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Texto para reflexão

Estes textos oferecem uma visão diferenciada e interessante sobre vários acontecimentos cuja análise pode ser feita por meio da sociologia.

A reflexão é um importante instrumento intelectual para fazer com que o indivíduo consiga perceber a relação entre as estruturas sociais e as biografias individuais.

Na Sociologia sempre esteve presente a discussão entre indivíduo e sociedade (agencia vs. estrutura), chegando ao ponto de estudiosos mais radicais, principalmente nas primeiras décadas do século XX, ignorar os estudos que tinham seu foco no
indivíduo. Simmel, por exemplo, foi um sociólogo renegado por anos por esse motivo.  Bauman e May nos ajudam a entender em quais condições o indivíduo é objeto da Sociologia. Para esses autores “atores individuais tornam-se objeto das observações de estudos sociológicos à medida que são considerados participantes de uma rede de interdependência .

Desse modo os textos para reflexão ensejam uma análise de como nós nos relacionamos com nossa estrutura e proporcionam um contraponto discurso do discurso dominante.

  • Ao contrário do que te contaram, a doutrina socialista foi(é) triunfante!

    Ao contrário do que te contaram, a doutrina socialista foi(é) triunfante!

     Ao contrário do que te contaram, a doutrina socialista foi(é) triunfante!*

    Por Cristiano das Neves Bodart
     
    É comum o argumento simplista de que “o socialismo não deu certo”. Sob certa perspectiva, mais crítica e menos simplista, essa assertiva é equivocada. O socialismo, sob uma perspectiva mais ampla, é uma doutrina triunfante.
     
    Alguns argumentarão: mas como é triunfante se não deu certo na Ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ex-URSS)! Ou ainda dirão: Veja as condições atuais de Cuba e Coréia do Norte! Esses argumentos são simplistas e, por sua simplificação, reduz o socialismo à regimes políticos e práticas de governos ditatoriais que foram colocados em práticas a partir de concepções diferentes (inclusive bem diverso da proposta marxiana), não o compreendendo enquanto doutrina.
     
    Olhando o socialismo como doutrina, notamos que este triunfou, não como muitos socialistas desejavam, mas triunfou em questões de grande importância para a classe trabalhadora. Como disse certa vez o sociólogo Antonio Candido, “o que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”**.
     
    antonio candido
    Compartilho com Antonio Candido de que o socialismo são “todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado”.
     
    O socialismo, sob essa perspectiva, é, como afirmou Candido, o irmão gêmeo do capitalismo. Surgiram juntos, na Revolução Industrial, e percorreram a história moderna lado a lado. O Capitalismo da Primeira Revolução Industrial deu origem ao operário de fábrica, assalariado, explorado e, muitas vezes, castigado fisicamente. É nesse mesmo contexto de ampliação do sofrimento e exploração do operário, fruto do objetivo genuíno capitalista, que desenvolveu-se as diversas tendências que lutavam contra a exploração e expropriação do trabalhador, o que veio a ser classificado/conhecido como socialismo em suas diversas tendências/tipos.
     
    O que hoje se pregoa como “face humana do capitalismo” é o triunfo do socialismo. A face do capitalismo é baseado na mais-valia, na apropriação do trabalho de outrem, da exploração que viabiliza o acúmulo de capital e maximiza as desigualdades sociais. As conquistas sociais e trabalhistas não foram conquistas do capitalismo, mas conquistas socialistas que, com muitas lutas, foram minando parte da estrutura capitalista. Assim, a jornada de trabalho reduziu, instituiu-se um salário mínimo, férias, 13º salário, licença maternidade, justificativa de falta por meio de atestado médico, etc. Eis “elementos socialistas” que minaram o capitalismo. Ou você acredita que são conquistas do capitalismo? Que foram os patrões que desejaram repartir um pouco de seus lucros com seus empregados? Como disse Antonio Candido*,

    “O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo.”

