Questões étinico-raciais nas aulas de Sociologia
Questões étinico-raciais nas aulas de Sociologia

Por uma educação antirracista: a implementação das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08

Por Caio dos Santos Tavares, 

coautor de Questões étnico-raciais nas aulas de Sociologia (2025)

Quando se fala em Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) no Brasil, devemos levar em consideração que o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena foi estabelecido como obrigatório pelas Leis nº 10.639 e nº 11.645, sancionadas em 2003 e 2008.

A obrigatoriedade (de uma educação antirracista) foi vista como uma conquista pelo movimento negro, movimento indígena e por pesquisadores da área da Educação que, desde o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, salientavam a importância de um currículo escolar que valorizasse a diversidade étnico-racial e a desconstrução das discriminações raciais (Andrade, 2017; Machado, Leon, 2019).

Com as leis, os princípios de promoção da igualdade racial devem nortear as práticas pedagógicas e as rotinas educacionais. Todavia, passados 22 anos da Lei nº 10.639 e 17 anos da Lei nº 11.645, a implementação encontra dificuldade para a sua devida execução em nível nacional, permeada por embates e disputas.

Em vista disso, o governo Lula, em 2024, por intermédio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (SECADI), vinculada ao Ministério da Educação (MEC), criou a  Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ), com previsão de R$ 2 bilhões de investimento e 215 mil professores e gestores formados. O PNEERQ foi instituída pela Portaria MEC nº 470/2024, que estabelece o objetivo de implementar ações e programas educacionais visando a superação das desigualdades étnico-raciais na educação brasileira.

O PNEERQ buscará consolidar as ações desenvolvidas no âmbito das políticas educacionais da seguinte forma:

I – estruturar um sistema de metas e monitoramento para assegurar a implementação do art. 26-A da Lei nº 9.394, de 1996; II – formar profissionais da educação para gestão e docência para ERER e EEQ; III – contribuir para a superação das práticas racistas na educação brasileira; IV – induzir a construção de capacidades institucionais para a condução das políticas de ERER e EEQ nos entes federados; V – reconhecer avanços institucionais antirracistas; VI – contribuir para a superação das desigualdades étnico-raciais na educação brasileira; VII – assegurar o direito à educação de qualidade a todas as crianças e a todos os jovens e adultos; e VIII – consolidar a modalidade EEQ (Brasil, 2024, p. 2).

Neste texto, apresentamos alguns dados do Diagnóstico Equidade, que avalia pela primeira vez a educação étnico-racial no Brasil, realizado pelo MEC, como parte das ações do PNEERQ.

Como foi feito o diagnóstico?

No período de 21 de março de 2024 a 10 de julho de 2024 foi aplicado o questionário com todas as secretarias de educação dos municípios, dos estados e do Distrito Federal. A plataforma utilizada para a coleta foi o Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle (Simec) do MEC.

As secretarias responderam, ao todo, a 46 questões distribuídas em 10 componentes: 1) Indicadores, Avaliação e Monitoramento, 2) Políticas de Formação de Profissionais de Educação; 3) Fortalecimento do Marco Legal; 4) Gestão Educacional; 5) Material Didático e Paradidático; 6) Educação Escolar Indígena; 7) Currículo; 8) Financiamento; 9) Gestão Democrática e Mecanismos de Participação Social; e 10) Educação Escolar Quilombola.

A partir dos resultados das respostas, foram concebidos seis Índices de ERER e a média ponderada de todos os índices levou à criação do Índice Geral de ERER (municipal e estadual). A seguir, apresentaremos os resultados.

Tabela 1 − Índices de ERER no Brasil.

 Índices de EREREstadosMunicípios
Índice Geral ERER47,727,1
Índice de Institucionalização84,638,7
Índice de Formação50,720,4
Índice de Gestão Escolar38,126
Índice de Material didático e Paradidático46,633,7
Índice de Financiamento43,720,6
Índice de Avaliação e Monitoramento53,548,3

Fonte: Diagnóstica Equidade 2024.

 

O diagnóstico indica que, apesar das conquistas legais, como a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), por meio da Lei nº 10.639/03 e complementada pela Lei nº 11.645/2008, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, juntamente com o Parecer do Conselho Nacional de Educação e da Câmara de Educação Profissional (CNE/CP) n° 03/2004 e a Resolução CNE/CP n° 01/2004, que estabelecem orientações para a União, os estados e os municípios organizarem, articularem e desenvolverem a implementação da política educacional por meio de órgãos executores, como as secretarias de educação estaduais, municipais e distrital voltada para as relações étnico-raciais; ainda existem lacunas para a racialização da experiência escolar de crianças e adolescentes.

