A pandemia e os mitos
Por Rodolfo Lobato
Quantas são as histórias míticas sobre dragões e tesouros guardados em cavernas! Até que um herói, cumprindo seu destino, encontra a fama, a riqueza e, também, a sua maldição. Uma dessas histórias refere-se ao dragão Fafnir, da mitologia nórdica, que foi derrotado por Siegfried. Mas o Fafnir não era um dragão, mas um homem que matou seu pai por ganância e foi amaldiçoado, transformou-se em um dragão que passou a vida guardando seu tesouro.
Contemporaneidade
Em pleno século XXI, há Fafnires transformados em dragões vivendo em cavernas, guardando os tesouros tecnológicos, vestuários, calçados, bebidas, TBTs, culinárias, lives, selfs, luxúrias e lixos. Mas a maldição do tesouro perpetua um destino tenebroso ao seu possuidor. A transformação do homem num animal mítico revela um limite ético e proibições para os desejos insaciáveis e ilimitados, desejos destrutivos do homem que encontram uma maldição para aquele que atravessa algumas fronteiras.
Na tradução desse mito para a modernidade, em vez de colocar o ser humano numa relação de igualdade com animais, dragões ou vírus, colocamo-nos numa posição de superioridade. Ou, pior, como se fossemos diferentes do meio ambiente. E, assim, controlaremos os dragões e os coronavírus, e depois com a espada da ciência fabricaremos uma vacina para recolocar a natureza dentro da lógica do mercado. Nos laboratórios comeremos o coração do dragão com a tecnologia e nos banharemos com o seu sangue para ficarmos imunes. A natureza deixará de ser uma ameaça e voltará ao seu lugar numa sociedade organizada em torno dos tesouros, do dinheiro e do consumo. Enfim, domesticaremos mais um dragão para ser uma propriedade, uma patente e uma fonte de lucro e de espetáculo.
Isolamento
No isolamento, nas cavernas, os Fafnires tentam justificar patricídio, dizem que a busca pelo lucro a qualquer preço faz parte da nossa natureza. Assim como naturais são as epidemias, a seleção natural e a sobrevivência dos mais fortes, e que os mais fracos pereçam. Basta o controle social, acumular conhecimento, técnicas e tecnologias para sobreviver, esses seriam os bens “essenciais”. Cultivaram ódios contra aqueles que pregavam a igualdade e os direitos universais, passaram a classificar como inimigos os pregadores de justiça social como uma fé dos mais fracos.
Dentro das cavernas, (re)descobrimos que muito da vida está fora da lógica de mercado, nossa saúde, sonhos, arte, cultura e solidariedade estavam fora dos cálculos da eficiência. Quando procuramos o que há de essencial para proteger a vida, (re)encontramos aqueles que tiveram sua taça de ouro roubada por outros dragões. Vemos que as cavernas são desiguais, umas são menores, simples, às vezes nem são próprias, são cavernas alugadas de outros dragões, ou mesmo simples amontoados de pedras sobrepostas em morros e deslizamentos. Esses dragões tiveram que aprender a beber água em taças de barro, plástico ou vidro.
O aprendizado
Podemos aprender com o filósofo grego Diógenes que um homem pode renunciar à sua última taça desde que ele não sinta sede por causa disso. Ele pode até fechar suas mãos em concha para beber água, mas uma vez que as taças já estão integradas ao universo cultural de um homem, tornam-se um comprometimento, suas necessidades já estão além da simples sobrevivência biológica. Sentimos sede de prazer, mas também de justiça, beleza, amor e democracia. Jamais voltaremos a beber água fazendo conchas com as mãos, não retornaremos a viver no submundo, no obscurantismo ou apenas em cavernas. Há tesouros em excesso num mundo em que ainda há sede e fome. E mitos do passado que nos ensinam mais do que os do presente.
*Rodolfo Lobato é doutor em Ciências Sociais e Jurídicas; docente do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná.
Como citar este texto:
LOBATO, Rodolfo. A pandemia e os mitos. Blog Café com Sociologia. Jun. 2020. Disponível em: <https://cafecomsociologia.com/pandemia-e-os-mitos/>. Acesso em: dia, mês, ano.