    As conquistas trabalhistas no interior dos países europeus, por exemplo, deu-se a partir de lutas fomentadas pelos ideais de igualdade, solidariedade e humanismo, as quais são princípios socialistas. Suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas e onde isso não vem ocorrendo de forma mais ampla, as condições de vida da maior parte da população são lamentáveis. O socialismo precisa avançar ainda mais. Não estou me referindo a nos tornar um país de regime socialista (sobretudo destes que têm por aí), mas os ideais socialistas de igualdade devem minar a lógica capitalista rumo a um mundo menos desigual e mais justo. O valor deve estar mais nas pessoas do que nas coisas. O trabalho deve ser humanizador e não desumanizador.
     
    Nesse sentido e sob essa perspectiva, o Socialismo vai avançando… vai mimando o capitalismo de tal forma que muitos direitos trabalhistas já são amplamente reconhecidos. Antes clamar por melhores condições trabalhistas era coisa de “comunista”, hoje nem tanto. E o socialismo vai mimando também a percepção da sociedade… quem sabe há uma luz no fim do túnel?
     
     
     
    Notas:
     * Texto originalmente publicado em 2016 aqui mesmo no blog Café com Sociologia.
    **Entrevista publicada originalmente na edição 435 do Brasil de Fato.

     

     

     
     
  • Reflexão escola: Posso ir ao Banheiro?

    Reflexão escola: Posso ir ao Banheiro?

    Reflexão escola: Posso ir ao Banheiro?

    Por David Morel

    Acorda, é hora de aula! É dia útil, muito útil. Piloto automático ativado. Entre quatro paredes, sentados em seus respectivos lugares, enfileirados, uniformizados, olhando pra frente, lápis na mão, caderno na mesa. O horizonte termina no quadro. Limitados numa bolha de docilização, relações superficiais, individualismo, hierarquização, onde quase tudo é pré-programado. Bolhas produzidas pela maquinaria política de controle social. Potenciais inexplorados, desejos engavetados, juventude silenciada. A escola não conhece seus alunos!

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    Rodeados de folhas de papéis, ordens, horários, modelos e fórmulas em uma gaiola onde, na maior parte do tempo, nada se cria, nada se experiencia, nada se desperta, nada se descobre, nada se transforma, nada se move, nada se liberta. Os minutos passam lentamente. Os dias parecem ser sempre iguais e descartáveis. Debaixo do tapete, reina a indústria de seres prescritos, vidas robotizadas e mentes alienadas. Não é à toa que nela se transborda tanto estresse, ansiedade, depressão, violência, exaustão, sedentarismo, vícios, crises existenciais… Pois é, de vez em quando eles travam e não “rendem” tanto assim. Mas de repente, no último ano, a liberdade é permitida na linha de montagem: Agora eles têm que “escolher o que querem ser no mundo”, temos o auge do conteudismo e é preciso estar a todo vapor.

    Muita informação, pouco conhecimento. Muita “ensinagem”, pouca vivência. Muito trabalho, pouco sentido. No que se aprende em sala de aula, prevalece aquilo que não possui utilidade prática e que, portanto, se direciona naturalmente ao esquecimento. O conteúdo é vomitado em cima dos alunos num ritmo constante, pra depois ser vomitado por eles em cima da prova e fica lá, não sai do papel e, por fim, vira um número. Apenas uma mera nota vazia, exigida para a aprovação nas universidades. Esses números refletem aprendizados artificiais e o armazém de conteúdo na cabeça do estudante, existem como ferramenta pra eliminar e segregar, nada muito além disso.

    Aqui a educação é tão moderna que é tratada como uma fábrica, aliás, a única delas que não evolui há anos…

     :::::::::: Eis Nossa Extraordinária Cela de Aula ::::::::::

    – Vocês têm 5 horas e 30 minutos, boa prova – A, B, C ou D? – O sinal já bateu – Isso não é postura de estudante, sai de sala! – Para de reclamar, você só tem que estudar! – Seja um aluno exemplar – Vou fazer a chamada – Copiem o quadro – Presta atenção, isso cai no vestibular – Está abaixo da média, vai pra recuperação! – Fiquem quietos! Quero todos olhando pra mim – Você está rendendo pouco, assim vai repetir de ano – O que acha que vai ser na vida desse jeito? – Vale nota? – Qual é o prazo de entrega? Posso ir ao banheiro?

    Até quando?