Levando em conta os 22 anos da Lei nº 10.639 e os 17 anos da Lei nº 11.645, os resultados evidenciam o panorama de baixa institucionalização e de resistência dos implementadores das políticas públicas, uma vez que estados e municípios apresentaram o Índice Geral de ERER abaixo de 50%. Destacamos que, dos seis índices, apenas três (Formação, Material Didático e Paradidático e de Financiamento) ficaram acima de 50% nos estados. A situação é pior nos municípios onde os cinco índices (Institucionalização, Formação, Gestão Escolar, Material Didático e Paradidático, Financiamento) ficaram abaixo de 40% e apenas o Índice de Avaliação e Monitoramento ficou com 48,3%. Ou seja, não tivemos, em nível municipal, índices acima de 50%.

É notório que na educação infantil e no ensino fundamental o quadro para a institucionalização da lei apresenta um maior desafio. Há de se considerar que os municípios concentram a maior parcela de estudantes matriculados, contudo carecem de ações consistentes e contínuas para promover a valorização da diversidade étnico-racial no Brasil, combatendo o racismo, e fortalecendo a identidade e o pertencimento dos grupos étnicos, especialmente afro-brasileiros e indígenas. Os efeitos disso são uma educação que acaba não conseguindo atingir o objetivo de transformação da sociedade e a garantia de direitos, acentuando as desigualdades e reproduzindo as exclusões entre estudantes negras e negros.

Esses dados oportunizam produzir insumos que auxiliam o aprimoramento de práticas existentes, ao lançar luz às redes que insistem em descumprir a legislação e ainda não contemplam o cumprimento desse artigo (26-A) da LDB em suas estruturas administrativas e ações estratégicas. Portanto, o monitoramento e a implementação da política de equidade racial são fundamentais para os entes federados possam perceber quais aspectos que precisam ser priorizados e fortalecidos.

Para ocorrer a institucionalização da ERER, ou seja, torná-la perene e independente do governo de ocasião, é fundamental garantir a continuidade e a estabilidade das políticas públicas.

 

Tabela 2 − Questões respondidas pelas secretarias de educação

QuestõesEstadosMunicípios
Possuem alguma normativa para a implementação das leis74,10%42,6%
Secretarias de educação têm uma equipe específica responsável pela gestão das políticas de equidade racial88,90%15,50%
Secretarias de educação participam de reuniões colegiadas que tratam de diversidade étnico-racial96,30%70,50%
Secretarias de educação, desde a sanção das leis, ofertaram cursos para professores de no mínimo 30 horas88,90%46,40%
Secretarias de educação, desde a sanção das leis, ofertaram cursos para técnicos de secretarias de escolas de no mínimo 30 horas70,40%50,70%
Secretarias que possuem algum tipo de estratégia de incentivo (priorização em programa de reforma – infraestrutura e de formação) às escolas para a implementação das leis85,20%55,10%
Secretarias que, nas provas de processo seletivo e concurso público, incluíram itens relativos à Lei n ̊ 10.639/2003 e à Lei n ̊ 11.64570,40%44,00%
Existência de protocolos em episódios de racismo ou injúria racial59,30%36,20%
Secretarias que adquiram obras literárias infantis ou infanto-juvenis que promova a diversidade étnico-racial77,80%68,40%
Secretarias que possuem políticas de valorização e reconhecimento de iniciativas voltadas à redução das desigualdades nas escolas das redes40,70%10,40%
Secretarias que inseriram ações de equidade racial no PAR, com vistas a reduzir a desigualdade de aprendizagem e a trajetória escolar55,60%29,90%
Secretarias que adquiriram material didático-pedagógico que promova a diversidade étnico-racial85,00%74,00%
Secretarias que possuem metas para a redução de desigualdades no planejamento estratégico81,50%67,90%
Secretarias que possuem algum tipo de indicador, avaliação e monitoramento das leis29,60%18,20%
Secretarias que consideraram o conhecimento sobre ERER no processo de escolha de diretores e/ou gestores escolares51,90%39,60%

Fonte: Diagnóstica Equidade 2024.

 

Salienta-se que o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana enfatiza, de acordo com a LDB e os demais documentos legais, a responsabilidade de cada ente federativo, que precisa de articulação para desenvolver de forma equânime a implementação da referida lei. Isso significa a necessidade de estabelecer o fortalecimento do marco legal por intermédio da regulamentação e dos meios para efetivar a implementação por meio de equipes técnicas e orçamento específico.

