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Resenha de “Manicômios, prisões e conventos”, de Erving Goffman (Parte 1)

Manicômios, prisões e conventos

Resenha do livro parte 1 (Parte 2 AQUI):

Erving Goffman
Brian Henrique de Assis Fuentes Requena

Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos.7ed. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.

Manicômios, prisões e conventos: a ordem da interação institucional na obra de E. Goffman

 

Brian Henrique de Assis Fuentes Requena[1]

Sobre Goffman

Erving Manual Goffman (1922-1982) nasceu em Mannville, na província de Alberta, Canadá. Seus pais, judeus ucranianos, migraram para o Canadá no final do século 19 e se estabeleceram em Dauphin, Manitoba, onde o pai firmou-se no ramo da costura. Graduou-se em antropologia e sociologia pela Universidade de Toronto, em 1945. Na pós-graduação, foi para a Universidade de Chicago, Estados Unidos, tornando-se mestre[2](1949) e doutor[3](1953) em sociologia pela mesma instituição. Em 1958, a convite de Herbert Blumer, juntou-se ao staffdo Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley e, a partir de 1968, foi professor de sociologia e antropologia da Universidade da Pensilvânia (Nunes, 2009, p. 175). Também, entre 1981 e 1982, presidiu a American Sociological Association. Em sua elaboração, a obra goffmaniana incorporou e transformou as contribuições de autores clássicos, como Georg Simmel, Émile Durkheim, Radcliffe-Brown, Alfred Schütz, assim como de cientistas sociais de seu tempo, como Talcott Parsons, Herbert Blumer, Everett Hughes (Martins, 2008, p. 135). Erving Goffman, “aquele que fez com que a sociologia descobrisse o infinitamente pequeno” (Bourdieu, 2004, p.11), olhou de perto e longamente a realidade social como etnógrafo. Esteve, por dezoito meses, em uma comunidade das Ilhas Shetland, na Escócia, e em seguida, foram mais três anos como observador participante nos setores de pesquisas farmacológicas e de esquizofrenia do National Institutes of Health Clinical Center e no hospital psiquiátrico de Saint Elizabeth, em Washington, D.C. Ademais, acompanhou equipes cirúrgicas nas salas de operação do Herrick Memorial Hospital, jogadores e traficantes nos cassinos de Las Vegas e Nevada, e um disc-jockeyem uma rádio da Filadélfia, concentrando-se, a partir de 1963, na pesquisa de campo dos espaços públicos da sociedade anglo-americana (Frehse, 2008, p. 159).

Para Scheffer (2003), a obra de Goffman trouxe um caráter revolucionário para os estudos socioantropológicos, pois o autor teve o mérito de “desafiar a santidade da vida cotidiana ao inferir que ela, como qualquer outra instituição social, é construída” (Scheffer, 2003, p. 61). Em todos os seus trabalhos, podemos vê-lo como “etnógrafo do self” (Freidson, 1983, p. 359). Embora herdeiro da microssociologia da Escola de Chicago, sobretudo da concepção de selfbaseada na obra de George Mead (1934), e do legado da pesquisa empírica a partir das interações face a face (“copresença física imediata”), Goffman distanciou-se do interacionismo simbólico, especialmente blumeriano (Blumer, 1937, 1969). O epicentro da crítica à abordagem de Herbert Blumer refere-se ao caráter abstrato no qual o processo de interação social é tomado, sem uma ordem analiticamente viável – aquilo que o autor chamou de “ordem” ou “ordem pública” e, em seu último (e póstumo) texto, de “ordem da interação”, isto é, o conjunto ou sistema de regras básicas do jogo social (Goffman, 1982, p. 5).

