Tag: Conceitos sociológicos

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  • Temas de introdução à Sociologia no ensino médio

    Temas de introdução à Sociologia no ensino médio

    Temas de introdução à Sociologia no ensino médio

    Por Flávio Sarandy1

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    O texto a seguir é de finalidade exclusivamente didática para apoiar o ensino da Sociologia em cursos do Ensino Médio. Na verdade, é uma espécie de rascunho do que o autor explicava em salas de aula do Ensino Médio no início do ano letivo e nas primeiras três aulas (de 50 minutos cada); um material provavelmente ainda incompleto e que fez uso livre de leituras do autor. Ele precisa ser “preenchido” com exemplos e com o estilo de cada professor e professora. A intenção de publicá-lo é se servir de apoio na preparação das primeiras aulas do ano e, talvez, até mesmo como fonte de leitura complementar para os alunos – pode servir como base para um roteiro de aula, assim como pode ser enviado no todo ou em pequenos trechos para leitura e debate da turma. O objetivo didático era o de perturbar a perspectiva naturalizante da vida social e contrapor o conhecimento sociológico à perspectiva individualista, preparando os alunos e as alunas para aprofundar outras reflexões a partir de Durkheim, Marx e Weber, entre outros. Como está escrito o texto ainda é bastante teórico e não reflete os exemplos e atividades que o autor desenvolvia. Ficaria muito extenso fazer de outra forma. E esta é a razão pela qual deve ser apropriado, adaptado e completado por quem o desejar utilizar.

    Sociologia é o quê?

    Existem certas coisas que são evidentes aos olhos. Uma delas diz respeito à sociedade. Olhem pela janela, olhem quando andarem por aí, nas ruas, olhem dentro de suas próprias casas. E o que vocês veem? Que as pessoas que compõem a sociedade são diferentes. Elas não têm os mesmos gostos, não pensam do mesmo jeito, não vão à mesma igreja, não torcem pelo mesmo time, não votaram no mesmo candidato nas últimas eleições, não amam da mesma forma e talvez sejam tão diferentes que se torna quase impossível a convivência. É por isso que quando falamos de sociedade nos vêm à mente um montão de gente. E se as pessoas são assim tão diferentes, o que é mesmo a sociedade? Como permanecemos juntos? Será que existe esse algo que une cada um e todos? Na altura do campeonato você pode estar pensando: bem, talvez não exista algo que chamamos de sociedade, mas tão somente pessoas vivendo suas vidas juntas.

    Mas é aí que a coisa fica intrigante: isso a que chamamos de sociedade é algo que já existia quando nascemos, que nenhum de nós planejou ou pretendeu, nem mesmo todos nós em conjunto e que, apesar disso, é formado por nós mesmos. Isso pareceu complicado? Nem tanto. A questão é a seguinte: sem dúvida a sociedade é composta por todos nós, que estamos vivos, mas também pelos que já se foram e não vivem mais entre nós. Ao mesmo tempo, nenhum de nós decidiu sobre essa sociedade, muito menos todos nós juntos: a sociedade não é algo que foi planejado, pensado, pretendido ou decidido em assembleia. E continuará existindo depois de nós. Ainda assim, ela só existe e permanece porque muitas pessoas continuam a tocar as suas vidas. É para resolver esse enigma que estamos convidando você: e a Sociologia é a ciência que nos ajudará nesta tarefa.

    1. A sociedade é mais que uma coleção de indivíduos

    Vamos voltar um pouco ao início dessa nossa conversa: nem sempre aquilo que vemos é exatamente como aparenta ser; algumas evidências, afinal, são apenas aparentes evidências. Talvez esse seja o caso da palavra sociedade. Sem dúvida alguma que uma sociedade não pode deixar de conter pessoas, de tal modo que podemos afirmar sem erro que uma sociedade é uma sociedade composta de indivíduos, e isso é básico. Se não há gente, não há sociedade. Parece realmente correto pensarmos que são as nossas ações de cada dia, de cada hora, de cada instante que fazem com que a sociedade se perpetue ao longo dos tempos. Só que as pessoas reunidas em sociedade não estão todas na mesma situação, certo? Cada pessoa vive em circunstâncias diferentes. Algumas pessoas têm mais oportunidades do que outras. É como se o jogo já começasse com algumas peças em posições melhores que as outras. É importante entender que essa desigualdade não é algo que acontece por acaso. Ela é como um fio invisível que está sempre presente nas nossas interações. O modo como a sociedade está estruturada acaba por favorecer uns e impor obstáculos difíceis de superar para outros.

    Então aqui já temos duas observações importantes: sim, a sociedade é também uma coletividade de indivíduos, mas estes não estão na mesma situação nem contam com as mesmas oportunidades. No entanto, vamos um pouco mais devagar…

    Se a sociedade é composta por aquilo que fazemos, pensamos e decidimos diariamente, então como se dá realmente essa construção? Sim, porque precisamos compreender como que algo construído pelas ações de pessoas tão diferentes e, por vezes, tão distantes, por pessoas que vivem em Porto Alegre e em João Pessoa, pode assumir, ao mesmo tempo, uma vida própria e acabar nos impondo e nos exigindo coisas que não desejamos.

    Acompanhe um pensamento – que, aliás, não é nosso, mas de um importante sociólogo, Norbert Elias (1994, p.18):

    O que une os indivíduos não é cimento. Basta pensarmos no burburinho das ruas das grandes cidades: a maioria das pessoas não se conhece. Umas quase nada têm a ver com as outras. Elas se cruzam aos trancos, cada qual perseguindo suas próprias metas e projetos. Vão e vêm como lhes apraz. Partes de um todo? […] funcionando nesse tumulto de gente apressada, apesar de toda a sua liberdade individual de movimento, há também, claramente, uma ordem oculta e não diretamente perceptível pelos sentidos. Cada pessoa nesse turbilhão faz parte de determinado lugar. Tem uma mesa à qual come, uma cama em que dorme; até os famintos e sem teto são produtos e componentes da ordem oculta que subjaz à confusão. Cada qual dos passantes, em algum lugar, em algum momento, tem uma função, uma propriedade ou trabalho específico, algum tipo de tarefa para os outros, ou uma função perdida, bens perdidos e um emprego perdido.

    Pense um pouco sobre isso. Que ordem oculta é essa a que o texto faz referência? Podemos dizer que é uma ordem construída sobre a atividade dos indivíduos na sociedade. E também uma ordem fundada na função exercida por cada um. Mas esse contexto funcional pode variar bastante: entre uma sociedade de tipo feudal e uma sociedade industrial, por exemplo.

    E o sociólogo Norbert Elias (1994, p.18) continua:

    Como resultado de sua função, cada uma dessas pessoas tem ou teve uma renda, alta ou baixa, de que vive ou viveu; e, ao passar pela rua, essa função e essa renda, mais evidentes ou mais ocultas, passam com ela. Não lhe é possível pular fora disso conforme sua veneta. Não lhe é possível, simplesmente, passar para outra função, mesmo que o deseje.

    O que, afinal de contas, liga cada um e todos? Uma resposta aproximada: para que exista algo que denominamos por sociedade é necessário que exista uma interdependência entre todos os indivíduos de uma determinada sociedade. Interdependência não significa, no entanto, igualdade. Quem fez o pão que você comeu hoje? Quem cuida para que nós tenhamos as ruas limpas? E quem lhe serviu o pão? Ah, então você entendeu o problema! Estamos numa relação de dependência mútua com as demais pessoas, conhecidas ou não, próximas ou distantes, vivas ou já falecidas. Mais que isso, essas relações não se dão em posições de igualdade. É essa estrutura de relações sociais que nos une em posições desiguais e é capaz de orientar o nosso comportamento.

    Observe bem: não são as pessoas que estão em foco agora, mas as posições que ocupam numa determinada sociedade e, também, a função que desempenham. E se a cada um caberia um lugar na sociedade dependendo de onde se encontrasse nessa estrutura de relações sociais, esses lugares ainda que igualmente importantes para a existência ou manutenção dessa sociedade não seriam igualmente valorizados por todos, nem seriam indicadores de justiça social. Afinal, nas sociedades existe a disputa entre os seus membros ou a disputa entre grupos ou classes sociais, o que nos leva a um outro problema crucial: o da desigualdade e o da dominação de uns sobre outros.

    Muitas vezes, caímos em um engano comum ao pensar que somos completamente independentes do ambiente social ao nosso redor, como se pudéssemos viver “desconectados” e isolados do mundo! Às vezes é difícil pensar sociologicamente justamente por estarmos por demais apegados a esse modo de pensar que coloca o indivíduo no centro de tudo. Mas uma porção de pessoas vivendo juntas na Índia formam um tipo de sociedade diferente da encontrada em outros países, nos ensina Norbert Elias (1984).

    Pensar de maneira individualista significa acreditar que somos livres para decidir o que fazer com nossas vidas sem interferência de nada exterior. E isso acontece porque vivemos em uma sociedade que valoriza o individualismo. Por isso, geralmente rejeitamos ideias que colocam a sociedade acima do indivíduo, ou seja, que sugerem que não somos tão livres assim, mas sim influenciados por forças sociais. Essa outra forma de pensar é o que chamamos de perspectiva sociológica.

    Aliás, um outro sociólogo, Émile Durkheim (2007), nos ensina que por vivermos em sociedade temos a ilusão de sabermos tudo sobre ela – se fosse assim, a ciência Sociologia não seria necessária. Mas o fato de vivermos em sociedade, de experimentarmos as relações, normas, fenômenos e fatos da vida social geralmente torna difícil compreendermos as relações que orientam essas relações e fenômenos. Um exemplo disso que estamos dizendo – para que você entenda e que era o tipo de comparação que o próprio Durkheim fazia: nossa relação com a gravidade não nos leva a compreender as leis físicas que regem a gravidade. Todo mundo sabe que se você pular de um lugar alto isso vai te levar ao chão. Mas isso não significa que você sabe explicar exatamente porque. Esta é a diferença entre o que Durkheim chamou de senso comum e conhecimento sociológico.

    Imagine um comerciante que decidisse usar um bloco de papel e não o computador para fazer suas faturas, notas fiscais e pedidos. Suas operações levariam muito mais tempo e ele perderia clientes. E se ele se recusasse a usar dinheiro, ou simplesmente decidisse não seguir as regras estabelecidas para as atividades financeiras, como usar moeda, crédito etc.? Ele iria à falência rapidamente.

    Como nos lembra o sociólogo Marcel Mauss no livro Estudos de Sociologia (1981), há muitos aspectos da nossa vida econômica (ideias, leis, instituições, hábitos, valores e normas sociais) que não foram inventados por nós, mas que encontramos já estabelecidos desde o nascimento. Esses aspectos estão presentes até nas ações mais simples de um trabalhador ou de um comerciante. Eles não inventaram o lucro, o salário, o crédito, o preço ou o comércio internacional; eles simplesmente têm que se ajustar a essas coisas no sistema atual. Até mesmo sentimentos que parecem espontâneos, como o amor pelo trabalho, o gosto pelo empreendedorismo ou o desejo por lucro, não são universais e naturais para todos, pois não estão presentes em todas as sociedades ao longo da história.

    Por um lado, é inegável que a sociedade existe como um agregado de seres humanos porque ela não é apenas uma ideia. Assim como qualquer grupo de pessoas – seja uma classe social, grupo profissional, partido político, sindicato, ou outros – a sociedade é formada por indivíduos que agem e reagem uns sobre os outros. Como vimos no exemplo do comerciante, nenhuma pessoa sozinha pode definir o que é a sociedade ou as suas normas e valores. E uma primeira necessidade que todos os seres humanos têm é a de definirem sua vida em conjunto, o que gera uma série de questões que não estão diretamente relacionadas às necessidades de abrigo e alimento. Em outros termos, é pela interação entre os indivíduos, pela inter-relação e interdependência de suas funções na sociedade, que podemos compreender a vida coletiva. Durkheim (1999) ensinou justamente isso: que essa interdependência gera a coesão social – que ele denominou solidariedade social.

    Mas essa ordem subjacente à aparente confusão da vida coletiva não está apenas na estrutura de funções e papéis que envolvem as pessoas em uma sociedade. Para Karl Marx, outro importante intelectual para a Sociologia, que o que organiza nossa vida comum são as posições que ocupamos no modo como produzimos os bens necessários à nossa existência. Logo no início do livro O Capital, Marx (1980) nos sugere que o tipo de sociedade em que vivemos, capitalista, está organizada em torno da existência e da produção de mercadorias. E mais, ele define a mercadoria como algo que satisfaz as necessidades humanas, independente da “origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”; o que significa dizer que a sociedade está construída para responder a necessidades bastante concretas de nossas vidas, mas que também existe em função do que imaginamos, desejamos e valorizamos.

    Dois exemplos para que você entenda bem este argumento: uma mercadoria pode ser uma utilidade que satisfaz nossa necessidade de comida, mas essa necessidade não explica todo o tipo de produtos da indústria de alimentos! Nossa necessidade básica de alimentação não justifica, por exemplo, a existência dos alimentos ultraprocessados, que contribuem para problemas como a obesidade. E continuamos a produzi-los. Portanto, a indústria de alimentos não existe porque precisamos comer, já que poderíamos dispensar determinados produtos em benefício de nossa saúde. Ela existe, segundo Marx, pela mesma razão de qualquer outra indústria produtora de mercadorias: para a acumulação sem fim de capital.

    Nossas necessidades materiais e orgânicas também não explicam a existência da agroindústria. Segundo o censo agropecuário de 2017 do IBGE, 77% dos estabelecimentos agropecuários foram classificados como de agricultura familiar, embora a sua produção tenha sido de 23% do valor total da produção no período. Essa parcela menor no total é devida entre outros fatores à distribuição desigual de terras. Enquanto isso, o agronegócio domina a maior parte das terras agrícolas mesmo não produzindo, necessariamente, alimentos para a população, porém insumos e mercadorias para exportação. Utilizam grandes extensões de terra para plantar grãos para ração de animais ou cana que se tornará combustível para a indústria. E ainda assim, a agroindústria concentra a maior parte da renda no setor. Esta disparidade reflete uma estrutura social marcada por desigualdades e dominação, como evidenciado pelo ensinamento de Marx sobre a disponibilidade desigual de mercadorias, que não atende a todos, mesmo aos que delas necessitam.

    Não podemos ser displicentes quanto ao fato de haver dominação de uns sobre outros. O fenômeno da dominação (econômica e política) é dos mais importantes para compreendermos as sociedades capitalistas modernas e ocidentais. O fato de seguirmos as normas sociais e os valores que predominam em nossa sociedade e que regem as relações sociais não exclui um outro fato, que é o dessas normas sociais e valores beneficiarem mais a uns do que outros indivíduos dentro da mesma sociedade. Em outras palavras, nem todos têm os mesmos privilégios: por exemplo, apesar das mulheres enfrentarem uma condição desvantajosa perante os homens (mesmo nas ditas sociedades livres e igualitárias, ocidentais), uma senhora de classe média alta, profissional liberal que dirige seu próprio carro a caminho do trabalho está em situação de vantagem sobre a empregada doméstica, pois ainda que ambas sofram discriminação por sua condição feminina, uma pode pagar a empregada para cuidar dos filhos enquanto trabalha.

    Daí porque o modo individualista de pensar não é adequado ou suficiente para explicar a vida humana em sociedade. Essa visão nos diz que o homem age em função da perseguição de seus próprios interesses e da utilidade das coisas (e das pessoas), mas não explica como esses interesses surgem, nem esclarece como se define a utilidade de algo.

    2. Da infância ao mundo dos adultos

    Quando nascemos, não sabemos nada sobre o mundo, nem como sobreviver. Nossa experiência é caótica num certo sentido, e é por isso que todo bebê parece sempre curioso, atento a tudo e a todos. Essa primeira experiência de vida nos coloca em contato com outros seres humanos e com isso aprendemos nossa primeira de uma série de lições: a de que estamos “ligados” aos outros, que nos fornecem alimento e proteção. Dependemos de outras pessoas para sobreviver, dependemos de outras pessoas para crescer, dependemos de outras pessoas para nos tornarmos parte do grupo. Tudo o que somos e o que sabemos é aprendido ao longo de nossas vidas. É por isso que podemos afirmar que nosso comportamento vai se construindo pela interação com os outros: pais, amigos, namoradas ou namorados, professores, ídolos da televisão, craques do futebol, estranhos, livros, Instagram, TikTok etc.

    Aprendemos a falar, a seguir as regras do trânsito, a usar o vaso sanitário, a andar, a agir dessa ou daquela maneira, a fazer nossa comida de um certo jeito e não de outro, a obedecer a determinadas regras de convivência pública, a trabalhar, a chorar e até mesmo a nos divertir. As coletividades sociais aprendem a partir dos problemas com os quais se deparam e transmitem esse aprendizado aos seus descendentes, às gerações que as seguem. Esse é um processo contínuo e ininterrupto.

    E sempre participamos de algum grupo social, ou melhor, de vários grupos ao longo de nossas vidas, cada um com suas regras que devemos seguir – ou códigos de conduta e comunicação. Por isso podemos dizer que cada um desses grupos nos socializa, isto é, nos integra e nos ensina aquilo que é importante para a vida social. Muitos grupos dos quais participamos dão sentido a nossa vida – pensem no caso de uma pessoa religiosa, onde seu trabalho na igreja é a sua vida ou, ainda, em pessoas que fazem de seu trabalho em sua empresa o seu projeto de vida etc. Não é possível imaginarmos que os grupos dos quais participamos não influenciam em nosso modo de ser no mundo.

    Vivemos integrados numa comunidade que é uma comunidade de valores, de crenças, de linguagem, de sentimentos e comportamentos que são compartilhados por todos. Ora, desde que nascemos, por toda a nossa infância e durante toda a nossa vida nós interiorizamos os valores, crenças e hábitos de nossa sociedade. Em Sociologia, chamamos isso de processo de socialização, ou seja, o modo pelo qual somos integrados à sociedade. É por isso que podemos afirmar que as crenças e os valores são construídos socialmente, porque são formados pela coletividade, pela rede de relações sociais da qual todas as pessoas fazem parte. E quando nascemos os valores e normas sociais já estão constituídos e são dados como prontos. Nós não inventamos a língua, por exemplo. Nascemos e aprendemos a utilizá-la sem questionarmos sua validade ou natureza. Quando crianças, o mundo é o que nos ensinam os adultos. Aliás, seguimos muitas normas sociais sem sequer nos darmos conta disso. É como amarrar o tênis: você faz isso todo dia sem pensar em cada movimento, em cada operação. Simplesmente faz. Por exemplo, a norma que diz que “não é qualquer um que pode tocar qualquer parte do corpo de qualquer outra pessoa, em qualquer momento e em qualquer lugar”. Ufa! Mas essa norma não está escrita em nenhuma lei. Apenas a seguimos. De modo que existe um modo que adotamos para nos cumprimentarmos que se restringe aos limites que a norma estabelece. Observe que a norma não diz que não se pode tocar o corpo do outro. O momento, lugar e o direito de tocar podem variar. Pense, por exemplo, numa sociedade patriarcal e marcada pela desigualdade de gênero, como a nossa. Claro que determinadas práticas estão mudando devido à luta das mulheres por igualdade (ainda bem!), de modo que homens não podem mais sentirem-se no direito (porque tinham privilégios) de tocar uma mulher quando bem entenderem.

    Nosso comportamento – e até mesmo nossa personalidade – é, em grande medida, resultado do ambiente no qual vivemos e nos formamos. E porque nós temos uma mentalidade individualista (nossa sociedade dá ênfase às ações individuais, à subjetividade, aos desejos) isso nos cria certa dificuldade em perceber o quanto somos determinados pela configuração social na qual estamos inseridos. Mas não podemos deixar de perceber que, ainda que façamos escolhas, elas são sempre limitadas pelos padrões que aprendemos com os outros de acordo com os grupos dos quais participamos.

    Para seguirmos um raciocínio de um outro sociólogo, Peter Berger (1976), observem que a criança descobre quem ela é quando descobre o que a sociedade é, ou seja, a sociedade e a personalidade são o verso e o reverso de uma mesma realidade. Na medida em que os outros significativos, isto é, as pessoas importantes para nós, que cuidam de nós na infância e às quais devotamos um grande afeto, vão dizendo para as crianças como elas devem agir, o que devem pensar, o que é o certo e o que é errado, ela vai aprendendo a agir em sua sociedade porque vai descobrindo como é sua sociedade. Os outros significativos vão se tornando o que, em Sociologia, denominamos de Outros Generalizados, isto é, a sociedade. Por meio do processo de socialização as estruturas da sociedade tornam-se as estruturas de nossa própria mente.

    E as crianças vão, ao mesmo tempo, criando uma identidade, aprendendo a usar a linguagem e aprendendo os seus papéis sociais. Podemos afirmar que a “natureza” humana não surge no momento do nascimento. Ainda segundo Peter Berger, os homens adquirem uma “natureza” ou uma identidade por meio de suas associações e podem perdê-la (ou ela declina) quando se encontram isolados. Ou seja, podemos perder nossa identidade se ela não for, conforme a idéia de reciprocidade, reforçada e atualizada pelos outros de nosso grupo social.

    O processo de socialização nunca é completo e perfeito. Se assim o fosse seríamos robôs, verdadeiros autômatos. E ninguém é capaz de ser socializado em todos os aspectos de sua sociedade. Imaginem em nossa sociedade complexa, tecnológica e industrializada: para a socialização ser completa teríamos que aprender tudo, vivenciar tudo, participar de tudo. Impossível! Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, a socialização nunca termina. Estamos sempre sendo socializados, sempre aprendendo. A cada vez que ingressamos em um novo grupo social, talvez num novo emprego ou numa nova escola, nesse momento se inicia um novo processo de socialização onde aprendemos os códigos para bem atuarmos nesse grupo social.

    Obviamente, existem algumas determinações genéticas, uma psiquê humana e outros fatores de influência sobre o comportamento humano tratados por outras ciências. Mas, para o pensamento sociológico, o principal fator de formação da personalidade de um indivíduo é a sua socialização.

    Vamos acompanhar o que diz Peter Berger (1976, p.78):

    Ao chegarem a uma certa idade, as crianças ficam profundamente admiradas com a possibilidade de se localizarem num mapa. Parece estranho que a vida familiar de uma pessoa tivesse transcorrido inteiramente numa área delineada por um sistema de coordenadas impessoais (e até então desconhecidas) na superfície de um mapa. As exclamações da criança – “Estive aqui!”, “Agora estou aqui!” – revelam o assombro pelo fato de que o local de férias do verão passado, um local marcado na memória por fatos pessoais como a propriedade do primeiro cachorro ou uma coleção de minhocas, tenha latitude e longitudes específicas (…) Esta localização do “eu” em configurações concebidas por estranhos constitui um dos aspectos importantes que, talvez eufemisticamente, é chamado de “crescer”. Uma pessoa participa do mundo real dos adultos por possuir um endereço. A criança que talvez recentemente poria no correio uma carta endereçada “A vovô” agora informa a um colega caçador de minhocas seu endereço exato – rua, cidade, estado e o que mais for necessário – e vê sua tentativa de ingresso na cosmovisão adulta legitimada espetacularmente pela chegada da carta do amigo.

    Você se lembra de um dia, quando criança, ter se surpreendido com a descoberta de que todos temos um lugar no mundo? À medida que a criança ingressa no mundo dos adultos e continua aceitando a realidade que vão lhe ensinando, continua a colecionar “endereços” e outros marcadores que usará para elaborar a sua identidade. Dito de outro modo, o indivíduo vai se localizando no mundo e sua inserção num mundo social significa exatamente isso: adquirir uma localização particular. Desse modo, sou mecânico ou médico, moro numa região ou outra, sou católico, evangélico, candomblecista, umbandista etc. O adulto “normal” é aquele que vive dentro das coordenadas que lhe foram atribuídas. A localização de um indivíduo lhe informa o que ele pode esperar de sua vida. E o que a vida – a sociedade – espera dele. Isso não quer dizer que o mundo seja justo ou bom, mas simplesmente que não somos o que somos por obra do acaso, nem unicamente por escolha pessoal.

    3. A socialização: uma estrada de mão dupla

    Sabemos que socialização pode ser definida como o processo de tornar-se membro de uma sociedade (Berger e Berger, 1975). Nossas sociedades permitem diferenciações até ao nível individual, mas nem todas permitem. Desse modo, a socialização que ocorre em nossa sociedade é mais diferenciada do que em outras. O que significa dizer: também somos diferentes uns dos outros por termos uma história de vida diferente, pois ninguém é socializado exatamente da mesma forma, sendo que cada indivíduo participa de experiências distintas ao longo de sua vida.

    E, dessa forma, desenvolvemos as qualidades humanas necessárias à sobrevivência. São essas qualidades que nos permitem resolver problemas, são elas que explicam a diversidade de costumes entre os seres humanos e são elas, também, que nos permitem ser autônomos e livres. Parece uma contradição, mas não é. Significa que é justamente porque dependemos de outros no início de nossa vida que conquistamos um certo espaço de autonomia e liberdade, ainda que limitada pelas normas sociais. Seria mais ou menos assim: na medida em que eu aprendo com o outro quem eu sou ou o que devo ser, aprendo a pensar sobre mim mesmo e, desse modo, me liberto em parte daquilo que o outro quer de mim.

    Quando falamos em socialização dos indivíduos, estamos sugerindo que aquilo que nós somos é o resultado de um processo que aprendemos na convivência com outros seres humanos, com base em valores, ideias, atitudes e comportamentos comuns. Seus sentimentos, suas ideias, seu modo de falar e seu modo de vestir são aprendidos através do seu contato com as gerações anteriores. A primeira fase de socialização é chamada de socialização primária, ou seja, aquela que acontece com uma carga emocional forte, em relações pessoais diretas com pessoas muito importantes, significativas, a exemplo da socialização nas famílias. Já a aprendizagem junto a grupos de amigos, na escola, na igreja ou pela TV, por exemplo, é a chamada socialização secundária. Em todo o caso, socialização significa aprender a ser membro de uma sociedade.

    Já um papel social é um comportamento esperado de um indivíduo que ocupa uma determinada posição na sociedade, um comportamento padronizado. Existem os papéis de ser mãe, ser professor etc. Mas quer dizer, então, que cada um de nós não tem liberdade para decidir o que pensar ou o que fazer? Somos os papéis sociais que representamos? Não é bem assim. Para o sociólogo Durkheim (1999), por exemplo, à mediade que as sociedades vão se tornando mais complexas os papéis sociais vão se especializando e a sociedade alcança um grau muito alto de diferenciação interna, isto é, os indivíduos se individualizam cada vez mais. Fascinante, não? Portanto, no tipo de sociedade em que vivemos precisamos nos diferenciar uns dos outros, e isso seria uma exigência de nossa própria estrutura social – segundo os estudos de Durkheim.

    Existe um processo que os sociólogos denominam por objetivação e subjetivação. Parecem palavras complicadas, não é mesmo? Mas, nem tanto. Por objetivação os sociólogos querem falar da construção da vida social por parte dos indivíduos membros de uma determinada sociedade. Já por subjetivação, do modo como esses mesmos indivíduos apreendem ou interiorizam os códigos, normas, valores e símbolos produzidos numa determinada sociedade. Essas palavrinhas, objetivação e subjetivação, têm tudo a ver com o que você leu anteriormente, e por quê? Simplesmente porque o mundo que conhecemos é construído dia a dia por nós mesmos. Há cinquenta anos suas avós não poderiam nem pensar em ir à praia de biquíni. O que mudou desde então? Por diversas razões que não cabem discutir agora, outras ideias foram emergindo e se disseminando na vida social de um tal modo que as pessoas foram valorizando outros comportamentos, outras práticas. Daí que se a sua irmã ou namorada for à praia, hoje, de maiô de peça inteira, daqueles que suas avós usaram, que cobriam das coxas até quase o pescoço, com muita certeza seria objeto de risadas.

    A subjetivação também não é difícil de compreendermos, pois é justamente o fato de introjetarmos aquele traço de personalidade que a sociedade deseja para nós. Porque introjetamos aquilo que Durkheim (1999) denominou de “o meio moral no qual vivem os indivíduos”, isto é, os modos de ser, pensar e sentir próprios de nossa sociedade, naquele momento de sua história. E, obviamente, quem nasce numa determinada região do país ou numa classe social vai aprender coisas diferentes de outros indivíduos, de outras regiões ou de outras classes sociais. A cada lugar na sociedade correspondem aprendizagens distintas a que são submetidos os indivíduos. Em outras palavras, introjetamos uma sociedade “diferente” de acordo com o lugar social em que tivemos a sorte – ou o azar – de nascer.

    Existem “componentes” da estrutura social que servem exatamente ao processo de subjetivação discutido antes e esses são as instituiçõs sociais. As instituições, segundo o sociólogo por Peter Berger (1976), têm uma influência muito forte sobre os indivíduos, moldando-os com suas regras, normas e mecanismos de controle, que variam desde sanções até mesmo o uso da violência. No entanto, os indivíduos também têm o poder de atualizar ou mesmo de modificar essas instituições no seu dia a dia. Elas se constituem como complexos de papéis sociais e mecanismos reguladores da vida humana. Elas são independentes de nós e determinam em grande medida as nossas ações e expectativas, levando-nos a cumprir determinados papéis sociais sob o risco de enfrentar uma variedade de recursos de controle e sanções, incluindo isolamento, exposição ao ridículo, privação e, em casos extremos, violência.

    As instituições sociais, no entanto, são parte do modo como existimos. Por que somos seres sociais. Ao invés de instintos, temos instituições sociais. Elas fornecem mecanismos de controle e autocontrole. E também mudam. Vejamos o que os sociólogos Hans Gerth e Charles Wright Mills (1973, p.25-26) nos dizem sobre as instituições sociais:

    A função principal de uma instituição tem enorme importância para a vida psíquica dos demais membros da instituição. O que o chefe pensa a respeito deles (…) ou o que eles imaginam que pense, é interiorizado, isto é, absorvido (…) se em decorrência de mudanças na organização das instituições de uma sociedade, a família patriarcal perde a sua importância, a influência do pai como um fator de controle social na vida interna dos membros da família também declinará. Deste modo, o centro institucional de controle social no interior de nós mesmos, também pode variar. É isto o que acontece à medida que a criança atinge a maturidade, que cresce.

    Isso é estar localizado na sociedade, ou seja, estar na interseção de forças sociais específicas. Existem muitos meios de coerção social que agem para garantir esse processo de localização. Talvez o mais antigo, e bastante eficaz, seja a violência física. Não existe um Estado político que não esteja fundamentado nele. Estes meios servem para que elementos indesejáveis sejam eliminados e para que outros sejam “educados”. Claro, existem outros meios de coerção social e o próprio sistema político e jurídico (Leis, Constituição, Poder Judiciário etc.) exerce outras formas de controle. Mas existem meios ainda mais eficazes. A moralidade, os costumes e as convenções sociais são, provavelmente, os mais eficazes instrumentos de coerção social de que dispõem as sociedades. Isto porque nós internalizamos as regras morais de nossa sociedade. Por isso elas têm mais força, não aparecem como imposições, mas nos aparecem como aquilo que nós mesmos desejamos. Nos aparecem como o “normal”, o que deve ser. Nesse sentido, a sociedade está em nossas cabeças, não fora delas. Como o ridículo, a vergonha, a difamação, o disse-me-disse e o embaraço que frequentemente surgem na vida cotidiana, são eles também uma forma de coerção social. Os indivíduos controlam-se uns aos outros, tanto quanto cada um possui um mecanismo de autorregulação. E nem por isso devemos deixar de reconhecer o tanto de violência e intimidação que existe nesses processos. Afinal, todos esses meios de controle social indicam claramente os conflitos que regem as sociedades. Poderíamos, ainda, citar vários outros meios de coerção social como o de natureza econômica (desemprego, greve etc.), a religião, a educação, a psiquiatria – o indivíduo que não satisfaz os critérios de normalidade ou é isolado ou é submetido a tratamento “para se ajustar” – e o próprio sistema ocupacional ou profissional – porque, afinal, é o emprego ou a ocupação de uma pessoa que decidirá o que ela poderá fazer na maior parte de sua vida.

    Observe que a própria Sociologia, ao nos ajudar a compreender melhor a sociedade em que vivemos e as relações sociais das quais participamos, tem o efeito de aumentar a nossa liberdade. Assim como em toda a ciência, o conhecimento aumenta a nossa liberdade. No início do século passado os humanos viviam muito menos. Mas com investimento em medicamentos, vacinas e saneamento básico, aumentamos a expectativa média de vida: isso devido à ciência.

    4. A sociedade como reciprocidade

    Para mostrar como interagem esses dois pólos – sociedade e indivíduo – e como são faces de uma mesma moeda, mais uma vez vamos seguir as pistas do sociólogo Marcel Mauss (1981); especialmente vamos analisar seus dois conceitos fundamentais: a idéia de fato social total e a noção de Dádiva ou Dom.

    Para Mauss, o que ele chama por Dom ou Dádiva explica boa parte das relações sociais. E o que é a dádiva senão tudo aquilo que contribui para a coesão social, isto é, para que se mantenham os laços sociais existentes? Desse modo, Mauss, ao estudar longamente as sociedades tribais australianas, americanas, entre outras ditas “arcaicas”, percebeu que em todas sempre existiu uma espécie de troca que ele resumiu na “obrigação de dar, receber e retribuir”. E essa troca se dá de modo ritualizado, com cerimônias especiais onde tribos trocam presentes, ou simplesmente os consomem, como em algumas festas em que toda a produção de um ano é totalmente consumida ou simplesmente destruída. Muitas vezes essas cerimônias contém um forte componente de luta, de conflito travado entre as tribos ou agrupamentos humanos, o que Mauss denomina por dádiva agonística (conflituosa). Pela troca se estabelecem alianças que evitam guerras. Pela troca cria-se uma obrigação recíproca e constante, já que quem recebe deve dar mais do que recebeu. Pela dádiva, enfim, fundam-se as sociedades.

    Segundo Mauss, o que define a vida humana coletiva é, digamos, uma “lei”, que nos leva a estabelecer trocas com outros indivíduos, grupos ou tribos, isto é, que nos leva a dar, a receber e a retribuir. E não apenas em sociedade tribais encontramos os ritos da dádiva, porém entre nós mesmos, como nas trocas de palavras e saudações, tanto quanto nos casos da doação de órgãos, de sangue, na troca dos presentes de natal ou, para não ficarmos nos exemplos óbvios, na disputa política. Sim, pois é sabido que a política se define em grande medida por essa relação em que se trocam lealdades, votos e benefícios de todo o tipo.

    Ficou difícil acompanhar até aqui? Então que tal simplificarmos um pouco a idéia do Mauss e a levarmos a uma situação cotidiana?

    Imagine a situação de uma troca de presentes. Se você vai a um aniversário sabe que deve dar um presente. E se o aniversariante é alguém que no seu aniversário lhe deu um presente caro, raro ou muito desejado, então as coisas podem realmente se complicar, não é mesmo? O que comprar de presente que tenha o mesmo valor, ou superior, ao recebido anteriormente? É assim que pensamos. Analise a linguagem que usamos: quem recebe, diz “obrigado”, o que indica a obrigação em que se fica por se ter recebido algo, a obrigação em se retribuir aquilo que se recebeu. Mas manda a etiqueta que se retribua com algo de valor equivalente ou superior do que se recebeu, não é mesmo? Ao mesmo tempo, quem dá deve responder “por nada”, pois assim liberta o outro da obrigação, mesmo que ela permaneça de fato, escondida em nossa mente, para que ao se retribuir o recebido aquele que retribui possa fazê-lo também de modo espontâneo, não “por mera obrigação”. É justamente nesse jogo que se estabelecem solidariedades entre as pessoas que tendem a durar.

    O problema é que quem dá deve dar livremente. Por isso há na troca de presentes entre as pessoas ao mesmo tempo obrigação e liberdade, interesse e desinteresse, aliança e competição (de presentes, por exemplo: quantas vezes não vimos isso se repetir em nosso cotidiano, em nossos natais, tanto como quantas vezes não vemos isso nas ações de políticos que disputam “quem faz mais pelo povo”?). Desse modo, a regra social que nos leva a dar, receber e retribuir constitui um pacto entre as pessoas, pacto que atende às exigências da obrigação e da espontaneidade. Espontaneidade porque o dar deve ser feito de modo espontâneo, ainda que essa seja uma obrigação própria da vida social.

    Um paradoxo? Vejamos: essa obrigação não é exercida do exterior do indivíduo, como que imposta pela sociedade ou por alguém, pois sempre se pode ser desleixado o suficiente para se esquecer de comprar aquele presentinho de aniversário da sogra. São os próprios indivíduos que, ao darem, mantém o ciclo infinito da troca e de sua regra, recriando-a e atualizando-a incessantemente no seio da sociedade. De tal modo que a troca cria uma dívida constante (às vezes, crescente) entre os indivíduos, mas a espontaneidade da doação e da retribuição se deve exatamente para que a dívida não seja vista como dívida e para que o ciclo da troca sempre tenha um novo começo, como se fosse uma invenção original e livre.

    Então existe uma regra social que nos impulsiona a dar, receber algo ofertado e retribuir algo recebido, para que estabeleçamos laços sociais. Mas essa regra social não pode ser vista como é: uma regra. De tal modo que, mesmo se a entendermos como regra, ainda assim, ela dependerá de nossa decisão em cumpri-la. Por que se assim não for o caráter de liberdade, de originalidade, de incondicionalidade e de espontaneidade se perde e nós sabemos bem que não há nenhuma graça e nenhum mérito em se dar um presente pela mera obrigação, certo?

    A exigência social do “dar, receber e retribuir”, que acontece numa simples troca de presentes, acontece em todas, ou quase todas, as situações de troca numa sociedade. Por isso é que podemos afirmar que as sociedades se fundamentam numa exigência (ou numa obrigação, como queiram) de dar, receber e retribuir, mas de se fazer isso com espontaneidade, liberdade e incondicionalmente.

    Em outros termos, diríamos que as sociedades são fundadas justamente por essa exigência em se estabelecer laços sociais. O que expressa uma aposta humana na confiança, na aliança e na continuidade desses laços. E eu estou falando em aposta, pois de algum modo nós estamos submetidos às normas sociais – como à exigência em se estabelecer laços sociais ou o “dar, receber e retribuir” –, porque as temos apoiado cotidianamente. E nesse jogo, nesse drama social, se estabelecem solidariedades que tendem a durar e que evitam os conflitos. Mas essa obrigação deixa de ser exercida do exterior do indivíduo, como que imposta pela sociedade, já que entre o indivíduo e a sociedade não há mais um hiato, mas uma relação de tradução recíproca.

    A alternativa à aliança promovida pela troca é a guerra aberta, o conflito, a vingança. Daí que freqüentemente a troca, de presentes ou outra coisa qualquer – incluindo-se as trocas comerciais –, ritualiza o conflito, pois que com ela muitas vezes se lança um desafio que desemboca numa competição, como foi dito acima. Ao mesmo tempo gera-se um ganho generalizado, pois quem recebe, concretamente recebe mais do que dá (como determina a etiqueta: retribuir mais do que se recebe). Com a troca se aposta no ato incondicional de dar, pois na aliança se deve dar tudo ao amigo, o que não exclui a possibilidade de recair, a qualquer momento, na desconfiança; se aposta na doação incondicional que condiciona a retribuição, mas uma aposta que necessariamente não se efetivará sempre.

    Esse caso simples da troca de presentes nos mostra, então, que a vida humana contém um quê de probabilidade, de incerteza, de indefinição. Nesse espaço ambíguo se constituem as relações que podem variar da competição/ conflito à aliança/ consenso – onde quem dá não tem realmente garantias de encontrar retribuição – especialmente se dá um presente para aquele cunhado mala que nunca lembra do seu aniversário. Portanto, sempre há a possibilidade de ruptura, de mudança (até mesmo de revolução). E também sempre há a possibilidade de desejarmos as coisas como são, e continuarmos apostando nossas fichas na vida como ela tem sido.

    Desse modo percebemos que a necessidade material e os valores são constituintes simultâneos da ação humana. Percebemos que a vida humana é, “ao mesmo tempo” e não “uma coisa ou outra”, necessidade prática e expressão simbólica, conflito e consenso, ação interessada e desinteressada, obrigação e liberdade, escolha individual e coerção social. Na fragilidade da vida humana coletiva percebemos que não há como se fazer uma radical separação entre o sociológico e o psicológico já que o que constitui um plano (social) é passível de tradução no outro (individual).

    Eis as duas lições primordiais da idéia de dádiva de Mauss: a vida social é constituída pela exigência de dar, receber e retribuir – exigências de sociabilidade que geram interdependência entre os seres humanos – e os seres humanos fazem escolhas, ainda que dentro de contextos previamente constituídos, mas que podem sempre ser alterados. A reciprocidade estudada por Mauss nos revela o tipo de ligação existente entre o indivíduo e a sociedade.

    Daí chegamos à idéia de fato social total, que para Mauss expõe a complexidade do social em suas múltiplas dimensões. Nesse sentido, a economia, a psicologia e a sociologia distinguem-se não porque na “realidade” haja fatos exclusivamente econômicos, psicológicos e sociológicos, mas porque nossa sociedade assim os classifica. E Mauss vai mais longe ao propor que o econômico e o simbólico, assim como o político e o psicológico não são compartimentos estanques, porém estão imbricados, presentes em todos os fatos sociais, ou ainda, em toda a ação social, pois que para ele, “o que é verdadeiro, não é a oração ou o direito, e sim o melanésio de tal ou tal ilha”, ou seja, o indivíduo concreto existente.

    5. Afinal, precisamos viver em sociedades?

    Bem, se não houvesse sociedade, se não aprendêssemos com outras pessoas o que precisamos para nos orientar na vida, seríamos uma monstruosidade, um caso psiquiátrico perdido, um caos. Alguns animais já nascem andando e fazendo coisas necessárias à sua sobrevivência, mas o ser humano não, ele precisa aprender. Até mesmo boa parte de nossos sentimentos são “configurados” pela sociedade – não é em todo momento que rimos ou choramos, nem por qualquer coisa, mas não sabemos disso ao nascer. E por quê? Porque nascemos com um organismo “incompleto”, ainda em formação e sem sabermos falar, andar, nos comportar junto a outras pessoas. Devemos aprender isso na vida social.

    É por isso que podemos mesmo afirmar que a necessidade da vida social para o ser humano possui um fundamento biológico. O ser humano possui uma abertura para o mundo que lhe possibilita ser quase qualquer coisa que escolher. Fazemos parte de uma espécie que possui uma enorme plasticidade, isto é, a capacidade para se moldar a condições bem diversas de vida. Seres humanos vivem tanto em desertos muito quentes quanto nas extremidades mais frias do planeta, tanto em cidades cheias de gente e barulho, quanto em densas florestas selvagens. Mas, por ter um organismo incompleto e por ter essa capacidade de aprender, essa plasticidade (ou sua abertura para o mundo), se não vivesse em grupo e aprendesse com o grupo, os seres humanos sucumbiriam aos desafios da natureza. Não podemos voar com os recursos que a natureza nos forneceu, mas inventamos outras formas de fazer isso, porque aprendemos.

    No entanto, essa abertura precisa ser relativamente fechada por meio de padrões de conduta e formas de pensar que o ser humano aprende com outros seres humanos. Temos poucos instintos, porém temos instituições sociais. O ser humano, como espécie animal, possui alguns instintos básicos para sua sobrevivência – como no caso dos bebês que choram quando estão com fome. Mas diferentemente de outras espécies animais, seus instintos ajudam muito pouco. Ele não pode depender de uma programação genética que, a rigor, não possui. Devido a essa abertura para o mundo, devido a ter um organismo biológico extremamente generalista, isto é, capaz de adaptações numa escala muito ampla, o ser humano supre essa carência com a construção de instituições sociais que regem as mais diversas áreas de sua vida por meio de rituais, valores e normas sociais específicas: o casamento, o modo de preparar os alimentos e de comê-los, o Estado, a justiça, as formas de tomarmos banho – e sua frequência –, o modo como namoramos e nos divertimos etc. Esses rituais e normas sociais são o que denominamos de padrões sociais. E é por isso que podemos dizer que somos “bichos” sociais.

    Cada um de nós desenvolve ideias, princípios, valores, objetivos, interesses, talentos, emoções e tendências para atuar no mundo que dependem da nossa biografia, isto é, de nossa história de vida. E é a interação que direciona essas qualidades individuais. Até para ser um indivíduo precisamos da vida social. Se observarmos outras sociedades, veremos que a ideia de indivíduo não existe para todas. O indivíduo concreto, empírico, de fato existe. Porém, o indivíduo enquanto construção moral e social, enquanto sujeito, relativamente autônomo e auto regulado não existe para todas as sociedades. Como nós o pensamos, ele é uma construção ocidental moderna. Nossas sociedades permitem diferenciações até ao nível individual, mas nem todas permitem. Se isso não ocorre do mesmo modo em qualquer lugar do planeta é porque algo em cada sociedade nos permite ser isso e não aquilo.

    Por ora, esperamos que você tenha ficado curioso sobre o que a Sociologia pode nos dizer sobre o mundo em que nós vivemos e sobre as pessoas que vivem nele. Se isso aconteceu, certamente você gostará de continuar estudando Sociologia. Por enquanto o único objetivo deste texto foi o de apresentar algumas pistas que a Sociologia nos oferece para resolver o enigma da sociedade. Você pode seguir essa investigação. Topa o desafio?

    Bibliografia

    BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas – uma visão humanística. Petrópolis: Vozes, 3a edição, 1976.

    BERGER, Peter L. e BERGER, Brigitte. Sociology – a biographical approach. Nova Iorque: Basic Books, 2a edição, 1975.

    DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

    DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

    ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

    GERTH, Hans e MILLS, Charles Wright. Caráter e Estrutura Social. A psicologia das Instituições Sociais. Coleção Perspectivas do Homem. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1973.

    IBGE. “Censo Agro 2017: população ocupada nos estabelecimentos agropecuários cai 8,8%”. Acessado em 05/04/2024.

    MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital, v.I, 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

    MAUSS. Marcel. Estudos de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.

    Como citar este texto:

    SARANDY, Flávio. Temas de introdução à Sociologia. Blog Café com Sociologia, mai. 2023. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/temas-de-introducao-a-sociologia/


    1 Professor na Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

  • Normas sociais: entre coesão social e dominação

    Normas sociais: entre coesão social e dominação

     Normas sociais: entre coesão social e dominação

    Cristiano das Neves Bodart1

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    Uma das tarefas mais importantes da Sociologia tem sido explicar o que torna possível vivermos em coletividade e formarmos sociedades. Dentre os esforços empreendidos vamos encontrar sociólogos que se dedicam a pensar o papel das normas sociais. Contudo, as respostas apresentadas, embora partindo de uma matriz comum, a presença da coercitividade, apontam perspectivas diferentes. Para exemplificar, tomemos as contribuições de autores como Émile Durkheim (1858-1917), Parsons (1902-1979), Karl Marx (1818-1883) e Michel Foucault (1926-1984).

    A coerção social é um conceito que também possui variadas perspectivas científicas, estando associado as noções de repressão, controle, dominação, constrangimentos, orientação, controle, etc. (Pereira, 2021). As normas sociais para terem funcionalidades dependem da sua capacidade de coerção social, que pode ocorrer a partir da força física ou simbólica.

    Em síntese, as normas são regras socialmente estabelecidas, constituindo-se em expectativas que orientam o comportamento dos indivíduos dentro de um grupo, o que faz por meio da coerção social. Elas podem ser explícitas ou implícitas, ou seja, estarem expressas em placas, cartazes, manuais, etc., ou simplesmente serem conhecidas por todo o grupo sem que se fale delas – geralmente desdobramentos de outras normas explícitas. Por exemplo, estando explicitamente estabelecido que não é permitido entrar em uma igreja católica sem camisa, fica implicitamente compreendido que também não se pode entrar no mesmo local com uma revista com conteúdos pornográficos.

    Nas sociedades complexas, existe uma tendência das normas serem legitimadas pelo Estado, tornando-se códigos sociais. O código social é um tipo de norma, sendo conjuntos mais amplos de normativas juridicamente instituídas. Os exemplos mais conhecidos de códigos sociais são a Constituição e o Código Civil. Tanto normas quanto códigos preveem coerções e punições aos infratores, isso porque a matriz comum é a presença da coercitividade, como afirmado.

    Sendo as funções das normas interpretadas divergentemente, vamos aqui centrar nossa atenção aos extremos. De um lado, encontramos pensadores que entendem as normas como um mecanismo social importante para a manutenção da harmonia social, evitando conflitos que podem desintegrar a sociedade. Dentre eles está Durkheim e Parsons. Por outro lado, identificamos figuras como Marx e Foucault que entendem as normas como meios de dominação e manutenção do status quo.

    A perspectiva conservadora

    Numa perspectiva conservadora, as normas e os códigos devem ser observados para que a vida coletiva seja possível. Trata-se de um “contrato social” que visa garantir a ordem. Sociólogos como Émile Durkheim e Talcott Parsons dedicaram-se ao estudo das normas sociais. Vamos notar que Durkheim (1999), por exemplo, via as normas como elementos essenciais para a coesão social, argumentando que elas são parte integral da “consciência coletiva” que une membros de uma sociedade. Ele afirmava que sem normas compartilhadas, a sociedade se desintegraria em um estado de anomia, onde a falta de expectativas claras levaria ao desregramento e ao conflito. Parsons (2011), por sua vez, analisou como as normas funcionam dentro de sistemas sociais, enfatizando o papel da socialização na internalização dessas normas pelos indivíduos, o que permite a estabilidade e a previsibilidade das interações sociais.

    A perspectiva crítica

    No pensamento sociológico crítico, as normas e códigos são entendidos como regulamentos que visam à proteção da propriedade privada e à manutenção do status quo estabelecido pela Revolução Burguesa que estabeleceu o Estado Moderno, fiel representante da burguesia. Visando garantir a manutenção do poder político e econômico, normas e códigos sociais são estabelecidos de cima para baixo, segundo os interesses burgueses. Michel Foucault (2014) destacou que as normas são frequentemente utilizadas para exercer poder e controle social, moldando não apenas as ações mas também os pensamentos e desejos dos indivíduos. Na sociedade gerida pelo Estado burguês, a polícia, o judiciário e o legislativo estarão sempre a serviço da manutenção da ordem, favorecendo os grupos dominantes. Quando os dominados questionam ou não obedecem às normas ou aos códigos, são duramente reprimidos, ao contrário do que ocorre quando o infrator pertence à elite política ou econômica. Karl Marx (2013) apontou que a manutenção dos privilégios burgueses, especialmente a exploração da forma de trabalho, depende de mecanismos de manipulação das ideias, levando a classe trabalhadora a acreditar que as normas são resultados de um contrato social que visa o bem coletivo, quando na verdade são mecanismos de controle.

    Considerações finais

    A análise das normas sociais sob diferentes perspectivas sociológicas revela a complexidade subjacente à sua função e significado dentro das sociedades. Enquanto alguns teóricos, como Émile Durkheim e Talcott Parsons, enfatizam o papel das normas na manutenção da coesão social e na prevenção de conflitos, outros, como Karl Marx e Michel Foucault, destacam sua utilização como instrumentos de dominação e controle, especialmente nas mãos das elites políticas e econômicas. Essa dicotomia entre a visão conservadora e crítica das normas reflete não apenas divergências teóricas, mas também diferentes agendas políticas e ideológicas que moldam as interpretações e aplicações das normas na prática social.

    Ademais, a compreensão das normas como dispositivos sociais dinâmicos, sujeitos a contestações e reinterpretações ao longo do tempo, ressalta a importância de uma abordagem crítica e reflexiva nos estudos sociológicos das instituições e grupos sociais. O estudo das normas sociais continua a ser uma área dinâmica de investigação sociológica, oferecendo perspectivas variadas para pensarmos as dinâmicas das interações sociais.

    Referências bibliográficas

    DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

    MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.

    PARSONS, Talcott. O Sistema Social. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

    PEREIRA, Thiago Ingrassia. O que é coerção social? In: BODART, Cristiano das Neves. Conceitos e categoriais fundamentais do ensino de Sociologia. Maceiío: Editora Café com Sociologia. vol.1. 2021. p.53-56. [Coleção Conceitos e categoriais fundamentais do ensino das Ciências Sociais].

    Dicas de atividades pedagógicas

    Atividade 1: Debate em Grupo

    Objetivo: Promover uma reflexão crítica sobre as diferentes perspectivas sociológicas em relação às normas sociais.

    Instruções: Divida a turma em grupos e atribua a cada grupo uma das seguintes abordagens sociológicas apresentadas no texto: funcionalismo (Durkheim e Parsons) e teoria crítica (Marx e Foucault). Os grupos devem discutir as principais ideias dos autores atribuídos e elaborar argumentos para defender ou contestar suas visões sobre as normas sociais. Em seguida, promova um debate em sala de aula, onde os grupos apresentarão suas análises e responderão a perguntas dos colegas.

    Atividade 2: Análise de Casos

    Objetivo: Aplicar os conceitos discutidos no texto a situações do cotidiano.

    Instruções: Apresente aos estudantes casos reais ou hipotéticos envolvendo questões relacionadas a normas sociais e sua aplicação na sociedade. Os casos podem incluir dilemas éticos, conflitos culturais ou situações de desvio de normas. Os estudantes devem analisar cada caso sob a perspectiva das diferentes teorias sociológicas discutidas no texto e discutir em grupos como cada abordagem explicaria o fenômeno em questão. Em seguida, compartilhem suas análises com a turma e debatam as diferentes interpretações.

    Como citar este texto:

    BODART, Cristiano das Neves. Normas sociais: entre coesão social e dominação. Blog Café com Sociologia, mai. 2023. Disponível em:


    1 Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: [email protected]

     

     

     

     

     

  • O que é meritocracia

    O que é meritocracia

    Por Roniel Sampaio

    A meritocracia, em sua essência, é um conceito que prega a ideia de que as recompensas e os avanços na sociedade devem ser distribuídos com base no mérito individual. Ou seja, a meritocracia pressupõe que as pessoas devam ser recompensadas de acordo com suas habilidades, esforços e realizações pessoais. No entanto, essa ideia aparentemente justa tem sido alvo de debates acalorados e críticas, à medida que muitos argumentam que a meritocracia é, na verdade, uma falácia. Neste texto, exploraremos o que é meritocracia e discutiremos porque ela é considerada por alguns como uma falácia.

    A meritocracia, em sua forma ideal, propõe que as oportunidades e recompensas na sociedade sejam distribuídas de acordo com o mérito individual. Aqueles que trabalham duro, se esforçam, adquirem habilidades e alcançam o sucesso devem ser recompensados com salários mais altos, posições de destaque e outros benefícios. Este sistema pressupõe que o talento e o esforço pessoal são as únicas variáveis que devem ser consideradas ao determinar o sucesso de um indivíduo. Aqueles que defendem a meritocracia argumentam que ela é uma forma justa e eficaz de recompensar o mérito e incentivar a competição saudável.

    No entanto, a ideia de meritocracia é frequentemente questionada por várias razões. Uma das principais críticas à meritocracia é que ela ignora as desigualdades de origem que afetam as oportunidades de vida das pessoas. O ambiente em que alguém nasce, as circunstâncias familiares, a classe social e a educação disponível desempenham um papel fundamental no desenvolvimento das habilidades e oportunidades de um indivíduo. Nem todos têm acesso às mesmas condições para desenvolver seu potencial, o que torna a meritocracia, na prática, difícil de ser alcançada.

    Michael Young, em sua obra “The Rise of the Meritocracy” (1958), concebeu o termo “meritocracia” como uma crítica satírica à ideia de um sistema social onde o status e o poder são conferidos com base no mérito individual, medido principalmente através da inteligência e do esforço educacional. Na visão de Young, essa abordagem, embora inicialmente possa parecer promover a justiça, na realidade, acaba por criar uma nova forma de desigualdade, já que em sociedades desiguais os indivíduos possuem condições desiguais. Em uma sociedade meritocrática, a classe dominante justifica sua posição e privilégios através de suas conquistas, supostamente merecidas, tornando a desigualdade social mais aceitável e menos questionada. Young alertava sobre os perigos de uma sociedade onde o mérito se torna o critério exclusivo para o sucesso, potencialmente levando a um elitismo rígido e à alienação daqueles que não conseguem atingir os padrões estabelecidos.

    Um exemplo disso é a desigualdade de acesso à educação. A qualidade da educação pode variar significativamente de uma região para outra, e as pessoas que têm acesso a uma educação de qualidade têm mais chances de desenvolver suas habilidades e competências. Aqueles que vêm de famílias com recursos financeiros para investir em educação de qualidade ou que vivem em áreas com escolas de alto desempenho têm uma vantagem inicial que não é resultado de seu mérito pessoal, mas sim de sua origem.

    Além disso, a meritocracia muitas vezes ignora a discriminação sistêmica e o preconceito que afetam certos grupos de pessoas. A discriminação racial, de gênero, étnica e outras formas de discriminação podem criar barreiras significativas para o avanço de algumas pessoas na sociedade, independentemente de seus méritos individuais. Isso significa que indivíduos talentosos e esforçados podem ser impedidos de alcançar seu pleno potencial devido a fatores além de seu controle.

    Outra crítica à meritocracia é que ela não considera o papel da sorte na vida das pessoas. Muitos fatores, como a sorte de estar no lugar certo na hora certa, podem influenciar significativamente o sucesso de uma pessoa. Em muitos casos, o sucesso não é apenas uma questão de mérito pessoal, mas também de circunstâncias aleatórias. A meritocracia, ao desconsiderar a sorte, muitas vezes leva a uma visão excessivamente simplista de como as recompensas na sociedade são distribuídas.

    Além disso, a meritocracia pressupõe que o sucesso é uma questão de esforço individual e que as pessoas podem controlar completamente seu destino. No entanto, existem inúmeras variáveis fora do controle de um indivíduo que podem influenciar seu sucesso, como mudanças econômicas, crises financeiras, mudanças tecnológicas e políticas governamentais. Portanto, a ideia de que alguém é inteiramente responsável por seu próprio sucesso é uma simplificação excessiva da realidade.

    A meritocracia também pode incentivar uma competição feroz e desenfreada que, em última análise, pode ser prejudicial à sociedade. Quando o sucesso é visto como o único resultado aceitável, as pessoas podem se sentir pressionadas a competir a qualquer custo, o que pode levar a comportamentos antiéticos, como a trapaça, a exploração de outros e a busca implacável do próprio interesse em detrimento dos outros. Isso pode levar a um ambiente de trabalho tóxico e a uma sociedade dividida.

    Outra crítica à meritocracia é que ela tende a reforçar as desigualdades existentes. Aqueles que já têm uma vantagem devido à sua origem econômica ou social têm mais recursos para desenvolver suas habilidades e competências, o que aumenta ainda mais a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Isso pode levar a uma concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos, criando um ciclo de desigualdade que é difícil de ser rompido.

    Uma consequência da meritocracia é a criação de uma mentalidade de “culpabilização da vítima”. Aqueles que não conseguem atingir o sucesso são frequentemente culpados por sua falta de esforço ou habilidade, sem levar em consideração as barreiras estruturais e as desigualdades sistêmicas que podem estar em jogo. Isso pode levar a um julgamento negativo das pessoas que enfrentam dificuldades, em vez de reconhecer que muitas vezes há fatores externos significativos que contribuem para seu fracasso.

    Por fim, a meritocracia pode ter implicações negativas para a saúde mental das pessoas. A constante pressão para ter sucesso e a sensação de que o fracasso é um reflexo de falta de mérito pessoal podem levar ao estresse, à ansiedade e à depressão. Muitas pessoas lutam com altas expectativas impostas por uma sociedade que valoriza a meritocracia, o que pode ter um impacto negativo em sua saúde mental.

    Portanto, embora a meritocracia seja um conceito atraente em teoria, na prática, há muitas críticas válidas que argumentam que ela é uma falácia. A ideia de que as recompensas na sociedade devem ser distribuídas com base no mérito individual ignora as desigualdades de origem

  • O que são desigualdades sociais múltiplas?

    O que são desigualdades sociais múltiplas?

    Durante muito tempo as desigualdades sociais de classe foram focos dos cientistas sociais. Atualmente, há um movimento das agendas de pesquisas em direção às desigualdades sociais múltiplas, ainda que não abandonando a noção de classes sociais e considerando suas dinâmicas. Neste texto conceituo e exemplifico o conceito de desigualdades sociais múltiplas e destaco o perigo de cooptação da indignação pela extrema-direita.

     

    O que são desigualdades sociais múltiplas?*

     

    Cristiano das Neves Bodart (1)

    Versão em PDF AQUI

    O conceito de desigualdades sociais múltiplas

    As desigualdades sociais múltiplas são resultantes das variadas formas de critérios e clivagens (distinção entre dois grupos segundo certos critérios) que tornam os indivíduos desiguais uns dos outros em situações diversas. Trata-se das desigualdades sociais que se manifestam no interior de uma mesma classe social; desigualdades miúdas percebidas no cotidiano. Professores e carpinteiros, ainda que possam pertencer a mesma classe social, são entre si socialmente desiguais. Profissionais da mesma área são socialmente desiguais em se tratando de salários, condições de trabalho. Por exemplo. As desigualdades deixaram de ser evidenciadas/percebidas apenas nas oposições de classes sociais para ser sentidas em situações rotineiras em que o acesso à saúde, ao lazer, à segurança, etc. são diferenciados.

    As desigualdades sociais se transformaram na contemporaneidade e passam a ser percebidas intra classes sociais, no cotidiano, de forma a gerar maior incômodo ou indignação se comparado com as grandes desigualdades sociais de classe. Não que as pessoas não se incomodem com a diferença entre os super ricos e os pobres, mas as diferenças que se apresentam no dia a dia acabam ganhando centralidade na vida dos indivíduos. Também não quer dizer que as desigualdades sociais de classe foram reduzidas e perderam relevância. Ao contrário, os super ricos se tornaram ainda mais ricos nas últimas décadas.

    As formas das desigualdades sociais múltiplas

    Essas desigualdades sociais em uma mesma classe social se manifestam a como resultado de diversas variáveis que afetam as condições sociais, tais como raça, gênero, sexualidade, estado civil, idade, escolaridade, diploma, local de residência, salário, status de emprego, condições de trabalho, origem étnica, deficiências físicas, etc. Somos, no cotidiano, afetados de variadas formas – o que geram desigualdades sociais variadas – e cada vez mais percebemos que somos desiguais “na qualidade de” assalariado mais ou menos bem pago, protegido ou precário, diplomado ou não, jovem ou idoso, mulher ou homem, etc. (DUBET, 2020). Há uma infinidade de critérios e clivagens, em função dos quais somos mais ou menos desiguais em relação aos outros e isso tem impacto direto nas condições sociais.

    Muitas das desigualdades sociais são fronteiras, por vezes, intransponíveis. Acessar um espaço público específico pode ser problema a depender de sua orientação sexual, cor, gênero, idade ou outros marcadores sociais.

    A raça e o local de residência, por exemplo, são recorrentemente critérios adotados pela polícia militar para definir formas de abordagens, como demonstrou pesquisa realizada em Campinas/SP por Silva (2022).

    As desigualdades sociais se multiplicam na contemporaneidade por vários fatores, dentre eles a “desestandartização dos percursos”, como destacou Dubet (2020, p. 28):

    O percurso típico – estudo, trabalho, casamento, trabalho, aposentadoria – é amplamente abalado pelo longo período de acesso a um emprego estável, pelas idas e vindas entre o emprego, o desemprego e os estudos, o matrimônio tardio, as separações, os novos casamentos e as famílias recompostas, aposentadorias e velhices longas. Ora, todos esses percursos biográficos são fatores de desigualdade consideráveis; basta ver a quantidade de famílias monoparentais entre os mais pobres.

    Outro fator para a multiplicação das desigualdades é a ampliação do consumo. “O consumo multiplicou os públicos, sem que esses públicos recuperassem posições de classe” (DUBET, 2020, p. 31). Os grupos sociais se multiplicaram em função de seu lazer, gostos, estilos e acesso aos bens de consumo (duráveis ou não).

    Os grupos sociais são tão variados que nenhum deles configura uma classe social – embora essas desigualdades afetam diretamente suas posições de classe. As desigualdades sociais múltiplas se originam de formas variadas em um mesmo indivíduo: uma jovem pode ser beneficiada pela pouca idade na inclusão em um clube esportivo, mas ser privada de uma vaga de emprego por ser considerada inexperiente. Por ser do sexo feminino pode obter um emprego no qual poderá estar bem vestida, mas pelo mesmo motivo ter um salário menor comparado aos trabalhadores masculinos que desempenham a mesma função.

    As análises das desigualdades sociais múltiplas

    Nesse contexto de desigualdade sociais múltiplas é possível os cientistas sociais avaliar as desigualdades entre indivíduos, e grupos de indivíduos, a partir de desigualdades de rendimento, de patrimônio, de prática de lazer, de acesso à educação, tempo dedicado à família, mobilidade geográfica, segurança, saúde, meio ambiente, felicidade, expectativa de vida, etc. Para essas avaliações será necessária uma abordagem interseccional [2] como indicado por Hertzog e Mello (2020), pois, em muitos casos, os marcadores se cruzam e se somam a depender dos percursos, locais e tempo.

    As desigualdades sociais múltiplas e a indignação

    Se por um lado, as desigualdades são percebidas como resultados de uma sociedade livre e meritocrática, onde os indivíduos são responsáveis por suas condições sociais, por outro, as desigualdades geradas pelo capitalismo contemporâneo têm provocado indignação, ressentimentos, frustrações por serem cotidianamente percebidas.

    Cada vez mais indivíduos, motivados por suas condições desiguais se organizam em frações (os coletivos são bons exemplos) visando questionar suas posições no contexto das desigualdades múltiplas. Tal movimento acaba por desmobilizar ações que visam mudar as estruturas sociais maiores, criadoras dessas desigualdades.

    É necessário estar atentos para que movimentos de extrema-direita não venham a capitanear essa indignação que surge no cotidiano, nas relações miúdas do dia a dia, potencializando o ódio aos “beneficiados” ou “culpados” por sua posição hierárquica na sociedade. Em tratando de cooptação dessa indignação, os movimentos antipetista e bolsonarista talvez sejam os exemplos mais emblemáticos de nossa realidade brasileira. Nesse contexto, infra os ataques aos povos indígenas, aos beneficiados por programas sociais, aos imigrantes, os funcionários públicos, etc. Todos esses vistos como inimigos e responsáveis pelos problemas que afetam os indignados.

    Considerações finais

    Estamos diante de múltiplas desigualdades criadas pelo capitalismo. Essas vem sendo percebidas pelos indivíduos em face aos demais que compartilham o mesmo cotidiano e estão incluídos na mesma classe social. A oposição não se restringe às classes sociais ou os pobres contra os super ricos. Essas desigualdades miúdas vêm gerando insatisfações que podem ser mobilizadas em direção à mudanças que visam a redução das disparidades de condições sociais ou em sentido danoso: ao ódio.

    Compreender as novas figurações impostas pelo capitalismo, suas consequências e estar atento ao perigo de cooptação da indignação pela extrema-direita são tarefas difíceis, porém necessária. As desigualdades sempre foram motivos de preocupação dos cientistas sociais, tanto a sua indesejada existência, quanto seus impactos sobre a sociabilidade, a apreensão atual se volta ao direcionamento do ódio, do rancor.

    Não podemos permitir que Auschwitz se repita, como denunciou Theodor W. Adorno (1995). A educação tem um papel importantíssimo nesse propósito. Infelizmente, temos presenciado na sociedade brasileira sinais claros e danosos de apropriações e direcionamentos da indignação gerada pelas desigualdades sociais múltiplas. Em tempos de redes sociais, a canalização do ódio se tornou ainda mais fácil e danosa.

    Referência

    ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro, 3ª edição, Editora: Paz e Terra, 1995.

    DUBET, François. O tempo das paixões tristes. São Paulo: Vestígio. 2020.

    HERTZOG, Lucas; MELLO, Luciana Garcia de. Por uma abordagem interseccional das desigualdades: rupturas com visões hierarquizadas. Contemporânea, v. 10, n. 1 p. 229-247, jan./abr., 2020.

    SILVA, Luana Barbosa da. Racismo estrutural e filtragem racial na abordagem policial a adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas/SP. Revista brasileira de segurança pública. São Paulo v. 16, n. 3, 152-179, ago/set., 2022.

     

    Como citar este texto:

    BODART, Cristiano das Neves. O que são desigualdades sociais múltiplas? Blog Café com Sociologia, jan. 2023. Disponível em:

     

    *Publicado originalmente em 13 de janeiro de 2023 no Blog Café com Sociologia.

    [1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: [email protected]

    [2] Sobre interseccionalidade recomendo o texto de Jorge Luiz Zaluski, “O que é interseccionalidade?”, publicado no livro “Conceitos e categoriais fundamentais do ensino de Sociologia, vol.2, lançado pela editora Café com Sociologia em 2021.

  • Racismo como habitus: antirracismo como autoenfrentamento

    Racismo como habitus: antirracismo como autoenfrentamento

    Cristiano das Neves Bodart[1]

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    Diversos incidentes ilustram de maneira inequívoca a presença do racismo intersubjetivo no contexto brasileiro. A concepção do racismo como habitus pode proporcionar uma abordagem mais eficaz para enfrentá-lo.

    Embora não haja regulamentações que permitam tratamentos distintos entre brancos e negros por parte de policiais, e de fato existam leis que buscam condenar tais atitudes, é frequente testemunharmos policiais agindo de maneira preconceituosa. Esse comportamento é resultado da internalização do racismo em suas mentes e, consequentemente, em seus corpos. Essa internalização se manifesta como uma espécie de “habitus racista”, moldando a maneira como percebem, pensam, sentem, creem e agem.

    O habitus racista

    Compreende-se que o “habitus” não está limitado apenas aos policiais, mas é uma característica presente em todos os brasileiros, incluindo nós mesmos. É crucial reconhecer que a sociabilidade no Brasil tem o potencial de reproduzir atitudes racistas, visto que o racismo presente na vida cotidiana é internalizado por nós como uma disposição, um “habitus. Sendo o Habitus entendido aqui como

    […] sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explicita que funciona como um sistema de esquemas geradores, e gerador de estratégias que podem ser objetivamente conformes aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para esse fim (BOURDIEU, 2019, p.115).

    Ao longo de nossas vidas e em contato com o racismo, tendemos a incorporar disposições duradouras que guiam nossas ações, resultando em comportamentos preconceituosos sem necessariamente uma reflexão racional. Reproduzimos o que aprendemos, consciente ou inconscientemente, independentemente de nossas escolhas. No entanto, se estivermos conscientes dos impactos de nossa socialização, podemos encarar as experiências racistas de diversas maneiras, inclusive como um estímulo para promover o antirracismo. Contudo, o risco de internalização do racismo permanece presente. Neste contexto, o “habitus” é compreendido como uma predisposição e não necessariamente como uma prática. Assim, podemos estar predispostos ao racismo sem nunca termos praticado atos racistas.

    É inegável que vivemos em um país marcado pelo racismo, e desde a infância somos expostos a práticas racistas em nossas brincadeiras. Essa “iniciação” pode variar entre famílias e comunidades, mas é uma presença constante em nossa sociedade. Podemos citar uma variedade de brincadeiras infantis que aprendemos e que têm bases racistas, assim como expressões prontas, ditados populares, termos, músicas, novelas, filmes, entre outros exemplos. Ao longo de nosso processo de socialização, estivemos imersos nessas práticas e cercados de signos racistas. Assim, como brasileiros, temos uma predisposição ao racismo (um habitus racista), resultado de nossa socialização nesse ambiente sociocultural.

    Antirracismo como autoenfrentamento

    Visitando a conceituação de Silvio Almeida (2019) sobre “racismo estrutural”, observamos que ele define o racismo como parte intrínseca da estrutura social, não se resumindo a um ato, mas sendo todo um processo em que as condições de organização da sociedade reproduzem as subalternidades de um determinado grupo (ALMEIDA, 2019). Por sua vez, em Djamila Ribeiro (2019), encontramos a afirmação de que o racismo estrutural consiste em um conjunto de práticas, hábitos, situações e discursos presentes no cotidiano da população, os quais, mesmo sem uma intenção racial explícita, perpetuam o racismo. De fato, o racismo está presente para fora das pessoas, estando em leis, políticas públicas, práticas culturais. Mas também está em nós, em nossa subjetividade.

    Não há dúvidas de que o racismo era estrutural durante a época da escravidão, uma vez que existiam normativas legais que sistematizavam as condutas racistas e tais práticas eram amplamente e legalmente aceitas. Após a abolição, várias mudanças foram realizadas na estrutura da sociedade e do Estado, incluindo aquelas destinadas a combater o racismo e outros tipos de preconceitos. No entanto, essas mudanças não foram suficientes para alterar a maneira racista de perceber, pensar, sentir e agir. Os aspectos culturais de sociabilidade que moldam nossas intersubjetividades não foram modificados.

    Pode parecer trivial combater, por exemplo, o uso de termos preconceituosos, mas não é. O mesmo se aplica às piadas. A sociabilidade é o meio pelo qual construímos nossas subjetividades, inclusive de forma racista. São incorporações que geram disposições para atos e falas racistas. Não estou aqui reduzindo o problema do racismo ao essencialismo. É verdade que a estrutura econômica capitalista é fundamental para a sua (re)produção, mas também não podemos ignorar que essa mesma estrutura promove uma cultura específica, que é racista. Como destacaram Sousa Neto e Pessoa (2021), o racismo no Brasil é velado, é privado e invisível, o que faz com que ele seja aceito em conversas entre amigos, namorados e dentro de casa, mesmo que publicamente seja condenado.

    Embora o termo “racismo estrutural” seja amplamente utilizado por sua carga política, é necessário reconhecer que pode obscurecer a natureza intrínseca do racismo brasileiro, especificamente sua dimensão intersubjetiva. Além de sua manifestação em estruturas sociais externas aos indivíduos, o racismo está internalizado em nossa consciência, levando-nos a reconhecer que todos somos suscetíveis a comportamentos racistas. Aceitar essa realidade é fundamental para o enfrentamento pessoal do problema. Tornar-se antirracista exige um compromisso ativo de combater o racismo presente em nosso próprio eu, uma jornada que demanda autoconsciência e autorreflexão.

    Atualmente, não lidamos apenas com uma estrutura legal-racional racista, mas constantemente enfrentamos um racismo intersubjetivo, o que torna o problema muito mais complexo de combater. No caso dos policiais, observamos que a estrutura policial oficialmente condena práticas racistas, porém seus agentes, influenciados por suas subjetividades, continuam a praticá-las quase que diariamente. Quando isso ocorre, os policiais muitas vezes são protegidos, não necessariamente pela estrutura do Estado, mas frequentemente pelo racismo intersubjetivo de seus comandantes.

    Não há dúvidas de que precisamos combater políticas que produzem a vulnerabilidade de indivíduos e grupos sociais vitimados pelo racismo e criam condições para que práticas racistas sejam cotidianas. Mas também precisamos reconhecer que o racismo não é algo distante, que está nos outros ou na estrutura burocrática do Estado. Abordar o racismo através do conceito de habitus nos permite reconhecer o quão próximo ele está de nós e perceber que o antirracismo começa com o autoenfrentamento.

     

    Referência

    ALMEIDA, Silvio Luis de. Racismo estrutural. São Paulo: Polén Livros, 2019.

    BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2019.

    RIBEIRO. Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo. Companhia das letras. 2019.

    SOUSA NETO, Manoel Moreira de; PESSOA, Mércio Kleber Morais. O que é racismo à brasileira. In: BODART, Cristiano das Neves. Conceitos e categorias fundamentais do ensino de Antropologia, v.1. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021. Pp. 91-96.

     

     

    Como citar este texto:

    BODART, Cristiano das Neves. Racismo como habitus: antirracismo como autoenfrentamento. Blog Café com Sociologia, fev. 2024. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/racismo-como-habitus/

     

     

     

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    Nota:

    [1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: [email protected]

     

     

     

    Dica de leitura:

    Conceitos e categorias fundamentais do ensino de Antropologia

  • A “atitude blasé”: ensinando Sociologia em praça pública

    A “atitude blasé”: ensinando Sociologia em praça pública

    A “atitude blasé”: ensinando Sociologia em praça pública

    Cristiano das Neves Bodart[1]

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    Contextualizando…

    A sociedade está em constante transformação, onde as interações humanas moldam e são moldadas pelas relações sociais e pela forma como se estruturam. A atitude blasé, discutida por Georg Simmel na obra “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito” (“Die Großstädte und das Geistesleben”), é um tema que merece ser problematizado nas aulas de Sociologia pela sua presença na sociedade contemporânea. Neste post apresento uma proposta pouco convencional para uma aula de Sociologia. Parto do pressuposto que sair dos limites da sala de aula para ensinar Sociologia pode ser uma forma de visualizar as contribuições dessa disciplina para melhor compreender a sociedade e suas dinâmicas. Levar a aula de Sociologia para uma praça pública movimentada pode ser uma oportunidade de explorar teorias sociológicas de maneira tangível e envolvente. Nossa proposta rompe as barreiras tradicionais da sala de aula, buscando explorar um conceito fundamental da Sociologia a partir de uma observação sistematizada de “laboratório vivo”.

    Objetivo geral:
    • Compreendam como as características da vida urbana intensa podem influenciar a atitude blasé e, consequentemente, afetar as interações sociais.
    Objetivos específicos:
    • Introduzir o conceito de “blasé” conforme apresentado por Georg Simmel;
    • Explorar a relação entre a intensidade da vida urbana e a formação da atitude blasé;
    • Proporcionar uma aula mais próxima da realidade dos estudantes;
    • Observar e analisar o comportamento das pessoas em relação à atitude blasé;
    • Incentivar os alunos a fazerem registros observacionais detalhados.
    • Focar em sinais de indiferença, desinteresse ou apatia nas interações sociais;
    • Refletir sobre como a atitude blasé pode influenciar as relações sociais e a construção de identidades individuais na sociedade contemporânea;
    • Integrar as observações práticas com os conceitos teóricos discutidos em sala de aula.

     

    Recursos

     

    Procedimentos metodológicos
    1º aula (em sala de aula):

    Abordagem teórica/conceitual (50min.)

    Apresentação do conceito de “blasé” por Georg Simmel;

    Leitura de fragmentos conceituais do texto “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”;

    Leitura do texto “Solidão no meio da multidão: saudades de minha vizinha fofoqueira”, de Cristiano Bodart;

    Assistir o vídeo “A vida na metrópole”, produzido por “Sociologia animada”;

    Discussão sobre a relação entre a vida urbana intensa e a formação da atitude blasé.

     

    2º e 3º aula (50min. + 50min. seguidos):

    Transferência para uma praça pública previamente selecionada;

    Observação sistemática do comportamento das pessoas na praça;

    Registro de sinais de atitude blasé e demais comportamentos relacionados;

    Agrupamento dos estudantes para compartilharem e discutirem suas observações;

    Identificação de padrões e singularidades nas experiências;

    Breve discussão sobre como as características da vida urbana influenciam a atitude blasé na praça, relacionando as observações práticas e fundamentos teóricos.

     

    Avaliação da aprendizagem

    Avalie a capacidade de percepção dos estudantes de aspectos tratados por Simmel, bem como o envolvimento na aula a partir de atividades de observação e anotação.

     

    Considerações

    Para aulas fora de sala, opte sempre por solicitar autorização prévia da escola e dos pais dos estudantes. O local precisa ser seguro para todos. Tome os devidos cuidados com a exposição ao tempo (sol, mormaço e chuva) e com a hidratação dos estudantes. Se possível, solicite a Polícia Militar que mobilize um policial para estar no local. Para viabilizar a disposição de mais de uma aula para a atividade, convite um professor de Filosofia ou de Geografia para também explorar o tema e a atividade (assim garante o apoio de um professor para auxiliar no cuidado com os estudantes).

     

    Referências bibliográficas

    BODART, Cristiano das Neves. Solidão no meio da multidão: saudades de minha vizinha fofoqueira. Blog Café com Sociologia. mai. 2016.

    SIMMEL, Georg. Metropolis and Mental Life. New York: Free Press, 1976.

     

     

     

    Como citar este texto:

    BODART, Cristiano das Neves. A “atitude blasé”: ensinando Sociologia em praça pública. Blog Café com Sociologia. dez. 2023. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/atitude_blase_simmel/

     

    Nota:

    [1] Doutor em Sociologia (USP). Editor do Café com Sociologia. Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: [email protected]

  • Teoria da Estupidez, esclarecedor ponto de vista de Bonhoeffer

    Teoria da Estupidez, esclarecedor ponto de vista de Bonhoeffer

    A teoria da estupidez destaca a incapacidade de persuadir pessoas assim, imunes a razões. Não é apenas falta intelectual, mas uma tendência em certos contextos. Surge sob poder crescente, privando indivíduos de independência, tornando-os manipuláveis. Libertação, não instrução, é a chave para superá-la. Essa teoria oferece consolo, afirmando que a maioria não é estúpida em todas as circunstâncias; depende do poder esperar mais da estupidez do que da sabedoria das pessoas.

    Teoria da Estupidez[1]

    Dietrich Bonhoeffer[2]

    Versão em PDF AQUI

    Dietrich Bonhoeffer
    Dietrich Bonhoeffer

    A estupidez é um inimigo mais perigoso do bem do que a malícia[3]. Pode-se protestar contra o mal; ele pode ser exposto e, se necessário, prevenido pelo uso da força. O mal sempre carrega consigo o germe de sua própria subversão, deixando pelo menos um sentimento de inquietação nas pessoas. Contra a estupidez, somos indefesos. Nem protestos nem o uso da força conseguem algo aqui; razões caem em ouvidos surdos; fatos que contradizem o prejulgamento simplesmente não precisam ser acreditados – nesses momentos, a pessoa estúpida até se torna crítica – e quando os fatos são irrefutáveis, são simplesmente ignorados como inconsequentes, como incidentais. Em tudo isso, a pessoa estúpida, ao contrário da maliciosa, está completamente satisfeita consigo mesma e, sendo facilmente irritada, torna-se perigosa ao partir para o ataque. Por essa razão, é necessária uma precaução maior do que com a maliciosa. Nunca mais tentaremos persuadir a pessoa estúpida com razões, pois é insensato e perigoso.

    Se quisermos saber como vencer a estupidez, devemos procurar entender sua natureza. Isso é certo: ela não é essencialmente uma deficiência intelectual, mas humana. Existem seres humanos com intelecto notavelmente ágil, mas estúpidos, e outros com intelecto bastante limitado, mas longe de serem estúpidos. Descobrimos isso com surpresa em situações específicas. A impressão que temos não é tanto a de que a estupidez é um defeito congênito, mas que, em circunstâncias específicas, as pessoas se tornam estúpidas ou permitem que isso aconteça com elas. Observamos ainda que pessoas que se isolaram dos outros ou que vivem em solidão manifestam esse defeito com menos frequência do que indivíduos ou grupos de pessoas inclinados ou condenados à sociabilidade. Assim, parece que a estupidez é talvez menos um problema psicológico do que sociológico. É uma forma particular do impacto das circunstâncias históricas sobre os seres humanos, uma concomitância psicológica de certas condições externas. Ao observarmos mais de perto, torna-se aparente que toda ascensão vigorosa do poder no âmbito público, seja de natureza política ou religiosa, infecta uma grande parte da humanidade com estupidez. Parece até mesmo que esta seja virtualmente uma lei sociológica-psicológica. O poder de um necessita da estupidez do outro. O processo em operação aqui não é que capacidades humanas específicas, como o intelecto, atrofiem ou falhem de repente. Em vez disso, parece que, sob o impacto avassalador do poder crescente, os seres humanos são privados de sua independência interior e, mais ou menos conscientemente, desistem de estabelecer uma posição autônoma em relação às circunstâncias emergentes. O fato de que a pessoa estúpida muitas vezes é teimosa não deve nos cegar para o fato de que ela não é independente. Em uma conversa com ela, tem-se a sensação de que não se está lidando com uma pessoa, mas com slogans, palavras de ordem e afins que a possuíram. Ela está sob um feitiço, cega, mal utilizada e abusada em sua própria essência. Tendo se tornado assim uma ferramenta sem mente, a pessoa estúpida também será capaz de qualquer mal e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecer que é mal. Aqui é onde se esconde o perigo do uso diabólico, pois é isso que pode destruir de uma vez por todas os seres humanos.

