletariado, alienação, etc.

Diagnosticar que as classes sociais menos privilegiadas não se identificam com o pensamento mais à esquerda, bem como com às ideias relacionadas a luta de classes, não me soa como uma surpresa. Tenho a impressão que quando os grupos mais à esquerda conquistam vitórias nas urnas não se dão por alcançar uma hegemonia de suas ideias, nos termos de Gramisci. Antes parece vencer por se aproximar de discursos meritocráticos (o caso do metalúrgico que se transformou em presidente, na mulher que conquista o cargo mais importante da nação), ou então um discurso paternalista, enfatizando a centralidade dos programas sociais em seus planos de governo**.

Penso que essa situação é fruto, em grande parte, pelos rumos que as Ciências Sociais tomaram na academia. As teorias mais à esquerda se aprofundaram e se complexaram significativamente a partir da segunda metade do último século; e isso é muito positivo. Contudo, paralelamente não houve uma preocupação com o processo de transposição didática dessas reflexões abstratas, não possibilitando o sujeito comum compreende-las e, consequentemente, não pensar as relações sociais a partir delas. Essa falta de transposição didática do conhecimento produzido impossibilita sua aparição na grande mídia (ainda que o motivo não seja apenas esse) e ser lido ou ouvido atentamente pelo sujeito comum***. São poucos os intelectuais que se preocupam em ocupar espaços midiáticos de forma didática e inteligível aos não especialistas.

Na academia é natural haver esforçamos para a construção de modelos teóricos-analíticos tão complexos que, ainda que dê conta de explicar a realidade social, dificilmente será entendido pelo sujeito comum. Explicações mais simplistas, tais como àquelas que ligadas, por exemplo, às ideias da Escolha Racional e à meritocracia, são facilmente assimiladas pelo sujeito comum; logo estas explicações acabam sendo tomadas como base de compreensão das suas realidades sociais. Explicações simplistas criadas para manter o status quo são facilmente assimiladas e utilizadas no cotidiano para justificar-explicar a realidade do sujeito comum. Por isso notadamente há uma hegemonia de ideias simples e distante de conceitos mais complexos, tais como as categoria classe social e ideologia.

Precisamos nos preocupar com a transposição didática das teorias sociológicas mais sofisticadas. De outra forma, a hegemonia de explicações fáceis, muitas delas ligadas à extra-direita, se perpetuará.

Temos notado situações na academia onde a preocupação está mais na capacidade de desenvolver reflexões abstratas do que de fato explicar o mundo social real e colaborar para transformações. Discutir modelos teóricos, tipos ideais, sem ter por objetivo explicar problemas do cotidiano sem dúvida contribui para esse diagnóstico. Infelizmente a capacidade de abstração teórica tornou-se um capital cultural disputado no interior das universidades, sem que essa abstração esteja centrada na realidade prática e sem nenhum interesse em realizar uma transposição didática capaz de levar ao homem comum conhecimentos necessários para entender, por exemplo, que muitos de seus problemas não são pessoais, individuais ou de ordem meritocrática. O mundo acadêmico descolou-se do homem comum, da realidade cotidiana imediata.

Não estou discursando contra as reflexões teóricas mais sofisticadas, mas contra seu distanciamento do mundo social, do cotidiano; critico a sua incapacidade de oferecer a sociedade compreensões de suas relações sociais, dos conflitos existentes, dos sistemas de reprodução das desigualdades sociais, etc.

Se a esquerda deseja conquistar hegemonia, deve ater-se a essa grande necessidade de aproximar as contribuições teóricas do cotidiano dos sujeitos sociais. Se os intelectuais preocupados em colaborar com a redução das desigualdades sociais e da exploração do homem sobre o homem precisa colocar no conjunto de suas preocupações o processo de transposição didática do conhecimento produzido.

Nota:

* Doutor em Sociologia (USP), professor adjunto da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e editor do Blog Café com Sociologia

** É certo que não é possível generalizar, mas assim expomos pelo limite físico desse espaço.

*** Usamos essa expressão sem qualquer sentido pejorativo, designando a indivíduo mediano em relação ao grau de conhecimento de Ciências Humanas. 

Agradecimento: Ao amigo professor Dr. Radamés Rogério (UESPI), por provocar essa reflexão.

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

3 Comments

  1. Achei válida a reflexão, mas tenho discordância da tese apresentada.
    Basicamente pelos seguintes motivos:
    Primeiro porque a população em geral não precisa de teoria, seja ela palatável ou não para entender a condição de exploração, no seu aspecto mais sensível. Quando criança ouvia as pessoas falarem de “teleguiado” aquele que se guia pela TV, ou seja, o fato deles não falarem alienação não significa dizer que não entendessem a relação.
    Assim como a noção de “luta de classe” também possa ser que não seja o conceito utilizado “a torta e a direita” pela população comum, semialfabetizada, ou mesmo escolarizada, mas ela reconhece a relação de exploração, o enriquecimento rápido de um sujeito próximo ou distante e muitas das vezes reconhece que embora esse sujeito trabalhe muito, não é só o trabalho, portanto só o mérito individual que garantiu o tal prestígio ou bem. Não à toa o saber popular cravou a seguinte expressão: “nem que você trabalhe a até morrer você terá um desses”, a compreensão portanto existe. Ou ainda o camelô que anuncia o produto como “sendo de bacana” ou ainda a mulher que vai trabalhar na casa da “madame”.
    O saber sobre as coisas não nos faz reagente a elas, assim como a sua teorização acadêmica não nos torna o farol ou a “avant-guarde” como supôs setores da esquerda internacional e brasileira da primeira metade do XX, embora essa visão continue encravada no seio de uma esquerda rançosa que não foi capaz de ler o marxismo menos mecânico.
    Marx uma vez escreveu: : “Os filósofos apenas interpretam o mundo de maneiras diferentes. O ponto, no entanto, é transformá-lo.”
    Essa questão é radical na teoria marxista, ou seja, não basta conhecer, o grande movimento é transformar o mundo é isso vira a partir da relação teoria e prática.
    Ha inúmeros movimentos sociais populares constituídos por semianalfabetos ao longo da história que nunca ouviu falar em esquerda ou direita e mesmo que precede tais conceitos que nos daria aulas sobre a realidade e seus conflitos.
    Penso que o texto é interessante, mas erra ao super valorizar o papel da ciência na interpretação do mundo.
    Ha outros elementos fracos no texto, que valeria falar, mas ficaria longo demais, um exemplo seria o suposto monopólio de pensadores da esquerda na explicação sobres a compreensão do mundo e a forma de transforma-lo.

  2. Sobre a citação no comentário “Ha inúmeros movimentos sociais populares constituídos por semianalfabetos ao longo da história que nunca ouviu falar em esquerda ou direita e mesmo que precede tais conceitos que nos daria aulas sobre a realidade e seus conflitos”, lembro-me de um professor de geografia que disse procurar a academia somente pelo canudo, pois tinha uma vasta experiência de vida em movimentos sociais e seus conflitos, experiência essa que era nítida em suas manifestações em sala de aula.

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