Em parte da bibliografia especializada que revista a obra de Erving Goffman está presente o debate sobre em que medida a obra do autor estaria mais associada ao estrutural-funcionalismo ou ao pensamento da Escola de Chicago. De acordo com Collins (2010), a partir de Behavior in public places(1963), Interaction ritual(1967) e Frame analysis(1974), o autor afastou-se do interacionismo simbólico e aproximou-se do estrutural-funcionalismo, na medida em que foi descentralizando a autonomia antes conferida ao selfem prol da estrutura ou da ordem social (Collins, 2010, p. 550). Segundo Castro (2012), em obras anteriores, como The presentation of self in everyday life (1959), Asylums (1961) e Stigma(1963), Goffman abre margem para a apreensão de um selfdotado de maior agência, mesmo que seja um “self que apenas reproduz as convenções sociais ao preencher papeis em conformidade com a definição da situação convencional” (Castro, 2012, p. 200). Para Freidson (1983), entretanto, o valor do trabalho de Goffman se deve à sua intensa humanidade individual e a seu estilo, não à sua relação sistemática com alguma teoria social ou à sua tentativa de avançar tal teoria (Freidson, 1983, p. 359). Conforme o próprio Goffman (1981):

Minha crença é de que a forma de estudar algo é começar tratando a questão como um sistema, em si próprio e no seu próprio nível, e ainda que esse viés seja encontrado na literatura estruturalista contemporânea, há uma fonte não relacionada, da qual eu bebi, no funcionalismo de Durkheim e Radcliffe-Brown. É esse viés que me levou a tentar tratar as interações face a face como um domínio em si próprio (Goffman, 1981, p. 62, grifos meus).

Portanto, com isso, o autor se referia ao estrutural-funcionalismo de Durkheim e Radcliffe-Brown, não à versão contemporânea, como, por exemplo, a teoria geral da ação de Talcott Parsons. Para Trajano Filho (2008), desde suas primeiras obras, Goffman estava interessado em decifrar a ordem da interação e estabelecer homologias entre as características dessa ordem da interação no nível microssocial e a ordem social no nível macrossocial. Sendo assim, a unidade básica de análise deveria incorporar “o contexto, as barreiras espaciais e temporais que o circunscrevem e as regulações ou especificações da conduta por ela prescrita, como as formas ritualizadas de deferência, do saber portar-se e do envolver-se” (Trajano Filho, 2008, p. 170). Então, à maneira de Durkheim e Radcliffe-Brown, o autor tomará as interações face a face como uma cerimonia, um rejuvenescimento e reafirmação expressivos dos valores morais da sociedade. Cronologicamente, as principais obras de Goffman são: The presentation of self in everyday life (1959),Asylums (1961), Encounters(1961), Behavior in public places(1963), Stigma(1963), Interaction ritual(1967), Strategic interaction(1969) Relations in public(1971), Frame analysis(1974), Gender advertisements(1979), Forms of talk (1981).

O asilo

O livro Asylums: essays on the social situation of mental patients and other inmates, originalmente publicado em 1961, foi traduzido para o português como Manicômios, prisões e conventos, em 1974.Entre 1954 e 1957, enquanto era professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), Goffman foi membro visitante do Laboratório de Estudos Socioambientais do Instituto Nacional de Saúde, em Bethesda, Maryland. Foram três anos como observador participante nos setores de pesquisas farmacológicas e de esquizofrenia do National Institutes of Health Clinical Center (Kunze, 2009, p. 278). No período de 1955 a 1956, efetuou um trabalho de campo nas enfermarias do hospital psiquiátrico Saint Elizabeth, em Washington, D.C, instituição federal com cerca de 7.000 pacientes, com o intuito de entender o mundo social dos internos de um hospital psiquiátrico, “na medida em que esse mundo é subjetivamente vivido por ele” (Goffman, 2007, p. 8). O resultado desse estudo foi desdobrado em quatro artigos, sendo que os dois primeiros foram publicados separadamente, e compilados, em 1961, sob o título Asylums(Silva, 2013, p. 8). O livro está dividido em quatro partes, respectivamente: As características das instituições totais: introdução; o mundo do internado; o mundo da equipe dirigente; cerimônias institucionais; restrições e conclusões. A carreira moral do doente mental: a fase do pré-paciente; a fase de internado. A vida íntima de uma instituição pública[parte I]: introdução; agir e ser; ajustamentos primários e secundários [parte II]: a vida íntima do hospital: fontes; locais; recursos; estrutura social; conclusões. O modelo médico e a hospitalização de doentes mentais: notas sobre as vicissitudes das tarefas de reparação; conclusão.

