Quilombismo: Abdias Nascimento contra o racismo
Por Cristiano das Neves Bodart
Você já ouviu falar em quilombismo? Esse conceito foi formulado por Abdias Nascimento, uma das figuras mais importantes do movimento negro no Brasil. Intelectual, artista, ativista e político, Abdias entendeu que o racismo no país não se resume a atitudes individuais, mas funciona como uma estrutura histórica que organiza a sociedade de maneira desigual desde o período colonial (Nascimento, 1980).
Para ele, os quilombos – comunidades negras formadas por africanos escravizados em resistência – não pertencem apenas ao passado. São símbolos vivos de luta e inspiração para o presente. Ao criar o conceito de quilombismo, Abdias propôs um modelo de organização política e cultural centrado na autonomia, na solidariedade, na ancestralidade africana e na reconstrução de uma memória coletiva negra (Nascimento, 1980), sendo “uma projeção contemporânea das tradições africanas reatualizadas na diáspora negra nas Américas” (Nascimento, 1980, p. 44). Assim, o quilombo, nesse sentido, deixa de ser apenas um refúgio do passado e passa a representar um paradigma de futuro para a sociedade brasileira, pan-africana e internacional. Para ele, o quilombismo é a maneira negra de encarar a vida, a política, a organização social.
O quilombismo de Abdias Nascimento também propõe uma nova forma de organizar a vida econômica da população negra. Para ele, os quilombos históricos demonstraram que é possível construir formas de economia baseadas na coletividade, na cooperação e no uso comum dos recursos. Inspirado nesses valores, ele defendia a criação de modelos econômicos que rompessem com a lógica capitalista e priorizassem a subsistência digna, a autonomia das comunidades e a justiça distributiva (Nascimento, 1980). O objetivo era garantir que as populações negras deixassem de depender das estruturas dominadas pelas elites econômicas brancas, construindo alternativas baseadas em solidariedade e autogestão.
Outro ponto central do quilombismo é a crítica profunda ao modelo de Estado-nação de origem ocidental. Segundo Abdias, o Estado moderno, tal como foi imposto durante a colonização, está estruturado para excluir os povos negros, indígenas e outras populações subalternizadas. Ele propõe, como alternativa, uma organização social inspirada em valores comunitários africanos, voltada à participação horizontal, à autonomia territorial e à valorização da ancestralidade como princípio político (Nascimento, 1980). O quilombismo não busca apenas inclusão nos moldes existentes, mas a reconstrução das formas de convivência social em bases verdadeiramente plurais, democráticas e descolonizadas.
Além disso, o quilombismo reconhece a espiritualidade de matriz africana como um dos pilares da resistência e da reexistência negras. Para Abdias Nascimento, as religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, não são apenas expressões de fé, mas formas de organização simbólica, ética e comunitária que estruturam a visão de mundo e a identidade coletiva dos povos negros (Nascimento, 1980). Ao mesmo tempo, ele afirmava com firmeza que o povo negro, por ser maioria demográfica no Brasil, deve assumir papel central na condução política do país. A luta antirracista, nesse sentido, exige a autodeterminação: o direito de decidir sobre os próprios caminhos, de reivindicar poder e de reconstruir a sociedade com base nos saberes e valores negros (Nascimento, 1980).
Para Abdias, a ideia de democracia racial, muito difundida no Brasil ao longo do século XX, seria um mito que serve apenas para ocultar desigualdades reais e silenciar as vozes negras (Nascimento, 2000). Como também apontou Kabengele Munanga (2004), essa ideologia opera como uma forma sofisticada de manutenção do racismo estrutural, ao negar sua própria existência.
Outro aspecto essencial do pensamento de Abdias é a valorização das epistemologias negras, isto é, formas de conhecimento produzidas a partir das experiências históricas, espirituais e culturais dos povos africanos e da diáspora (Bodart, Moraes e Tavares, 2025). Ele defendia que os saberes negros são legítimos por si mesmos, e não precisam da validação de modelos eurocêntricos para existirem com dignidade e força (Nascimento, 2000). Como observa Lélia Gonzalez (1982), é preciso romper com o racismo epistêmico que inferioriza as formas de saber não ocidentais.
A arte, para Abdias, também era uma ferramenta de resistência. Ao fundar o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, ele procurou combater os estereótipos racistas nas artes e construir novas formas de representação da negritude com dignidade, potência e beleza. O teatro, nesse contexto, foi mais do que uma expressão cultural: foi uma intervenção política no campo simbólico e estético (Bodart, Moraes e Tavares, 2025).
Estudar as ideias de Abdias Nascimento nos ajuda a compreender que o combate ao racismo exige muito mais do que a denúncia das violências explícitas. Ele demanda a transformação das estruturas sociais, políticas, simbólicas e epistemológicas que sustentam os privilégios da branquitude (Bento, 2002). O quilombismo é, nesse sentido, um projeto político de afirmação da identidade negra e de reconstrução coletiva do Brasil a partir de valores africanos e afro-brasileiros.
Assim como os quilombos do passado foram territórios de resistência, o quilombismo nos convida a construir no presente um futuro mais justo, plural e descolonizado.
As ideias de Abdias Nascimento continuam extremamente atuais. Seu quilombismo ecoa em:
- Movimentos contemporâneos, como as ocupações urbanas e coletivos culturais que recriam o espírito comunitário dos quilombos.
- A luta por educação antirracista, que inclui a obrigatoriedade do ensino da história africana nas escolas.
- A valorização das religiões de matriz africana, frequentemente alvo de intolerância.
Abdias nos ensina que combater o racismo não se limita a denunciar injustiças, mas exige construir alternativas. O quilombismo é, acima de tudo, um convite a imaginar outros mundos possíveis – onde a liberdade, a cultura negra e a justiça não sejam exceções, mas a base de uma nova sociedade.
Referências
BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. São Paulo: CEERT, 2002.
BODART, Cristiano das Neves; MORAES, Fabio Monteiro de; TAVARES, Caio dos Santos. Questões étnico-raciais nas aulas de Sociologia. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2025.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. p. 77-85.
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980.
NASCIMENTO, Abdias. Africânia: o afrocentrismo na formação da identidade nacional. São Paulo: SENAC, 2000.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 2004.
Atividades
A partir da leitura do texto, explique com suas próprias palavras os seguintes conceitos apresentados por Abdias Nascimento:
- a) Quilombismo
- c) Epistemologias negras
- Reflita sobre essa pergunta-problema:
“O que o Estado brasileiro poderia aprender com os princípios do quilombismo formulados por Abdias Nascimento?”
- Elabore um texto breve (até 10 linhas) articulando elementos do texto lido com sua análise sobre temas como: democracia, desigualdades raciais, economia solidária, religião, cultura e participação política.
Como citar este texto:
BODART, Cristiano das Neves. Quilombismo: Abdias Nascimento contra o racismo. Blog Café com Sociologia, jun. 2025. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/quilombismo-abdias-nascimento-contra-o-racismo/