    Contudo, é neste exato ponto que se torna bastante claro que apenas um ato de libertação, não de instrução, pode superar a estupidez. Aqui precisamos aceitar o fato de que, na maioria dos casos, uma genuína libertação interna se torna possível apenas quando a libertação externa a precede. Até então, devemos abandonar todas as tentativas de convencer a pessoa estúpida. Essa situação explica por que, em tais circunstâncias, nossas tentativas de entender o que ‘o povo’ realmente pensa são em vão e por que, nessas circunstâncias, essa pergunta é tão irrelevante para a pessoa que está pensando e agindo responsavelmente. A palavra da Bíblia que diz que o temor a Deus é o princípio da sabedoria declara que a libertação interna dos seres humanos para viver uma vida responsável diante de Deus é a única maneira genuína de superar a estupidez.

    Mas esses pensamentos sobre a estupidez também oferecem consolo, pois nos proíbem categoricamente de considerar a maioria das pessoas como estúpidas em todas as circunstâncias. Dependerá realmente de se aqueles no poder esperam mais da estupidez das pessoas do que de sua independência interna e sabedoria.

     

    Como citar este texto:

    BONHOEFFER, Dietrich. Teoria da Estupidez. Blog Café com Sociologia, nov. 2023. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/teoria-da-estupidez/ 

     

    Notas:

    [1] Trecho retirado de uma carta de Dietrich Bonhoeffer, que abordava variados temas. A Carta foi escrita para três amigos e colegas na conspiração contra Hitler, no décimo aniversário da ascensão de Hitler ao cargo de chanceler da Alemanha. Dietrich Bonhoeffer, de ‘After Ten Years’ em “Letters and Papers from Prison” (Obras de Dietrich Bonhoeffer/Inglês, vol. 8), Minneapolis, MN: Fortress Press, 2010.

    [2] Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi um teólogo, pastor luterano, e resistente alemão contra o regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Dietrich Bonhoeffer foi prezo por ajudar judeus a fugirem do nazismo e enforcado em um campo de concentração por Adolf Hitler em 09 de abril de 1945.

    [3] O termo malícia refere-se a agir maldosamente e praticar o mal. Bonhoeffer estava se referindo as práticas e pensamentos presentes na sociedade alemã que culminou com o genocídio de mais de milhões de pessoas em campos de concentração nazistas.

  • Capitaloceno: Uma Reflexões a partir de Donna Haraway

    Capitaloceno: Uma Reflexões a partir de Donna Haraway

    É fundamental pensarmos o capitaloceno como o período de destruição generalizada da biodiversidade, da dinâmica do clima e da ameaça constante da extinção em massa das espécies e de da raça humana. Este texto se propõe não a indicar um nome adequado a este evento geológico cujas causas são antrópicas. Qual o nome mais adequado para este evento? Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno? Quero me ater esse texto ao conceito de Capitaloceno.

    O conceito de Capitaloceno é uma tentativa de compreender a atual era geológica em que a influência do capitalismo sobre o planeta atingiu um ponto crítico. Neste texto, examinaremos os argumentos apresentados por Donna Haraway em sua série de textos, nos quais ela explora as transformações provocadas pelo capitalismo e as implicações dessas mudanças. A discussão gira em torno da necessidade de nomear essa nova era e dos desafios que ela apresenta. Ao destacar o papel do capitalismo na reconfiguração do ambiente global, Haraway propõe o termo “Capitaloceno” como uma alternativa ao mais comumente utilizado “Antropoceno”. Além disso, o texto explora o conceito de fazer parentes em um mundo afetado pelo Capitaloceno, enfatizando a importância de reconstituir refúgios e repensar as relações entre as espécies.

    O debate em torno do conceito de Antropoceno tem sido uma parte central das discussões sobre as mudanças ambientais que ocorreram nas últimas décadas. O termo “Antropoceno” sugere que a influência das ações humanas na Terra atingiu um ponto crítico, resultando em alterações significativas nos sistemas ecológicos do planeta. No entanto, Donna Haraway, em uma série de textos, questiona a adequação desse termo e propõe o conceito de “Capitaloceno” como uma alternativa. Esta abordagem tem como objetivo destacar o papel do capitalismo na reconfiguração do ambiente global.

    O Capitaloceno: Uma perspectiva crítica

    Haraway começa sua análise reconhecendo a influência das ações humanas, especialmente a partir do desenvolvimento da agricultura em larga escala, que teve impactos significativos no planeta. No entanto, ela argumenta que o termo “Antropoceno” não leva em consideração a complexidade das mudanças em curso, nem as dinâmicas sistêmicas que envolvem interações intra e interespécies.

    Haraway aponta para a necessidade de uma análise mais detalhada sobre a escala e a velocidade das transformações que estão ocorrendo. A questão-chave é quando as mudanças de grau se tornam mudanças de espécie, e como os seres humanos, bioculturalmente situados, interagem com outras espécies e forças bióticas/abióticas na construção dessas mudanças.

    Um dos pontos mais importantes do argumento de Haraway é que as mudanças observadas vão além das mudanças climáticas. Ela menciona a carga de produtos químicos tóxicos, a mineração, o esgotamento de recursos naturais, a simplificação de ecossistemas e outros padrões sistemicamente relacionados que contribuem para uma possível catástrofe. Ela ressalta que a recursividade desses padrões pode ser devastadora.

    A autora também destaca o conceito de refúgios, que desempenharam um papel fundamental na manutenção da diversidade cultural e biológica ao longo do Holoceno. No entanto, a transição para o Antropoceno ameaça a existência desses refúgios, o que pode resultar em uma perda irreversível da diversidade.

    A solução seria fazer parentes?

    Um dos conceitos-chave no pensamento de Haraway é a ideia de “fazer parentes”. Ela argumenta que é fundamental criar novas formas de relacionamento e colaboração entre as espécies para lidar com os desafios do Capitaloceno. O Capitaloceno não é apenas uma era destrutiva, mas também uma oportunidade para repensar nossas relações com o mundo natural. É urgente e emergente da espécie humana compreender os laços entre os seres tanto humanos, microscópios e macrocópios. “Fazer parentes é fazer pessoas, não necessariamente como indivíduos ou como seres humanos.”(HARAWAY, 2016, p. 142)

    Haraway propõe que, em vez de enfatizar a necessidade de produzir mais bebês humanos, devemos focar em “fazer parentes”. Isso significa criar conexões mais profundas entre os seres humanos e outras espécies, reconhecendo que compartilhamos um destino comum na Terra. O termo “parentes” não deve ser limitado a laços de sangue, mas deve ser expandido para abranger uma variedade de arranjos de espécies e relações que transcendem a genealogia tradicional uma vez que “todos os terráqueos são parentes”.

    Além disso, Haraway enfatiza a importância das feministas na liderança dessa transformação. Ela sugere que as feministas têm desempenhado um papel crucial em desafiar as noções tradicionais de parentesco, gênero, raça e outras categorias. Essa liderança na imaginação e na ação é fundamental para desfazer os laços tradicionais que têm contribuído para a degradação ambiental.

    Considerações finais

    O conceito de Capitaloceno, como proposto por Donna Haraway, é uma tentativa de compreender a era geológica atual, na qual o capitalismo desempenha um papel fundamental na reconfiguração do ambiente global. Essa abordagem destaca a necessidade de repensar a forma como nos relacionamos com outras espécies e como lidamos com as mudanças sistêmicas em curso.

    No Capitaloceno, “fazer parentes” se torna uma estratégia essencial para reconstituir refúgios e promover uma recuperação biológica, cultural, política e tecnológica. Isso envolve repensar a noção de parentesco e reconhecer que todos os seres compartilham uma “carne” comum. As feministas desempenham um papel fundamental na liderança desse processo, desafiando noções tradicionais de parentesco, gênero e raaça, e promovendo a diversidade de arranjos multiespécies.

    No entanto, o Capitaloceno não é apenas um período de desafios, mas também de oportunidades. A necessidade de criar parentes com outras espécies e com o ambiente pode levar a uma reconfiguração profunda de nossa relação com o mundo natural. Essa mudança implica um compromisso em cultivar épocas futuras que possam reconstituir os refúgios e promover um bem-estar crescente para todos os seres, atuando como meios e não apenas como fins.

    Em última análise, o conceito de Capitaloceno nos convida a repensar nossa relação com o planeta e a adotar uma abordagem mais colaborativa e compassiva em relação às outras espécies. Como o Antropoceno e o Plantationoceno, o Capitaloceno nos desafia a lidar com a realidade das mudanças sistêmicas que estão ocorrendo. É um chamado para a ação coletiva e para a criação de um mundo no qual as relações entre as espécies sejam baseadas na reciprocidade, no cuidado e na compreensão de que somos todos parentes na grande teia da vida. Em última análise, a proposta de Haraway nos convida a fazer parentes, não bebês, e a considerar como os parentes geram parentes em um mundo profundamente transformado pelo Capitaloceno.

    A autora advoga o nome Chthuluceno para definir este processo, porém continuo a defender que o nome mais adequado seja Capitaloceno uma vez que é flagrante a relação entre o capitalismo como causador de toda decadência ambiental generalizada a ponto de comprometer seriamente a vida das espécie e as condições de existência planetária a partir da sua criação. Se a ideia é fazer parentes para reverter o processo, aproveitemos a viajem para fomentar a consciência nos parentes que pudermos fazer.

     

    Referências

    HARAWAY, Donna. Antropoceno, capitaloceno, plantationoceno, chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica, v. 3, n. 5, p. 139-146, 2016.

  • Conceitos e Categorias das Ciências Sociais no ensino de Sociologia e Antropologia na Graduação

    Conceitos e Categorias das Ciências Sociais no ensino de Sociologia e Antropologia na Graduação

    Relato de experiência: Os usos dos Conceitos e Categorias das Ciências Sociais no ensino de Sociologia e Antropologia na Graduação da Unifap

    Jorge Lucas de Oliveira Dias[1]

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    Instituição de ensino: Universidade Federal do Amapá (Unifap).

    Docente: Jorge Lucas de Oliveira Dias.

    Modalidade, série e turno: ensino de Graduação para os cursos de licenciaturas em Pedagogia, Pedagogia do Campo e Ciências Biológicas.

    Número de estudantes envolvidos: Ciências Biológicas: (17 estudantes); Pedagogia do Campo (10 estudantes); Pedagogia (47 estudantes); Pedagogia vinculado ao Projeto Interiorização Quilombola (46 estudantes).

    Contexto da experiência

    A Atividade Avaliativa de caráter parcial intitulada de Debate Dirigido teve como referencial teórico a Coleção Conceitos e Categorias Fundamentais do ensino das Ciências Sociais (organizada por Cristiano das Neves Bodart), compreendendo os recortes nas áreas de Sociologia, Antropologia e Ciência Política. Nesse sentido, tem-se o Debate Dirigido como um dos instrumentos avaliativos dos componentes curriculares, em nível de graduação, de uma universidade pública federal do norte do Brasil, como uma atividade sem o peso da formalidade, que buscou estimular a análise, interação e participação em sala aula.

    Desse modo, tem-se os apontamentos de análises e reflexões direcionados para a importância de “usos dos Conceitos e Categorias das Ciências Sociais” no ensino de Graduação, no âmbito dos componentes: ‘Sociologia da Educação’, ofertado para as graduações em licenciaturas em Ciências Biológicas e Pedagogia do Campo, e o componente ‘Antropologia e Educação’ para duas turmas do curso de Pedagogia, todos da Universidade Federal do Amapá (Unifap).

    Objetivos

    Buscou-se com esse Debate Dirigido o estimulo ao pensamento crítico, a leitura teórica dialogada, mas também leitura de mundo, da realidade concreta em que os conceitos e as categorias fazem parte. Nessa perspectiva, objetivou-se o diálogo coletivo, entendido como necessário ao âmbito da formação docente, haja vista que esse instrumento avaliativo foi desenvolvido em turmas de licenciaturas, almejando a socialização de conhecimentos e fuga da superficialidade, com a participação de todas as pessoas, mas sem a exigência coercitiva de uma avaliação tradicional, porém, com a seriedade e responsabilidade.

    Metodologia

    Considerando a breve contextualização e os objetivos mencionados, indica-se que essa atividade ocorreu da seguinte maneira: em quatro componentes curriculares, sendo dois de “Sociologia da Educação” e dois de “Antropologia e Educação”, com a apresentação do Plano de Ensino e Cronograma, pelo docente, em que foi indicado a atividade coletiva, com o objetivo de a turma debater presencialmente em sala de aula.

    Foi solicitado às turmas a divisão livre de cinco grupos, proporcional ao número de estudantes matriculados. A partir dessa divisão, o docente realizou sorteio, com a “supervisão” de um integrante de cada grupo, para que fossem selecionados em cinco eixos, com três conceitos e categorias das Ciências Sociais.