No prefácio do livro, o autor argumenta que qualquer grupo de pessoas – prisioneiros, primitivos, pilotos ou pacientes – desenvolve uma vida própria que se torna significativa, razoável e normal, desde que você se aproxime dela e submeta-se à companhia de seus participantes. Sobre as limitações do método desenvolvido na pesquisa, Goffman deixa claro que não ficou nominalmente internado junto aos pacientes e que a interpretação dada sobre eles é parcial, embora justificável, pois quase toda a literatura especializada sobre os doentes mentais é escrita a partir do ponto de vista daqueles que estão, socialmente, do outro lado, isto é, pelos psiquiatras (p. 8). Na nota introdutória, Goffman define uma “instituição total” como um local de residência e trabalho onde um número grande de indivíduos, em situação semelhante, encontra-se separado da sociedade mais ampla por considerável tempo, com uma vida fechada e formalmente administrada. Tomando as instituições totais de modo geral e, especificamente, os hospitais para doentes mentais, o trabalho refere-se fundamentalmente ao mundo do internado, muito pouco ao mundo da equipe dirigente. O interesse central do autor, portanto, é chegar a uma versão sociológica da estrutura do self,a partir da situação do internado (p. 11). Para isso, Goffman estabelecerá uma interlocução com sociólogos e outros pesquisadores que dissertaram sobre prisões, campos de concentração, escolas militares e conventos, dentre eles, autores como Émile Durkheim, Eugen Kogon, Elie Cohen, Bruno Bettelheim, Kirson Weinberg (Silva, 2013, p. 8).

Para fins heurísticos, os quatro artigos serão apresentados individualmente, seguindo a estrutura argumentativa do autor.

As características das instituições totais

Os estabelecimentos sociais, ou instituições, são locais (salas, conjunto de salas, edifícios, fábricas) onde se desenvolve um determinado tipo de atividade. Toda instituição tem tendências de “fechamento” (o estabelecimento conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um “mundo”), mas, na sociedade ocidental, algumas são muito mais “fechadas” do que outras. Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo. Para tais estabelecimentos (asilos, hospitais, prisões, quartéis, conventos) o autor dará o nome de “instituições totais”, a fim de sistematizar as características gerais e comuns que as estruturam (p. 16). O aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que comumente separam as três principais esferas da vida da sociedade moderna (o descanso, o lazer e o trabalho). Em tais instituições, todos esses aspectos da vida são realizados no mesmo local, sob uma única autoridade, na companhia imediata de outros coparticipantes e com um plano racional geral, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição (p. 18). O fato básico das instituições totais é o controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática. Para isso, existe uma divisão básica entre internados e equipes dirigentes. Geralmente, os internados vivem na instituição e têm contato restrito com o mundo externo, enquanto a equipe dirigente está integrada ao mundo externo. E assim, institucionalmente, formam-se dois mundos sociais e culturais diferentes, que caminham paralelamente juntos, com alguns pontos de contato oficial, mas com pouca interpenetração. Cada agrupamento estabelece uma relação limitada e estereotipada com o outro – a equipe dirigente vê os internados como amargos, reservados e não merecedores de confiança, e os internados veem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente se sentem “superiores e corretos”, e os internados se sentem “inferiores, fracos, censuráveis e culpados” (p. 19). O autor não formula, em termos formais, o seu problema sociológico, mesmo assim, uma sugestão foi apresentada no final do artigo: [como] os problemas sociais nas instituições totais [são condicionados] pela estrutura social subjacente a todas elas (p. 108).

