O Brasil além do conflito
Por Keller Augusto Bresolin*
Sabem com quem está falando?
Obra resenhada: MATTA, Roberto da; BRASIL, Sabem Com Quem Está Falando? Um Ensaio Sobre A Distinção Entre Individuo e Pessoa no Brasil. In: MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 179-248.
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No Brasil, apesar de ser uma nação colonial, periférica e dependente marcada pela existência de muitos conflitos, há instituições que procuram eliminar a existência desses conflitos, como o futebol e o carnaval em que, de certa forma se anula e existência desses conflitos. O “sabe com quem você está falando?” expressa justamente o contrário, sendo um rito autoritário indica a existência de classes sociais organizadas hierarquicamente. Por isso o “sabe com quem você está falando?” é velado, presente nas entrelinhas dos conflitos sociais.
O “sabe com quem você está falando?” revela a “preocupação com a posição social e a consciência de todas as regras relativas à manutenção, perda ou ameaça dessa posição” (p.187). A expressão é usada quando a pessoa sentir sua autoridade ameaçada, desejar impor o seu poder, perceber de forma inconsciente ou consciente a possibilidade de inferiorizar o interlocutor quanto ao seu status social, for fraca ou que sofre de complexo de inferioridade, ou quando o interlocutor é percebido como ameaça ao cargo que ocupa. Pelo fato de ser um rito autoritário, muitos dos subalternos não têm conhecimento do rito, por exemplo, as crianças.
Da Matta destaca uma estrutura social com base na intimidade social, em que as classes sociais se comunicam por meio de relações entrecortadas que acabam embaraçando os conflitos e o sistema de diferenciação social e política com bases econômicas. O eixo econômico é sobreposto por uma classificação de caráter moral. A forma de classificação complexificada pelos múltiplos eixos, além da compensação e complementariedade dos extremos da hierarquia social, permite também a diferenciação continua e sistêmica de iguais. Portanto, todos têm o direito de utilizar o “você sabe com quem está falando?”.
Os indivíduos no Brasil são substantivamente dominados pelos papéis que desempenham do que por uma identidade geral, regrada pelas leis gerais resultado de um sistema fundado no respeito, na honra, no favor e na consideração em contraposição ao eixo econômico e da legislação que são mecanismos universalizantes. Os medalhões são exemplos do sistema citado. São personagens em que as qualidades morais de um determinado domínio social se cristalizam na pessoa, capazes de transcender as regras que constrangem as pessoas normais daquela classe social.
A partir do conceito de drama social de Vitor Turner, Da Matta exemplifica a forma como se dá o rito do “você sabe com quem está falando?” Num primeiro momento o individuo se apresenta como indivíduo anônimo, sujeito às regras universais. O “sabe como quem está falando?” aparece no drama social como um ritual de reforço, em que os atores tomam consciência das diferenças presente nas rotinas sociais uma relação de desigualdade, em que se revela a identidade social. O “sabe com quem está falando?” é, de fato, um rito autoritário que “expressa uma tentativa de transformação drástica, da universalidade legal para o mundo das relações concretas, pessoais e bibliográficas” (p.213).
Da Matta faz distinção entre individuo e pessoa. A noção de indivíduo prevê a liberdade e a igualdade, privilegiando as particularidades de sentimentos, de escolhas, e de consciência. É o indivíduo que faz as regras do mundo em que vive, numa relação sem mediadores com o todo. Já a pessoa é presa a totalidade, numa relação de complementariedade, lhe privando das escolhas. A pessoa é definida pelo meio social, tanto nas relações quanto na consciência. A pessoa é quem recebe as regras do mundo em que vive, onde a segmentação é norma. Ne entanto, individuo e pessoa se encontram numa relação dialética, tendo sistemas que privilegiam o individuo enquanto outras privilegiam a pessoa.
No Brasil, “as leis só se aplicam aos indivíduos e nunca às pessoas” (p.237) Numa “sociedade em que o conflito e o interesse dos diversos grupos podem se transforma num instrumento de aprisionamento da massa que deve seguir a lei, sabendo que existem pessoas bem relacionadas que nunca obedecem” (p. 237). Esse é o dilema apontado pelo autor, em que as regras universalizadas que deveriam suprimir as desigualdades acabam legitimando-as, em que as leis tornam o sistema de relações pessoais mais solidários, operativos e preparados para superar a autoridade impessoal da regra.
* Graduando do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS