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Pode o(a) sulbalternizado(a) falar e ser ouvido(a)?

Pode o subalterno falar
Pode o subalterno falar

O ensaio “Pode o subalterno falar?” foi escrito entre 1982 e 1983 e publicado em 1985, com o subtítulo “Especulações sobre o sacrifício das viúvas”. Após três anos da primeira publicação, em 1988, o texto republicado na coletânea Marxism and the interpretation of culture, onde teve grande repercussão (ALMEIDA, 2010)

Pode o(a) sulbalternizado(a) falar e ser ouvido(a)? Considerações sobre o ensaio de Spivak

Fabio Monteiro de Moraes[1]

As contribuições de Spivak no âmbito dos estudos subalternos e pós-coloniais enriquece o debate acerca dos processos e motivos pelo quais os grupos subalternizados foram e continuam sendo silenciados dos diversos espaços sociais – onde deveriam poder falar e, principalmente, serem ouvidos. A autora faz, e propõe que seja feito por parte dos(as) intelectuais pós-coloniais, uma auto-críritica sobre suas práticas discursivas, acerca de quem pode ou não falar pelos (no lugar dos) outros e, por meio de representações, construírem um discurso contra-hegemônico. “Spivak alerta, portanto, para o perigo de se construir o outro e o subalterno apenas como objeto de conhecimento por parte de intelectuais que almejam meramente falar pelo outro” (ALMEIDA, 2010 p. 14). Na perspectiva crítico-reflexiva de Spivak, o papel dos/das intelectuais pós-coloniais, deve ser o de criar espaços, por meio dos quais os(as) subalternizados(as) possam falar, ao passo que, quando o fizerem, possam ser efetivamente ouvidos, sobretudo pelas instituições.

Direcionando a maior parte de sua crítica à noção de que os(as) subalternizados(as) não precisam dos intelectuais para falarem por eles – conforme postulam Foucault e Deleuze -, a autora se contrapõe afirmando que o(a) subalternizado(a) não pode falar por si mesmo, pois, o processo social que envolve o ato de enunciar-se só acontece em um espaço dialógico de interação. Isto é, trata-se de uma espécie de negociação entre aquele(a) que fala e aquele(a) que ouve[2]. Todavia, diante das estruturas do imperialismo “esse espaço dialógico de interação não se concretiza jamais para o subalterno. Pois, este é desinvestido de qualquer forma de agenciamento, de fato, não pode falar” (SPIVAK, 2010, p. 15).

Ela [Spivak] critica a postura “intelectual auto-abnegada” que Foucault e Deleuze (1977) adotam quando rejeitam falar pelos/as outros/as, alegando que sua posição supõe que os/as oprimidos/as possam representar de maneira transparente seus próprios interesses verdadeiros. De acordo com Spivak, a auto-abnegação de Foucault e Deleuze serve apenas para ocultar o poder autorizador real dos/as intelectuais em retirada, que, em seu próprio retiro, ajudam a consolidar uma concepção particular de experiência (transparente e autoconhecida). Assim, promover a “escuta”, em vez de falar, essencializa os/as oprimidos/as como sujeitos não- ideologicamente construídos (ALCOFF, 2020, p. 428-429).

Nesse ensaio, embora o objetivo de Spivak seja tratar da história das viúvas de Calcutá no contexto de suas práticas religiosas de autoimolação, diante das intervenções imperialistas britânicas (vale dizer que o contexto para o qual a autora está olhando quando realiza essa pesquisa, é o domínio do império britânico na Índia, que durou até 1947), a autora opta por fazer uma longa digressão, levando o leitor a passear pelas análises críticas do lugar do investigador pós-colonial, a partir, principalmente, de Foucault, Deleuze, Marx e Derrida. A autora sustenta sua tese da impossibilidade de falar dos subalternizados(as) apoiada em alguns pressupostos marxianos, extraidos do 18 Brumário de Luís Bonaparte.

Eles [os proletariados ou subalternizados] não são capazes de representar a si mesmos, necessitando, portanto, ser representados. O seu representante precisa entrar em cena ao mesmo tempo como o seu senhor, como uma autoridade acima deles, como um poder governamental irrestrito, que os proteja das demais classes e lhes mande chuva e sol lá de cima. A expressão última da influência política dos camponeses parceleiros consiste, portanto, no fato de o Poder Executivo submeter a sociedade a si próprio (MARX, 2011, p.143).

Spivak (2010, p. 43) afirma que Marx, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, discute “o princípio estrutural de um sujeito de classe disperso e deslocado: a consciência – coletiva ausente – de classe de um pequeno proprietário camponês que encontra seu ‘portador’ em um ‘representante’ que parece trabalhar no interesse de um outro.”

Apoiada na Gramatotologia de Derrida, a autora propõe um caminho desconstrucionista que se aproxima de uma espécie de descolonização do pensamento, pois, “é no interesse de tais preocupações que Derrida não invoca que ‘se deixe o(s) outro(s) falar por si mesmo(s)’ mas, ao invés, faz um ‘apelo’ ou ‘chamado’ ao ‘quase-outro’ (tout-autre em oposição ao outro autoconsolidado), para tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós” (ibidem, p.108).

O ponto chave do discurso de Spivak é a capacidade de agência dos(as) subalternizados(as), como uma forma de ação legitimada pelas instituições. “Daí, a impossibilidade de se articular um discurso de resistência que esteja fora dos discursos hegemônicos” (ALMEIDA, 2010, p. 18).

Vale ressaltar que somente a partir da seção IV, especificamente na página 110 do seu ensaio, Spivak aborda com algum grau de especificidade questões de raça e gênero, dando ênfase à questão de gênero. Ressalta-se também que na tradução brasileira, o título original em inglês “Can the subaltern speak?”, por escolha dos tradutores, sofreu uma inflexão que priviliegia o gênero masculino, silenciando o lugar de fala das mulheres subalternizadas, pois o temo “the subaltern” caracteriza-se por seu caráter neutro, podendo assim ser utilizado para se referir tanto aos subalternos (gênero masculino), quanto às subalternas (gênero feminino e pessoas), o que não acontece no título traduzido para o português.

Durante todo o ensaio Spivak reforça a importância de se problematizar a presença e as implicações do imperialismo (divisão internacional do trabalho; terceirização internacional; exploração da força de trabalho; ausências de leis trabalhistas que regulem a exploração de mão de obra, etc.) a respeito do problema da representação e do silenciamento dos sujeitos, considerando a questão de raça, gênero e classe. Tais questões ficam claras quando Spivak aborda o problema da ausência dos testemunhos das mulheres nos relatórios policiais e na decisão, por parte do governo britânico, em abolir e criminalizar o ritual de autoimolação. Nesse contexto a autora diz que essa

[…] é mais uma questão de que, apesar de ambos serem objeto da historiografia colonialista e sujeito da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade”(SPIVAK, 2010, p.85).

Por fim, depois de um longo passeio pelos assuntos aqui brevemente pontuados, a autora aborda especificamente os problemas das viúvas hindu no contexto dos rituais de autoimolação, isto é, um tipo de autossacrifício praticado por mulheres indianas quando ficam viúvas. Nessa altura, a autora denuncia importantes aspectos sobre os silenciamentos sofridos pelas viúvas, pois, “nunca se encontra os testemunhos da voz-consciência das mulheres”, que poderiam ter sido usado para produzir uma contrassentença para a compreensão de que a abolição do ritual de imolação pelos britânicos tenha sido um caso de “homens brancos salvando mulheres de pele escura de homens de pele escura” (ibidem, p. 122). O que serviu para reforçar a imagem do imperialismo como estabelecedor da boa sociedade e salvador da mulher contra sua própria espécie.

Apesar de criticar Foucault ao longo de quase todo texto, Spivak não se furta a pontuar trechos do pensamento do autor francês que ela julga serem pertinentes à sua análise. Esse é o caso em que Foucault diz ser “a episteme um mecanismo que possibilita separar não o verdadeiro do falso, mas do que não pode ser caracterizado como científico” (SPIVAK, 2010, p. 125 apud FOUCAULT, p. 197). Com essa recuperação, a autora aponta para outro aspecto importante do seu texto e que permanece atual em nossos dias: o problema da lógica da produção das ausências ou dos silenciamentos, que de acordo com Santos (2002), ocorre, entre outras, a partir da monocultura do saber e do rigor ciêntífico, que consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente. Sobre essa questão, mais uma vez, a análise de Spivak aponta para o problema do imperialismo, dizendo que a histórica da lógica capitalista é a lógica ocidental e que o imperialismo é responsável por estabelecer uma universalidade da sua narrativa, como única narrativa credível, e ainda aponta que “ignorar [não escutar] o subalterno hoje é – quer queira, quer não – continuar o projeto imperialista” (SPIVAK, 2010, 127).

Ao final do ensaio, Spivak, mais uma vez é objetiva em responder a questão levantada inicialmente, sobre a capacidade de falar dos(as) subalternizados(as): não há lugar nenhum a partir do qual os subalternizados(as) sexuados(as) e racializados(as) possam falar e, principalmente, serem ouvidos. E reforça a necessidade de se pensar o papel do intelectual nesse debate: “A representação não definhou. A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio” (p. 126).

Spivak (2010) postula, a partir de uma perspectiva marxista, haver uma forte influência das estruturas, impedindo os grupos subalternizados de falarem por si mesmos, ao passo que estão numa condição de sujeição política que os força a perceberem-se e a agirem, sempre como subordinados.

Referências

ALCOFF, Linda. O problema de falar pelos outros. Tradução de SILVA, Vinícius Rodrigues Costa da Silva; ZEFERINO, Hilário Mariano dos Santos; & CHAGAS, Ana Carolina Correia Santos das. Abatirá – Revista de Ciências Humanas e Linguagens, v. 1, n. 1, p. 409-438, jan./jun. 2020.

ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Prefácio – Apresentando Spivak. In: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

MARX, Karl, O 18 de brumário de Luís Bonaparte. – São Paulo: Boitempo, 2011.

SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 63, Out. p. 237-280, 2002.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

 

Como citar este texto:

MORAES, Fabio Monteiro de. Pode o(a) sulbalternizado(a) falar e ser ouvido(a)? Considerações sobre o ensaio de Spivak.Blog Café com Sociologia, dez. 2022.

Notas:

[1]Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Especialista em Filosofia, Conhecimento e Educação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) E-mail: fabiocienciassociais@gmail.com

[2] Um exemplo dessa negociação entre aquele que fala e aquele que ouve pode ser visto na palestra-performance “Descolonizando o conhecimento” de Grada Kilomba, disponpivel em: https://youtu.be/iLYGbXewyxs?t=713

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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