Depois de sugerir os aspectos comuns das instituições totais, Goffman analisará tais estabelecimentos a partir de duas perspectivas: “o mundo do internado” e “o mundo da equipe dirigente” (p. 23). Para o internado, o sentido completo de estar “dentro” da instituição não existe independentemente do sentido específico de estar “fora” de tal estabelecimento. Consequentemente, as instituições totais criam e mantêm um tipo particular de tensão entre o mundo institucional e o mundo doméstico, e assim, reiteradamente, usam essa tensão persistente como uma força estratégica de controle dos indivíduos (p. 24). Quando o internado chega à instituição total, inicia-se o processo de mortificação do self, ou seja, um processo sistemático de supressão da “concepção de si mesmo” e da “cultura aparente” que traz consigo, após uma série de degradações, humilhações e profanações ao self. Esses ataques regulares ao self advêm do “despojamento” do seu papel na vida civil mediante a imposição de barreiras de contato com o mundo externo, do “enquadramento” às regras institucionais de conduta, do “despojamento de bens” e consequentemente da perda dos “equipamentos de identidade”, além da “exposição contaminadora” de um dossiê que profana a autonomia do território do self. Concomitante ao processo de mortificação, a equipe dirigente instruirá como o internado deve orientar-se na instituição. Esse conjunto de instruções formais e informais constituirá o “sistema de privilégios” da instituição (p. 49). Se o internado seguir as “regras da casa”, a equipe dirigente lhe dará um pequeno número de prêmios em troca da sua obediência, mas se descumpri-las, o interno é castigado pela sua desobediência. Diante da influência reorganizadora, o internado desenvolve dois mecanismos de adaptação às regras da instituição: pelos “ajustamentos primários”, quando contribui cooperativamente com as atividades institucionais, e pelos “ajustamentos secundários”, quando emprega meios ilícitos, não autorizados e não formais, a fim de “escapar” da realidade que a organização lhe impõe. Os ajustamentos secundários dão ao internado uma prova evidente de que “é ainda um homem autônomo, com certo controle de seu ambiente, e às vezes [isso] se torna quase uma forma de abrigo para o self, um coringa, em que a alma parece estar alojada” (p. 54).

O sistema de privilégios (principal esquema de reestruturação do self) e o processo de mortificação do selfconstituem as condições institucionais que o internado é obrigado a adaptar-se (p. 59). Tais “táticas de adaptação” formam-se a parir dos ajustamentos primários e ajustamentos secundários, ou da combinação de ambos, em diferentes fases da carreira moral do internado e são classificadas como: “afastamento da situação” (desatenção e abstenção); “intransigência” (não cooperação com a instituição); “colonização” (consideração da vida institucional como desejável em relação às experiências ruins do mundo externo); “conversão” (aceitação da interpretação oficial); “viração” (combinação de várias táticas visando evitar sofrimentos físicos e psicológicos); e “imunização” (o mundo da instituição tornar-se um mundo habitual e sem novidades). Desse modo, a partir dessas estratégias, o internado vai reorganizado minimamente o seu self. Todavia, o processo contínuo de mortificação e de reorganização do selfgera no indivíduo uma sensação de fracasso, um sentimento “de tempo perdido” e de angústia diante da expectativa de retorno à sociedade. Essa apreensão origina-se tanto do “status proativo” – o internado sabe que sua posição social intramuros é radicalmente diferente do que era e, consequentemente, sabe também que sua posição social no mundo externo nunca mais será a mesma – quanto da “desculturação” – o internado se vê diante da impossibilidade de adquirir os hábitos exigidos pela sociedade mais ampla.

O autor prossegue, só que agora, a partir do ponto de vista da equipe dirigente. O “mundo da equipe dirigente” é atravessado pela contradição entre o que a instituição realmente faz e aquilo que oficialmente a instituição deve dizer que faz (p. 70). Nesse “mundo”, a equipe dirigente precisa impor obediência ao internado, mas com a impressão de que os padrões humanitários são mantidos e de que os objetivos racionais da instituição estão sendo operacionalizados. Seguindo o “esquema de interpretação” automático da instituição, assim que o internado é admitido, a equipe dirigente o define como o tipo de pessoa que a instituição objetiva tratar, em seguida, a equipe dirigente estabelece um tipo de comportamento “legítimo” que se ajuste às regras da instituição. À primeira vista, “os dois mundos” (internados e equipe dirigente) mantêm uma distância social e têm somente uma interação limitada aos “padrões de deferência” formais da instituição (“impermeabilidade”). Na prática, entretanto, internados e membros da equipe dirigente estabelecem relações, até de modo ilícito, pessoal e solidário, quando existe um compromisso conjunto em relação à instituição (“permeabilidade”). Esse conjunto de atividades e rotinas da instituição “comuns a todos” é denominado pelo autor como “cerimonias institucionais” (p. 85). Tais cerimônias, festa anual, confecção de jornais internos, eventos esportivos, cerimônias religiosas, apresentação teatral, são vistas como a possibilidade do internado “reaprender” a viver em sociedade – e “voluntariamente”. Enfim, o mundo da instituição é marcado pelo choque entre “impermeabilidade” (supressão das influências sociais do mundo externo) e “permeabilidade” (manutenção dos padrões sociais no mundo interno), e isso, de acordo com Goffman, contribui para a compreensão das relações entre uma instituição total e a sociedade mais ampla, que a mantém e que a tolera (p. 104). Enfim, uma instituição total apresenta-se como uma realidade fechada e formalmente administrada, onde todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local, sob uma única autoridade, na companhia imediata de outros coparticipantes, com um plano racional geral. Em contrapartida, o contexto básico das atividades diárias da instituição é atravessado pela contradição e irracionalidade da ação. O contato entre “o mundo dos internados” e “o mundo da equipe dirigente” é marcado por um sistema de representações automáticas, padronizadas, limitadas e estereotipadas do “outro”.