    David Morel – 17 anos – 
    Formação: Wakatipu High School (Nova Zelândia) ; Escola Eliezer Max 
    Pretende cursar Psicologia em 2018
  • Reforma da Previdência: a farsa do déficit

    Reforma da Previdência: a farsa do déficit

    Por Josué Vidal Pereira*

    A reforma da Previdência constitui-se num daqueles temas que muito se fala, mas pouco se entende. Da parte do Governo Federal observa-se um esforço fenomenal por meio de altíssimos gastos com publicidade para convencer os trabalhadores acerca da necessidade de dificultar seu acesso aos benefícios ou reduzir supostos “privilégios” de certos grupos, sob o argumento de que o atual modelo previdenciário não é sustentável no longo prazo.

    Por sua vez o Sistema Financeiro nacional e internacional, ávido por abocanhar uma fatia cada vez maior do mercado previdenciário, em cujos títulos de previdência privada têm-se um exemplo mais concreto de sua rentabilidade, determinam – por meio de seus agentes que controlam as Instituições e políticas econômicas, a exemplo do Ministro da Fazenda Henrique Meireles,  a reestruturação do sistema previdenciário nacional, que passam a repetir dioturnamente a cantilena de que se não reformar vai quebrar. Afinado com o discurso dos banqueiros, os supostos “especialistas” da TV e das mídias em geral nos aterrorizam todos os dias, dizendo que os mercados estão “nervosos” e que é necessário realizar a reforma para que eles se “acalmem”.

     Ora, e como fica a situação dos  aposentados que ganham um salário mínimo ao mês e agora se vêem ameaçados por um governo ilegítimo de inclusive terem o valor de suas aposentadorias desvinculadas do reajuste do salário mínimo? E os trabalhadores rurais que se vêem igualmente ameaçados da obrigação de contribuir com a seguridade, para garantir o direito à aposentadoria? Não têm eles o direito de ficarem nervosos também? Não pretendo aqui aprofundar essa questão, até por que os índices de aprovação do atual governo – os piores da história republicana mostram precisamente o nível de discordância da população com suas políticas.

    Contudo, deve-se atentar para os discursos que são forjados pela propaganda patronal-midiático-governamental em vista da defesa da suposta necessidade da Reforma da Previdência, pois caso contrário corre-se o risco de se cair nas armadilhas da velha máxima nazista, segundo a qual uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Aliás, influenciados com esse tipo de propaganda, não raro ouve-se cidadãos defender a tese do governo, jogando a culpa do “suposto” rombo da previdência para os funcionários públicos, que seria a suposta “casta” de privilegiados.

    Maria Lucia Fattorelli, Auditora da Receita Federal do Brasil e Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, explica que a complexa questão previdenciária brasileira, estabelecida pela Constituição de 1988, só pode ser corretamente compreendida nos aspectos de sua organização e do seu financiamento, dentro do Sistema de Seguridade Social, que é composto indissociavelmente pela própria Previdência Social, pela Saúde e pela Assistência Social.

    O Artigo 195 da Constituição Federal, ao estabelecer as fontes de financiamento da Seguridade Social, deixa muito claro a indissociabilidade da Seguridade Social, aliás, conforme já previsto no Artigo 194. O caput do artigo 195 determina: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais (…):” a) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, e parte sobre a folha de pagamento, pelo lado dos patrões; b) percentual pago pelos trabalhadores sobre o seu salário ao INSS; c) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social, pago por todos os brasileiros por meio do consumo; e segundo Fattorelli, “Além dessas, há contribuições sobre importação de bens e serviços, receitas provenientes de concursos e prognósticos, PIS, PASEP, entre outras.”

     De acordo com Maria Lucia Fattorelli, o suposto déficit da Previdência é “fabricado” pelo governo e pelos “especialistas” alinhados à perspectiva neoliberal, por meio de um truque simples, ou seja,   subtraem  os gastos previdenciários das contribuições feitas por patrões e trabalhadores – o que obviamente dará um resultado deficitário. No entanto, esse tipo de cálculo faz questão de “esquecer” às contribuições destinadas à Saúde e à Assistência Social, que como já se mencionou são indissociáveis, o que seria inconstitucional de acordo com uma publicação da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil – Anfip,  “O orçamento da Seguridade, de acordo com a Constituição, é único e indivisível. Analisar separadamente as contas da Previdência é inconstitucional”, afirma Diego Cherulli, vice-presidente da Comissão de Seguridade Social da OAB-DF, que destaca ser favorável a uma reforma da Previdência, mas não desta forma que está sendo discutida no Congresso.