    Para as duas turmas de “Sociologia da Educação”, os eixos/grupos formados pelos/as estudantes ficaram com a seguinte ordem de conceitos e categorias:

    • EIXO/GRUPO 1: Capitalismo [autoria: Alberto Alvadia Filho e Walace Ferreira], Classe Social [autoria: Manoel Moreira de Sousa Neto e Márcio Kleber Morais Pessoa] e Desigualdade Social [autoria: Eilson Castro Soares de Oliveira]; (Sociologia, Vol. 1).
    • EIXO/GRUPO 2: Imaginação Sociológica [autoria: Roberta dos Reis Neuhold], Indústria Cultural [autoria: Barbara Fontes e Renata Magalhães] e Modernidade [autoria: Ana Lucia Martins]; (Sociologia, Vol. 2).
    • EIXO/GRUPO 3: Cultura [autoria: Célia Maria Foster Silvestre e Denis Renan Fonseca], Etnocentrismo [autoria: Anessa Fernanda da Silva e Milenna Jordana de Souza Andrade], Identidade [autoria: Marília Passos Apoliano Gomes e Gleison Maia Lopes]; (Antropologia, vol. 1).
    • EIXO/GRUPO 4: Democracia [autoria: William Bueno Rebouças], Ideologia [autoria: Talita Cristine Rugeri e Ana Julia Guilherme], Movimento Social [autoria: Walace Ferreira e Alberto Alvadia Filho]; (Ciência Política, Vol. 1).
    • EIXO/GRUPO 5: Direitos Humanos [autoria: Alberto Alvadia Filho e Walace Ferreira], Hegemonia [Eduardo da Costa Pinto d’Avila e Marcelo Cardoso da Costa], Poder [Radamés de Mesquita Rogério e Mario Henrique Castro Benevides]. (Ciência Política, Vol. 2).
    • E para as duas turmas de “Antropologia e Educação”, a divisão de conceitos e categorias se deu pela seguinte organização:
    • EIXO/GRUPO 1: Cultura [autoria: Célia Maria Foster Silvestre e Denis Renan Fonseca], Decolonial [autoria: Juliana de Souza Ramos] e Diário de Campo [autoria: Simone de Oliveira Mestre e Rafael Cerqueira Pinheiro]; (Antropologia, Vol. 1)
    • EIXO/GRUPO 2: Etnocentrismo [autoria: Anessa Fernanda da Silva e Milenna Jordana de Souza Andrade], Etnografia [autoria: Hildon Oliveira Santiago Carade] e Eugenia [autoria: Rodrigo Rougemont da Motta]; (Antropologia, Vol. 1)
    • EIXO/GRUPO 3: Identidade [autoria: Marília Passos Apoliano Gomes e Gleison Maia Lopes], Identidade Cultural [autoria: Jonatha Vasconcelos Santos e Maria Luziara Nascimento], Raça [autoria: Bruna Silva Araújo e Peti Mama Gomes] e Racismo à Brasileira [autoria: Manoel Moreira de Sousa Neto e Márcio Kleber Morais Pessoa]; (Antropologia, Vol. 1)
    • EIXO/GRUPO 4: Religião [autoria: Alexander Magalhães], Rito de Passagem [autoria: Cristiano das Neves Bodart], Ritual [autoria: Amaro Xavier Braga Jr.]; (Antropologia, Vol. 1)
    • EIXO/GRUPO 5: Alteridade [autoria: Andreia dos Santos e Simone Mestre], Cultura Popular [autoria: Anderson Vicente da Silva], Estranhamento [autoria: Cristiano das Neves Bodart] (Antropologia, Vol. 2).

    É importante destacar que são quatro turmas diversificadas, com estudantes duas turmas da capital Macapá-AP (Unifap/campus Marco Zero): dos cursos de Ciências Biológicas e Pedagogia; uma turma no município de Mazagão-AP, ofertada ao curso de Pedagogia do Campo, do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor/Unifap/campus Mazagão); e uma turma de Pedagogia vinculado ao Projeto de Interiorização Quilombola (PIQ), desenvolvida em escola estadual de educação básica, que funciona como Polo da Unifap, em área rural de Macapá-AP, na comunidade remanescente de quilombo Torrão do Matapi.

    Faz-se necessária a descrição do parágrafo acima com a finalidade de indicar que essa experiência contempla um público diversificado, que ao passar pela Unidade introdutória, tiveram a oportunidade de ler, analisar, refletir e se expressar quanto as temáticas importantes para o ensino e pesquisa em Ciências Sociais.

    O debate ocorreu em uma aula exclusiva para essa atividade, tendo cada grupo o tempo entre 30 a 40 minutos para exposição e análise, em seguida, sob a mediação do docente, foi aberto o debate para a participação dos demais estudantes, tendo posteriormente a análise e contribuição do professor responsável.

    Em todos os componentes o debate rendeu para além das expectativas, ultrapassando a formalidade do tempo estipulado para cada grupo, proporcionando aos estudantes uma visão crítica, principalmente, a análise coletiva de cada grupo/turma/docente fez sob os conceitos e categorias em debate.

    Recursos utilizados

    Em termos de recursos, tivemos cinco dos seis livros da coleção (Sociologia, vol. 1 e 2; Antropologia, vol. 1 e 2; Ciência Política, vol. 1), com a divisão e leitura prévia, fizemos a organização em grupos por círculo em sala, sendo recomendado o debate por oralidade, ainda tivéssemos disponíveis pincel, lousa, notebook e projetor multimídia.

    Avaliação

    Considerando a socialização de conhecimento e incentivo ao pensamento crítico, foi solicitado pelo docente a participação de todos, na expectativa de retorno e contribuição a partir de suas análises particulares e coletivas: “como vocês entendem esses conceitos?”, “qual a importância deles?”, dentre outras questões.

    Para fins de nota da avaliação, foi colocado como “estimulo”, valor dois pontos, dos dez possíveis da Avaliação Parcial, que contou com outros instrumentos ao longo do componente.

    Referências

    BODART, Cristiano das Neves (org.). Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Antropologia / Organizador: Cristiano das Neves Bodart; Prefácio de Rafaela Reis e Thiago Ingrassia Pereira. – 1. ed. – Maceió, AL: Editora Café com Sociologia. 2021. 133 p.; (volume 1).

    BODART, Cristiano das Neves (org.). Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Antropologia / Organizador: Cristiano das Neves Bodart; Prefácio de Thiago Ingrassia Pereira. – 1. ed. – Maceió, AL: Editora Café com Sociologia. 2022. 100 p.; (volume 2).

    BODART, Cristiano das Neves (org.). Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Ciência Política / Organizador: Cristiano das Neves Bodart; Prefácio Thiago Ingrassia Pereira. – 1. ed. – Maceió, AL: Editora Café com Sociologia. 2022. 103 p.; (volume 1).

    BODART, Cristiano das Neves (org.). Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Sociologia / Organizador: Cristiano das Neves Bodart; Prefácio de Thiago de Jesus Esteves e Thiago Ingrassia Pereira. – 1. ed. – Maceió, AL: Editora Café com Sociologia. 2021. 121 p.; (volume 1).

    BODART, Cristiano das Neves (org.). Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Sociologia / Organizador: Cristiano das Neves Bodart; Prefácio de Thiago de Jesus Esteves e Thiago Ingrassia Pereira. – 1. ed. – Maceió, AL: Editora Café com Sociologia. 2021. 126 p.; (volume 2).

     

    Como citar este texto:

    DIAS, Jorge Lucas de Oliveira. Os usos dos Conceitos e Categorias das Ciências Sociais no ensino de Sociologia e Antropologia na Graduação da Unifap | Blog Café com Sociologia, outubro. 2023.

     

    Nota:

    [1] Professor substituto na Universidade Federal do Amapá (Unifap). Mestre em Educação (PPGED/Unifap). Especialista em Ensino de Sociologia pela Universidade Estadual de Londrina (Uel). Graduado em Licenciatura em Sociologia (Unifap). E-mail: [email protected]

     

     

    Livros de sociologia

  • Meritocracia, racismo e conhecimento sociológico

    Meritocracia, racismo e conhecimento sociológico

    Meritocracia, racismo e conhecimento sociológico

    Cristiano das Neves Bodart

     

    Você acredita que as desigualdades sociais são resultantes de diferenças de capacidades intelectuais ou biológicas entre a espécie humana? Talvez afirme que não. Mas, por que acreditar no discurso da meritocracia? Saiba que em muitos casos esse discurso está sustentado no racismo.

    Em diversos momentos, o discurso da meritocracia se ancora na ideia de que algumas pessoas têm maior capacidade intrínseca de realizações do que outras. Muitas vezes entendido como capacidades natas, o que é comumente chamado de “dom”. Neste texto, pretendo demonstrar o que as Ciências Sociais têm produzido sobre essa questão.

    Racismo histórico

    No século XIX, algumas características físicas eram usadas para justificar condições sociais de exploração. Por exemplo, os indígenas eram vistos como sendo preguiçosos, assim como se afirmava que negros que tinham canelas grossas eram malandros. Essas afirmações eram instrumentos de criação de ideologias garantidoras da exploração e da validação das desigualdades sociais e criadora de narrativas que visavam culpabilizar os que se negavam à subjugação e à condição de escravos.

    De outros modos, a noção de meritocracia também tende a justificar situações que são originárias das estruturas materiais e simbólicas da sociedade capitalista, tais como, a pobreza, o estado de situação de rua, o desemprego, o alento, o analfabetismo e a exclusão educacional. Como essas estruturas sociais afetam negativamente alguns e beneficiam outros, é comum vermos, por exemplo, associações entre pobreza e negros, e criminalidade e pobres. Trata-se de discursos ideológicos e compreensões equivocadas; e os estudos científicos dos fenômenos sociais comprovam isso.

    Contribuição das Ciências Sociais para pensar o tema

    As desigualdades sociais são fenômenos sociais complexos e historicamente construído, e têm sido objeto de estudo da Sociologia desde seu “nascimento”. Diversos teóricos contribuíram para a compreensão das causas dessas desigualdades, destacando fatores econômicos, estruturais e culturais como principais motores por trás desse problema. Houve um momento, no final do século retrasado e no início do século passado, em que uma pseudociência apresentava argumentos racistas que visam justificar as desigualdades sociais. Na época, estava presente o mesmo discurso da meritocracia.

    Mas talvez você não saiba que esses discursos foram superados pela ciência. Diversas pesquisas teóricas e empíricas foram desenvolvidas e trouxeram comprovações de que as estruturas sociais materiais e simbólicas são as causadoras das desigualdades sociais. Para ficar em alguns exemplos, Karl Marx (1818-1883), um dos pensadores mais influentes na Sociologia, evidenciou como as relações de classe geram as desigualdades sociais. No capitalismo, a propriedade dos meios de produção historicamente concentrada nas mãos de poucos deixa a classe trabalhadora em uma posição de desvantagem econômica.

    Max Weber (1864-1920), por sua vez, demonstrou como o status e o poder são componentes cruciais das desigualdades. Weber demonstrou que a estratificação social é resultado de múltiplos fatores socialmente construídos, incluindo a posse de bens, o prestígio social e o controle sobre instituições.

    Mais recentemente, Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, demonstrou que a cultura desempenha um papel fundamental na reprodução das desigualdades, pois as pessoas com acesso a recursos culturais, como educação e conhecimento, têm uma vantagem significativa na competição social.

    Pesquisas mais recentes

    Além desses teóricos, outros pesquisadores têm destacado a discriminação racial, de gênero e étnica como produtores e reprodutores das desigualdades sociais. Teóricas como Patricia Hill Collins (1948- ) e Kimberlé Crenshaw (1959- ) apontam que diferentes formas de opressão se sobrepõem e interagem (o que chamamos de interseccionalidade), aprofundando ainda mais as desigualdades de acesso e, consequentemente, ampliando o fosso social existente entre dominantes e dominados, entre ricos e pobres, entre brancos e não brancos.

    Contribuição das Ciências Sociais brasileiras

    No Brasil, as pesquisas sobre os impactos do racismo sobre as conformações da estratificação social são diversas. Podemos citar Florestan Fernandes (1920-1995), Lélia Gonzalez (1935-1994), Arthur Ramos (1903-1949), Sueli Carneiro (1950- ) e Silvio Almeida (1976- ), que problematizam, aos seus modos, a exclusão do negro e da negra na sociedade brasileira.

    As políticas públicas também desempenham um papel crucial na perpetuação ou redução das desigualdades sociais. Eu mesmo, durante o mestrado, demonstrei como a alocação espacial de recursos públicos reproduz as desigualdades intraurbanas. Alguns espaços sociais recebem recorrentemente investimentos públicos, ampliando, por exemplo, os valores dos imóveis do local, e reduzindo custos diversos, como o acesso aos equipamentos culturais e de saúde (Bodart, 2009). Repito o que eu havia constatado e afirmado, “o Estado pode ou não reforçar a segregação espacial, aumentando ou diminuindo a distância social entre os pobres e ricos através da provisão diferenciada de serviços e equipamentos públicos” (Bodart, 2009, p. 26).

    Nessa direção, afirmou Myrdal (1968) haver uma “causação circular” de reforço das desigualdades socioespaciais, afetando diretamente as condições desiguais de vida. Para ele, o processo social tende a tornar-se acumulativa e, muitas vezes, a aumentar, aceleradamente, sua velocidade” (Myrdal, 1968, p.33-34). Outras pesquisas empíricas evidenciaram a existência dessa causação circular no Brasil, tais como as pesquisas desenvolvidas por Vetter, Massena e Rodrigues (1979), Vetter e Massena (1981), e de Terra (2007).

    Teóricos como Thomas Piketty (1971- ) demonstram como a concentração de riqueza pode ser exacerbada quando as políticas fiscais e econômicas beneficiam desproporcionalmente os mais ricos; o que é comum por essas bandas.

    As desigualdades sociais resultam de uma interação complexa de fatores econômicos, estruturais e culturais, e nada tem a ver com esforço individual ou diferenças biológicas. Explicações que apontam diferenças intrínsecas de grupos são baseadas em concepção racista e não científica. Os conhecimentos sociológicos produzidos evidenciam e denunciam uma estrutura social que se torna base para as desigualdades.

     

    Referências

    BODART, Cristiano das Neves. Alocação socioespacial dos recursos públicos por meio do orçamento participativo de Serra/ES. 142fls. 2009. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Planejamento Regional e Gestão de Cidades. Universidade Candido Mendes. 2009.

    MYRDAL, Gunnar. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Tradução de Palhano. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1968.

    TERRA, Denise Cunha Tavares. Uma leitura espacial da apropriação desigual das rendas petrolíferas em Campos dos Goytacazes. 2007. Tese (doutorado). Rio de janeiro: ufrj/ppgg, 2007.

    VETTER, David Michael; MASSENA, Rosa Maria. Quem se apropria dos Benefícios Líquidos dos investimentos do Estado em Infra-estrutura Urbana? Uma teoria da causação circular. In: SILVA, L.A. Machado (org). Solo Urbano: tópicos sobre o uso da terra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

    VETTER, David Michael; MASSENA, Rosa Maria; RODRIGUES, Elza Freire. Espaço, valor da terra e eqüidade dos investimentos em infra-estrutura do município do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Geografia, v 41, nº 1-2. Rio de Janeiro, p. 32-71, jan./jun. 1979.

     

    Dicas de leitura

    ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

    CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo, e desigualdades no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

    FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (1º vol.). São Paulo: Globo, 2008.

    GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções, diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

    RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940.

     

    Como citar este texto:

    BODART, Cristiano das Neves. A meritocracia e os conhecimentos sociológicos. Blog Café com Sociologia. set. 2023. Disponível em:

     

    Nota:

    [1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Site: https://cristianobodart.com/

     

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