A carreira moral do doente mental

O conceito de “carreira”, em um sentido mais amplo, é definido pelo autor como “qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante sua vida” (p. 111). O termo admite a perspectiva da “história natural”: os resultados singulares são esquecidos, considerando-se somente as mudanças temporais que são básicas e comuns aos participantes de uma determinada categoria social. O conceito de carreira, além de não ser valorativo, refere-se aos aspectos subjetivos e objetivos, pois está ligado tanto aos assuntos íntimos, como a imagem do self, quanto à posição oficial, relações jurídicas e estilo de vida, e é parte de um complexo institucional acessível ao público. Sendo assim, o termo permite que andemos do público para o privado, e vice-versa, entre o selfe sua sociedade significativa. Este artigo, segundo Goffman, é um exercício no estudo institucional do self, cujo principal interesse relaciona-se aos aspectos “morais” da carreira do “doente mental” (p. 112). E, em vista disso, [quais seriam] as mudanças que essa carreira [moral] provoca no selfda pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros (p. 112). O autor tomará a categoria “doente mental” somente a partir do processo se hospitalização, não no sentido psicopatológico do termo. O “comportamento doentio” e a “loucura” atribuída ao doente mental é, em grande parte, resultado da distância social entre os “doentes” e aqueles que lhes atribui isso, e assim, a situação em que o paciente foi colocado, fundamentalmente, não é um produto da doença mental (p. 113). Quaisquer que sejam os refinamentos dos diagnósticos psiquiátricos, o hospital psiquiátrico não é significativamente diferente de qualquer outra comunidade (p. 113). Em seguida, Goffman analisará as etapas da carreira moral do doente mental: o período anterior à admissão, a fase de pré-paciente, e o período de internamento no hospital psiquiátrico, a fase de internado (p. 114).

A carreira moral do doente mental inicia-se com a denúncia de “transgressão” que acarretará na hospitalização. Na fase de pré-paciente, o individuo ingressa na instituição, voluntariamente ou involuntariamente, e a partir disso, ele é expropriado de suas relações e direitos com o mundo externo, tornando-se um paciente, não mais um civil. Portanto, os primeiros aspectos morais dessa carreira são os sentimentos de abandono, deslealdade e amargura. Comumente, o pré-paciente sente-se “perturbado” por “estar perdendo a cabeça” e isso o leva a uma interpretação desintegradora de si mesmo, ainda que essa autoimagem se baseie em estereótipos culturais e sociais mais amplos. Em seguida, já na instituição, um circuito de agentes – tutor, denunciante e mediadores – engendra uma “coalização alienadora” sobre o self do pré-paciente, que, por sua vez, se sente apenas como uma terceira pessoa do processo, traído e enganado em relação à pessoa mais próxima e ao denunciante (p. 119). Como a “transgressão” se tornou um fato social público, a traição testemunhada é seguida de uma “cerimônia de degradação”, uma extensa ação reparadora diante da testemunha, a fim de que possa restaurar sua honra e seu valor social (p. 120). Também, antes da hospitalização, os médicos da equipe dirigente constroem a “história de caso” que é atribuída ao passado do paciente. O último passo na carreira do pré-paciente pode incluir a compreensão, justificada ou não, de que foi abandonado pela sociedade e perdeu as relações sociais com o mundo externo. Inicialmente, na fase de internado, o paciente adota a estratégia do “silêncio”, “ausência” e “anonimato”, o que sugere certo apego ao “resto do seu passado”. O recém-internado percebe que está despojado de suas defesas, satisfações e afirmações usais, e está sujeito a um conjunto relativamente completo de “experiências de mortificação”, como restrição de movimento livre, vida comunitária, autoridade difusa. Depois, com a “aceitação”, apresenta-se para a interação convencional na comunidade hospitalar e, sobretudo, aprende a orientar-se no “sistema de enfermarias”.