    Em outras palavras é preciso que se entenda que muitos dos segurados da Previdência são financiados pela Seguridade Social por meio da Assistência Social, que de acordo com o artigo 194 da CF, é fundamentada nos princípios da universalização do atendimento – ou seja independente da capacidade de contribuição do individuo; da uniformidade e equivalência, da diversidade do financiamento, da equidade, do caráter distributivo.  Um bom exemplo da política da Assistência Social é o Benefício de Prestação Continuada, um benefício de um salário mínimo operado e concedido pelo INSS a pessoas idosas ou deficientes que não tenham condições próprias de sustento. Há também a Aposentadoria Rural destinada aos trabalhadores do campo, os quais não são obrigados à contribuição, porém tem direito assegurado à aposentadoria.

    Ao considerar o conjunto de todas as fontes de financiamento da Seguridade Social, segundo a ANFIP, teve-se no Brasil nos últimos anos, ao contrário do propalado déficit do INSS, sucessivos superávits no sistema Seguridade Social.  “A sobra de recursos foi de R$72,7 bilhões em 2005; R$ 53,9 bilhões em 2010; R$ 76,1 bilhões em 2011; R$ 82,8 bilhões em 2012; R$ 76,4 bilhões em 2013; R$ 55,7 bilhões em 2014, e R$11,7 bilhões em 2015.” Fattorelli lembra que a sobra de recursos é tamanha que o Governo Federal resolveu em 2016 editar uma legislação de prorrogação do mecanismo da Desvinculação da Receitas na União, conhecido como DRU, que retira 30% dos recursos da Seguridade Social que eram vinculados pela legislação para uso exclusivo na área social, para livre uso por parte do governo, seja para “comprar” deputados por meio das chamadas Emendas Parlamentares para evitar cassação do mandato de Temer, mas principalmente para que o governo faça o chamado Superávit Primário, termo técnico utilizado para referir-se à economia que o governo faz para pagar os juros da questionável dívida pública – uma espécie de Hobin Hood às avessas.

    Deve-se pontuar que essa prática governamental de desviar os recursos da Seguridade para outros fins vem de longa data, desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, quando ainda era conhecida como Fundo Social de Emergência, portanto, tão antigo quanto o discurso da necessidade de reforma a Previdência, que, aliás, já passou por diversas mudanças ao longo dos anos, cujo principal resultado foi a criação de obstáculos para que o trabalhador tenha mais dificuldades de  acesso aos direitos garantidos à época da elaboração da Constituição de 1988.

    No atual contexto social, político e econômico, a situação daqueles que vivem do trabalho não é nem de longe alentadora. No plano federal temos um governo não-eleito pelo voto popular, que se aproveita dos altos índices de impopularidade para fazer avançar toda uma agenda de contra-reformas, as quais retiram direitos históricos conquistados com a luta secular dos trabalhadores. Depois da contra-reforma trabalhista, e da terceirização generalizada, que retiraram direitos consagrados na CLT, que irão promover ainda mais a precarização dos trabalhadores, deparamo-nos agora com a possibilidade de uma perversa reforma previdenciária cujo resultado será sem sombra de dúvida o aumento da pobreza e da indigência, e o avanço do mercado sobre os direitos sociais, o que significa que terá proteção social que tiver dinheiro para comprá-la no mercado de bens sociais.

