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Ensino de Humanidades: entre a valorização e a desvalorização*

Cristiano das Neves Bodart

O conhecimento de Humanidades já foi visto com um capital cultural importante pela elite, isso por proporcionar distinção social aos seus filhos. Ainda que compreendido como “não utilitário”, o ensino escolar de Humanidades foi amplamente defendido até primeira metade do século XX. Na época os conhecimentos de Humanidades eram acessados por apenas uma parte privilegiada da sociedade que cursava o ensino secundário brasileiro. Tratava-se de disciplinas que proporcionavam distinção social. Conhecer as obras de Platão, Aristóteles era algo para poucos, por isso seu caráter distintivo.

O ensino das Humanidades foi mobilizado ao longo de nossa história como instrumento de dominação, de manutenção da ordem, de produção de “heróis nacionais” e de fortalecimento de um nacionalismo benéfico os “donos do poder” econômico e político. Seus conteúdos e abordagens reforçavam o status quo. É ampla a bibliografia que destaca o uso do conhecimento de Humanidades na produção de um imaginário social, seja por meio de compêndios, textos literários ou mesmo manuais escolares. Podemos destacar a obra de José Murilo de Carvalho (1990), na qual o leitor encontrará apontamentos nessa direção, ou ainda o “Ideologia no livro didático” (1987), de Ana Lúcia Goulart de Faria, obra que desvelou o caráter conservador e ideológico do ensino no Brasil.

Por meio do processo de democratização o conhecimento de Humanidades deixou de ser um capital cultura escasso como outrora e, consequentemente, proporcionador de distinção social. Em síntese, o filho da empregada passou a ter acesso, em certa medida, aos conhecimentos que antes apenas o filho da patroa acessava; perdendo assim seu “valor” simbólico distintivo. Estudar Sociologia que nos anos de 1930 era algo reservado a poucos alunos do seleto ensino secundário, passou nos dias atuais a compor a rotina de todas as escolas do ensino médio brasileiro.

Um dos fatores que hoje torna, na concepção das classes privilegiadas – inclusive política – a manutenção do ensino escolar das Humanidades como algo não importante, são suas atuais epistemologias. Se antes as Humanidades reforçavam o status quo, hoje se apresentam de forma “crítica”, estranhando e desnaturalizando as relações sociais. Destacar que os fenômenos e as instituições sociais são construtos das relações sociais de poder que se dão ao longo da história passa a ser um dos objetivos das Humanidades, assim como provocar nos alunos a postura de olhar os fenômenos e as instituições de forma crítica, rompendo com o senso comum que vos leva a não “enxergar” apenas as pré-noções.

Desta forma, se antes as Humanidades eram apropriadas por grupos privilegiados econômica e politicamente, hoje questionam seus privilégios; pondo em xeque as estruturas, as relações sociais e os sistemas políticos e econômicos pretéritos e vigentes. Por isso, recorrentemente o professor de Humanidades é acusado de doutrinador e “comunista”.

Além disso, foi via as disciplinas de Humanidades que temas tabus na sociedade passaram a ser amplamente discutidos, assim como demandas de minorias passaram a compor o currículo, os livros didáticos e as aulas. O pleito de novos “heróis”, tais como Zumbi, foram destacados no interior dessas disciplinas, trazendo ao centro do palco da história sujeitos que antes eram (quando apareciam) “figurantes” à margem das narrativas escolares. De figurantes, o pobre, o escravo, o índio, o negro, o cigano, os homossexuais, e outras minorias, tornaram-se coadjuvantes e passam a ser discutidos, em alguma medida e em alguns casos, como atores principais da História do Brasil.

Se as disciplinas de Humanidades se mantiveram no currículo mesmo vistas como “não utilitárias” – embora com intermitências e modificações – passa a ter agora sua presença nas escolas questionadas de forma constante e intensa, o que se dá inclusive de forma organizada, como é o caso do movimento Escola Sem Partido. Sem seu caráter de distinção social e sem sua utilidade de manutenção do status quo, parece que a elite nacional não vê mais sentido manter essas disciplinas no currículo escolar; ideia que vem sendo difundida de forma intensa e que – infelizmente – vem ganhando adeptos em diversas classes sociais.

Nos parece que os motivos do questionamento da importância do ensino das Humanidades passa por, ao menos quatro questões complementares, são elas: i) ser vistas como “não utilitárias” ao sistema econômico vigente; ii) não ser mais tidas como importantes aos grupos privilegiados, deixando de lhes proporcionar distinção social; e iii) por questionar os privilégios historicamente construídos; iv) por trazer ao debates temáticas tidas como tabus e/ou demandas de minorias sociais.

Diante desse cenário, julgamos importante atuar em defesa das disciplinas de Humanidades por acreditar em suas potencialidades para a construção de uma sociedade melhor, mais igualitária e justa.

 

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Nota:

 

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

1 Comment

  1. Boa tarde!
    Infelizmente tem sido cada vez maior o desdém por parte de outros docentes perante as Humanidades, especialmente a Sociologia e a Filosofia. Há alguns dias o professor de Matemática disse-me que Sociologia era muita abstração, um conhecimento irrelevante. Isso causou-me um desânimo, pois vejo que não é uma opinião única, isolada, mas generalizada na sala de professores. Ademais nossa luta para aumentar a carga horária perpassa por isso, uma vez que, algumas escolas optam por Sociologia no 2º ano e Filosofia no 3º ano, pois acreditam que sejam a mesma coisa e que não há necessidade de levar as duas para todas as séries. Como eu poderia revelar a eles a singularidade da Sociologia? Difícil, principalmente pois já é fato consumado que humanidades é inútil e ainda se mantém por força de lei.

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