O sistema de enfermaria funciona como um “sistema de socialização” da instituição: se obedecer às normas, o internado é “recompensado” com pequenas satisfações secundárias, caso contrário, perde o acesso a esses “privilégios”. Com o tempo, o internado desenvolve um esquema de reorganização da autoimagem do selfa partir de “histórias tristes”, com o reforço de ficção, sobre o seu passado. Com isso, Goffman chama a atenção para o fenômeno de “negação da racionalidade do paciente” que ocorre quando a equipe dirigente desmente as histórias tristes dos pacientes com as informações contidas no seu dossiê. No hospital psiquiátrico, a equipe dirigente tem o “mandato burocrático oficial” para modelar a concepção que o indivíduo tem de si mesmo (p. 128). Consequentemente, o internado aceita ou finge que aceita a interpretação do hospital. Quando o paciente aprende a sobreviver às condições iminentes de exposição, mesmo agindo de uma forma que a sociedade considera como destrutiva, os vínculos associativos com essa mesma sociedade se enfraquecem e transforma-se em “fadiga moral” (p. 140). O “doente mental”, ao ser internado, entra em um ciclo de socialização marcado pela alienação e mortificação. O cotidiano, como modo de empregar o tempo, é sistemicamente configurado pela equipe dirigente de modo burocrático e “racional”, embora a “razão” lhe seja negada. Os “sistemas de enfermarias” são espaços de sociabilidade, de mobilidade institucional, e, sobretudo, de reorganização mínima da autoimagem. A carreira moral inclui uma sequência padronizada de mudanças no self, que se estende dentro dos limites de um sistema institucional. Desse modo, o selfnão é uma propriedade da pessoa a que é atribuído, mas reside no padrão de controle social que é exercido pela pessoa e por aqueles que a cercam (p. 142). Se essa disposição social constitui o self, constitui também como o indivíduo vive e vê o/s “mundo/s”.  

A vida íntima de uma instituição pública

Parte I: Introdução

Os vínculos que ligam o indivíduo aos diferentes tipos de instituições sociais têm certas propriedades gerais e comuns, como compromisso e adesão às regras. Na sociedade ocidental, o acordo formal ou o contrato é um símbolo clássico dessa forma de associação. Com uma assinatura, “celebra-se os vínculos que liga e os limites reconhecidos daquilo que liga” (p. 148). Por trás de cada contrato existem suposições não contratuais a respeito do caráter dos participantes (p. 148). Cientes do que “devem” e “não devem”, os participantes concordam quanto à validade geral dos direitos e obrigações contratuais e quanto à legitimidade dos tipos de sansão para o rompimento do contrato. Quem aceita um contrato supõe que seja uma pessoa de determinado caráter e forma de ser. Se todo vínculo supõe uma concepção ampla da pessoa ligada a ele, “devemos ir adiante e perguntar como o indivíduo enfrenta essa definição de si mesmo” (p. 149). Para isso, Goffman perscrutará os padrões de comportamento (modos de “agir” e “ser”) segundo um tipo particular de instituição social, as “organizações formais instrumentais”, localizadas nos limites de um único edifício ou complexo de edifícios (p. 149). Como ponto de partida, uma “organização formal instrumental” pode ser definida como um sistema de atividades intencionalmente coordenadas e destinadas a provocar alguns objetivos explícitos e globais. Essas organizações, principalmente as “muradas”, têm uma característica singular: parte das obrigações do indivíduo é participar visivelmenteda atividade da organização, o que exige uma mobilização da atenção, com esforço muscular e certa submissão do selfà atividade como símbolo de compromisso e adesão do indivíduo (p. 150). Uma organização formal instrumental só sobrevive por ser capaz de apresentar contribuições úteis da atividade de seus participantes. Entretanto, esse tipo de estabelecimento social não se limita apenas a usar a atividade de seus participantes – a organização formal instrumental também determina quais são os padrões oficialmente adequados de bem-estar, valores comuns, prêmios e castigos. Portanto, nas disposições sociais de tais organizações, existe não só uma concepção completa de participante, mas uma concepção dele como ser humano (p. 153). A organização estipulará “o que fazer” e “por que fazer” e, consequentemente, tudo “o que se pode ser”. Participar de determinada atividade com o espírito esperado (“fitting in”) é aceitar que se é um determinado tipo de pessoa que vive em um tipo determinado de mundo, enfim, toda organização inclui também uma “disciplina do ser”, uma obrigação de ser de um determinado mundo.

Quando um indivíduo contribui, cooperativamente, com as atividades exigidas por cada instituição social, e sob as condições exigidas pela sociedade, se transforma em um colaborador, tornando-se um participante “normal”, “programado” e “interiorizado”. Oficialmente deve ser não mais e não menos do que aquilo para o qual foi preparado, e é obrigado a viver em um mundo, cuja realidade lhe é afim. Essa adequação regular à instituição refere-se aos ajustamentos primários. Em seguida, Goffman estabelece outro termo – os ajustamentos secundários– que define qualquer disposição pelo qual o participante de uma organização emprega meios ilícitos ou com fins não autorizados, ou os dois, como modo de “escapar” daquilo que a organização supõe que deve fazer e daquilo que deve ser, e assim, o indivíduo se isola do papel e do selfque a instituição admite para ele (p. 160). Se tomarmos o espaço físico onde são praticados os ajustamentos secundários e a região de origem dos “praticantes”, o centro da atenção se estende do indivíduo para os indivíduos. Considerando-se uma organização formal instrumental como um estabelecimento social, o ajustamento secundário do indivíduo se integraria ao conjunto total de tais ajustamentos que todos os participantes da organização mantêm coletivamente. Tais práticas, em conjunto, abrangem o que pode ser chamado de vida íntima da instituição, o que corresponderia ao “submundo” da instituição (p. 167). Os ajustamentos secundários, fundamentalmente contidos, assim como os ajustamentos primários, categorizam-se pelo encaixe (“fitting in”) nas estruturas institucionais existentes, sem pressões radicais. Seguindo o ponto de vista estrutural, contrário à sociopsicologia, Goffman questiona “qual o caráter das relações sociais exigidas para manutenção da prática dos ajustamentos secundários” (p. 168).

De acordo com a localização do praticante na hierarquia da organização, os ajustamentos secundários – práticas presentes na vida íntima da organização formal instrumental – se diferenciam. Os participantes com posição inferior têm menos compromisso e ligação emocional com a organização e, por conseguinte, menos adesão às práticas de ajustamentos secundários. Já os participantes com posição mais elevada no sistema de enfermarias usam de maneira mais ampla tais ajustamentos. Em tese, as camadas médias da organização são as que menos adotam os ajustamentos secundários, porque elas exemplificariam os valores “edificantes” e “inspiradores” da organização. No mais, o componente hierárquico do sistema de enfermarias funciona também como um sistema de diferenciação das características morais dos próprios pacientes (p. 169). Todas as condições que tendem a desenvolver uma vida íntima ativa dentro de qualquer instituição também estão presentes no hospital para doentes mentais. Instituições como os hospitais psiquiátricos são “totais”, pois o internado vive todos os aspectos de sua vida no edifício do hospital, na companhia de outros indivíduos igualmente separados do mundo mais amplo. Tais estabelecimentos contêm duas categorias de participantes – os internados e a equipe dirigente. Fundamentalmente, os hospitais públicos para doentes mentais não funcionam de acordo com a doutrina psiquiátrica, mas segundo o “sistema de enfermarias”. Esse esquema de disciplina delimita um conjunto relativamente completo de meios e fins que orientam os pacientes. Dentro do sistema de enfermarias, muitas atividades dos pacientes tornam-se efetivamente ilícitas.

 

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Referências bibliográficas

 

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Notas:

[1]Doutorando em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

[2]Goffman, Erving. (1949), “Some characteristics of response to depicted experience”. Unpublished master’s thesis. Department of Sociology, University of Chicago.

[3]Goffman, Erving. (1953), “Communication conduct in an island community”. Unpublished PhD dissertation. Department of Sociology, University of Chicago.

 

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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