    Deve-se ponderar, no entanto, que nem tudo já está perdido. Conforme já mencionado, os direitos previdenciários estão gravados na Constituição Federal, que para ser alterada, somente por meio de Emenda Constitucional, à qual são necessários pelos menos dois terços dos votos dos parlamentares. É fundamental que nós trabalhadores saibamos aproveitar as “brechas” abertas pelas constantes crises que envolvem o governo, sobretudo pelos infindáveis casos de corrupção que freqüentemente paralisam as votações no Congresso, para nos mobilizarmos, seja buscando informação, seja divulgando, debatendo na escola, no trabalho, na família, enviando uma mensagem para o e-mail do parlamentar, colocando um adesivo no carro etc. É importante lembrarmos que a nossa não mobilização soa ao governo como um consentimento passivo, o que faz com que após uma eventual aprovação de um projeto dessa natureza, outros que já estão na fila, entrem na pauta do dia, sempre com o objetivo de retirar direitos dos trabalhadores, a exemplo do projeto que pretende cobrar mensalidades nas Instituições Federais de Educação. À luta enquanto é tempo!

    *Josué Vidal Pereira é professor do Instituto Federal de Goiás e Pesquisador do Financiamento da Educação

  • Você tem inveja? Roberto DaMatta

    Você tem inveja? Roberto DaMatta

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    Por Roberto DaMatta

    A inveja é um sentimento básico no Brasil. Está para nascer um brasileiro sem inveja. A coisa é tão forte que falamos em ‘ter’ – em vez de ‘sentir’ – inveja. Outros seres humanos e povos sentem inveja (um sentimento entre outros), mas nós somos por ela possuídos. Tomados pela conjunção perversa e humana de ódio e desgosto, promovidos justamente pelo sucesso alheio. Nosso problema é o sujeito do lado, rico e famoso, que esbanja reformando a casa, comprando automóveis importados e dando ‘aquelas festas de tremendo mau gosto!’. Ou é o sujeito brilhante que – estamos convencidos – ‘tira’ (rouba, apaga, represa, impede) a nossa chance de fulgurar naquela região além do céu, pois residindo no nirvana social dos poderosos (mesmo quando são cínicos e fracos); dos ricos (mesmo quando pobres e sofredores); dos belos (mesmo quando são feios); dos famosos (mesmo quando são fruto promocional das revistas e jornais); e dos elegantes (mesmo quando são cafonas), estariam acima de todas as circunstâncias.

    Estou seguro que não é o patriotismo mas a inveja, o sentimento básico de nossa vida coletiva. Para começar a gostar do Brasil, tínhamos que invejar a França, a Inglaterra, a Rússia, a Alemanha, a Itália e os Estados Unidos. Era, sem dúvida, a inveja que nos fazia torcer pela queda do Brasil no tal abismo de onde ele sairia melhor do que todo mundo. Antes do sexo, o brasileiro, tem inveja. Ela antecede a sensualidade e o erotismo, sendo básica na formação de nossa identidade pessoal. Você sabe quem é, leitor, pela inveja que sente todas as vezes que encontra o tal ‘alguém’ que, pela relação invejosa, te faz sentir um bosta: um ‘ninguém’.

    Como as nuvens em volta das montanhas, a inveja se adensa em torno de quem é visto como importante, de modo que, ser invejado, é equivalente a ‘ter poder’, ‘charme’, ‘prestígio’ e ‘riqueza’. Dizem que a inveja é perigosa, mas o fato concreto é que não há brasileiro que não goste de ser invejado por alguma coisa. Pelo salário, pelo poder, pela beleza, pelo sucesso, pela inteligência e até mesmo pelas sacanagens, injustiças, calúnias, e descalabros que comete. Num seminário recente sobre ‘Ética e Corrupção’, eu disse que é justamente a vontade de ser invejado que descobre os corruptos. Pois diferentemente dos ladrões de outros países, que roubam e somem no mundo, os nossos são forçados pela ‘lei relacional da inveja’ a retornar ao lugar natal para mostrar aos seus parentes, amigos e, acima de tudo, inimigos, como estão ricos e, nisso, são denunciados, presos, soltos e finalmente colocados no panteão cada vez mais extenso dos canalhas nacionais. Dos infames que comprovam como a inveja e o desejo de ser invejado é o motor da vida brasileira.

    Minha tese é a de que até a canalhice é invejada no Brasil. Richard Moneygrand, o grande brasilianista, escreveu no seu diário filosófico, Voyage Into Brazil que: ‘Para os brasileiros, um dia sem inveja, é um dia sem luz. A inveja confirma a ideia nacional do sucesso para poucos, como antes confirmava o berço e o sangue para a aristocracia e a superioridade social para os funcionários públicos e senhores de engenho. Todos a condenam, mas ninguém pode passar sem ela.’