O Diagnóstico Equidade indica que a menor parcela dos municípios realizou alterações em sua estrutura administrativa, financeira e normativa. Diante disso, há uma necessidade que os programas educacionais voltados à superação das desigualdades étnico-raciais e do racismo tenham maior envolvimento e participação de todos os entes federativos que possuem autonomia para implementar as ações.

Notamos que a maioria das secretarias municipais e estaduais adquiriram material didático-pedagógico e obras literárias infanto-juvenis que promovem a diversidade étnico-racial. Essa providência contribuiu para evitar abordagens superficiais que reforçam discriminações. Em contrapartida, as redes municipais, em sua maioria, não oferecem cursos de capacitação para os profissionais de Educação. Desse modo, a falta de uma formação adequada pode fazer com esses professores não tenham repertório para abordar questões raciais de forma sensível e eficiente, podendo inclusive contribuir com a reprodução da discriminação racial (Godoy, 2017; Santos, 2018).

Além disso, observando os dados, vemos que é baixo o número de secretarias municipais e estaduais que acompanham os indicadores de desempenho e monitoramento das leis, impactando na realização efetiva e plena da ERER.

Considerações finais

Considerando as DCNs e a literatura especializada acerca da ERER, observamos que o cumprimento dos marcos legais, criados a partir da alteração da Lei nº 10.639/03 na LDB, extrapola o processo de ensino e aprendizagem de conteúdos curriculares, mas realça a emergência de ações efetivas para atenuar as desigualdades raciais.

Em comparação com as redes municipais, as redes estaduais possuem uma maior organização institucional na implementação da lei. Essa constatação serve para enfatizar a importância do regime de colaboração entre os entes federados e outras instituições para a qualificação dessa política.

Também é importante reconhecer a atuação de professores e professoras que, mesmo em contextos adversos e com pouco apoio, buscam realizar ações que contemplam as leis. Igualmente esforços como os que materializaram o livro Questões étnico-raciais nas aulas de Sociologia (2025), de Cristiano Bodart, Fabio Monteiro de Morais e Caio dos Santos Tavares. Essa obra foi pensada como um material de apoio à prática docente, fundamentado nas Ciências Sociais e voltado a quem deseja abordar as questões étnico-raciais com rigor teórico, responsabilidade ética e consistência pedagógica.

Nesse sentido, chamamos a atenção para a necessidade de um maior suporte institucional para que os profissionais da Educação tenham plenas condições de levar de forma qualificada essa temática para as salas de aulas pelo Brasil.

Para alcançarmos uma educação antirracista, necessitamos de alterações no pensamento, nas práticas e nos discursos de todos os agentes sociais envolvidos com as políticas educacionais, em que assumam o compromisso de reconhecer a promoção de justiça social e equidade no acesso a direitos sociais, civis e econômicos como prioridade. Assim, rompendo com as estruturas sociais que hierarquizam os pertencimentos raciais que geram prejuízos para a população negra.

Referências

ANDRADE, Maíra. Movimento Negro, educação e os princípios da Lei 10.639/03. Aedos, Porto Alegre, v. 9, n. 21, p. 194-216, 2017.

BODART, Cristiano; MARAES, Fabio Monteiro de; TAVARES, Caio dos Santos. Questões étnico-raciais nas aulas de Sociologia. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2025.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação (CNE). Câmara Plena (CP). Parecer CNE/CP nº 3, de 10 de março de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. [Publicado no Diário Oficial da União de 19/05/2004].

BRASIL. Conselho Nacional de Educação (CNE). Resolução CNE/CP n° 01, de 17 de junho de 2004. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de junho de 2004, Seção 1.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

BRASIL. Ministério da Educação. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2013.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 470, de 14 de maio de 2024. [Diário Oficial da União].

BRASIL. Ministério da Educação. Diagnóstico da implementação da Educação para as Relações Étnico-Raciais e da Educação Escolar Quilombola no Brasil. Brasília, 2024.

GODOY, Eliete Aparecida de. A ausência das questões raciais na formação inicial de professores e a Lei 10.639/03. Educação PUC, v. 22, n. 1, pp. 77-92. 2017.

MACHADO, Clara; LEON, Adriana. O movimento indígena e a educação escolar. Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, v. 5, 2019.

SANTOS, Simone Ferreira Soares dos. A (in)visibilidade da formação continuada para as relações étnico-raciais: a visão de professores dos anos finais do ensino fundamental. Revista da associação brasileira de pesquisadores em educação, [s.l.], v. 5, n. 9, p. 49-66, ago. 2018.

 

Como citar este texto:

TAVARES, Caio dos Santos. Por uma educação antirracista: a implementação das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08. Blog Café com Sociologia, dez. 2022. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/por-uma-educacao-antirracista/

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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