    A inveja, digo eu, é o sinal mais forte de um sistema fechado, onde a autonomia individual é fraca e todos vivem balizando-se mutuamente. O controle pela intriga, boato, fofoca, fuxico e mexerico é a prova desse incessante comparar de condutas cujo objetivo não é igualar, mas hierarquizar, distinguir, pôr em gradação. O horror à competição, ao bom senso, à transparência e à mobilidade, é o outro lado dessa cultura onde ter sucesso é uma ilegitimidade, um descalabro e um delito.

    O êxito demarca, eis o problema, um escapar da rede que liga todos com todos. Essa indesejável individualização tem mais legitimidade quando vem de quem já está estabelecido. Daí ser imperdoável que Fulano – ‘aquela figurinha’ – o faça, destacando-se pelo disco, novela, livro ou empreendimento desse mundo onde todos são pobres e miseráveis por definição e por culpa do ‘social’. O pecado mortal das sociedades relacionais é justo essa individualização que separa o sujeito de uma rede hierárquica. Rede que nos persegue neste e no outro mundo.

    Como, então, não sentir inveja do sucesso alheio, se estamos convencidos que o êxito é um ato de traição a um pertencer coletivo conformado e obediente. Como não sentir inveja se o exitoso é aquele que recusa ser o bom cabrito que não chama atenção e passa a ser o mais vistoso – esse símbolo de egoísmo e ambição? Ademais, como não ter inveja, se o sucesso é um sinal de pilhagem de um bem coletivo? Essa coletividade que, entra ano e sai ano, continua a ser percebida como mesquinha, subdesenvolvida, pobre e atrasada? Como um bolo pequeno e que jamais cresce, destinado a ser comido somente pelos que estão sentados à mesa?Roberto DaMatta

  • O Planeta das Certezas

    O Planeta das Certezas

    Crítica à sociedade  pacífica
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    Por Rafael Castilho*
    Não aborte.
    Mas se você for pobre, não saia fazendo filho por aí para que eles dependam de esmola do governo.
    Então previna-se, mas não seja vagabunda de levar camisinha na bolsa. Não dê no primeiro encontro. Não use roupas apertadas e não provoque desejo indiscriminado nos homens. Não dance funk. Não queira merecer um estupro.
    Mas, caso seja estuprada, ainda sim não aborte.
    Não aborte, não tenha filhos por aí, não seja vagabunda, não dê, não provoque desejo. Se possível não exista.
    Vá trabalhar, vagabundo.
    Trabalhe, mas não proteste. Não saia por aí querendo direitos.
    Não seja ingrato e aceite tudo de bom grado.
    Se você quer ganhar mais, tem que ser estudado.
    Se você é só estudante é vagabundo. Quem só estuda é filhinho de papai.
    Filhinho de papai é vagabundo.
    Se você só trabalha é trabalhador. Mas se não estuda não quer o melhor pra você, então é vagabundo.
    Não seja um vagabundo. Não seja só trabalhador. Não seja só estudante. Não seja um pobre. Não seja um filhinho de papai. Se possível não exista.
    Não ande de skate, não ande de bicicleta, não vista-se como gnomo. Não seja mais um alternativo. Aliás, nem são necessárias tantas alternativas.
    Abaixe o som, desocupe as ruas, penteie este cabelo, emagreça, envelheça, cale a boca.
    Não use tóxico, não seja viado, não dê a bunda, não use máscaras.
    Não seja politicamente correto, coma a porra da banana, na Paulista não! Carnaval não! Na Pompeia não! Na Vila Madalena não! Metrô não! Ciclovia não! Faixa de Ônibus não! Exista não!
    Agradeço pelas surras que meu pai me deu. Quem não fez merda não foi torturado. Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher. Ele é preto de alma branca. Ele sabe se colocar no seu lugar. Quem mandou ela querer ter direitos iguais. Deu nisso. Não morreu nenhum santo. Ela bem que mereceu. Você me conhece. A mãe chora agora. Hoje em dia a gente sai é não sabe se volta. Eu pago os meus impostos. Queremos Barrabás. Tudo o que eu penso eu falo na cara. Não adianta dar o peixe. Sabe com quem você está falando? Então por que não tem cota pra ruivo? Então porque você tem um IPhone? Deus castiga. Sua casa tem senha no WiFi. Ta com dó, leva pra casa. O Chico Buarque nunca trabalhou na vida. Eu sou assim e não vou mudar. Está é a minha opinião.
    *Rafael Castilho é sociólogo da FESPSP, Pós-Graduado em Política e Relações Internacionais e em Gestão Pública pela FESPSP. É Consultor e Coordenador de Projetos. Incorrigível Corinthiano doente!
  • Você vê também o sociólogo como um artista?*

    Você vê também o sociólogo como um artista?*

    Certamente. No sentido em que ele compõe; o Florestan fala da reconstrução sociológica da realidade, a reconstrução no sentido de que se desenham múltiplos significados que estão no social, e que estão fragmentados, díspares, e por isto Bachellard e o Bourdieu vão repetir o saber do Século XX, que é um saber relacional! O que é ser um bom sociólogo? É a capacidade de estabelecer relações múltiplas, em um mundo que aparece oculto. Eu acho que por isto o sociólogo tem de ser sempre um grande leitor de Literatura. Meus grandes mestres, Ianni, Martins, Jolivet, sempre me disseram para sempre escrever. Quando mais se escreve melhor se escreve, do ponto de vista da Sociologia. A Sociologia tem estes aspectos de criação, não é uma atividade burocrática! Exatamente, por ser isto é que na nossa sociedade, o sociólogo é profissional fundamental para a explicação do mundo, e ele é chamado para isto, mesmo que de uma maneira tardia.

    *Fragmento da obra BASTOS, Elide Rugai. Conversas com sociólogos brasileiros. Editora 34, 2006.

  • E se os sociólogos tivessem tanta influência quanto os economistas?*

    E se os sociólogos tivessem tanta influência quanto os economistas?*

    Percorra metade de uma quadra a pé na região central de Washington e é bem provável que você passe por um economista. Pessoas com formação avançada nesse campo influenciam a política pública em áreas tão diversas quanto convênios médicos, concessões de emissoras de TV e regulamentação da poluição atmosférica.

    Ligue a TV a cabo, e os convidados que opinam sobre as questões importantes da atualidade política muitas vezes ostentam depois do nome algum título como “economista chefe”. Os economistas se espalham pelo governo –há um conselho inteiro deles que assessora o presidente na maioria das administrações, mesmo que isso ainda não seja o caso da atual.

    Entretanto, apesar de gostarmos tanto de economia, o peso dessa disciplina acadêmica na formação das políticas públicas pode ter um lado negativo. Dizem que quando você tem um martelo nas mãos, todos os problemas parecem pregos. O risco é que, quando todo assessor de política pública é economista, parece que todos os problemas decorrem de um PIB per capita insuficiente.

    Há outra disciplina acadêmica à qual os presidentes talvez não deem ouvidos, mas que pode, na realidade, contribuir mais para explicar o que vem dando errado nos últimos anos nos Estados Unidos e em outros países avançados.

    Os sociólogos passam a vida tentando entender o funcionamento das sociedades. Alguns dos problemas mais prementes em grandes áreas dos Estados Unidos talvez se manifestem nos dados econômicos mas também se evidenciam em altos níveis de depressão, dependência de drogas e morte precoce. Ou seja, a economia é apenas um dos fatores a se levar em conta em um problema social maior. Talvez valha a pena ouvir as pessoas que estudam a sociedade.

    “Quando os economistas conseguem a atenção das pessoas em Washington, convencem-nas de que as únicas perguntas que merecem ser feitas são aquelas que economistas sabem responder”, disse Michèle Lamont, socióloga de Harvard e presidente da Associação Americana de Sociologia. “Não digo isso para desmerecer o que eles fazem, apenas para observar que muitas das respostas que dão são altamente parciais.”

    É A SOCIOLOGIA

    Em 1967, o senador Walter Mondale chegou a propor a criação de um Conselho de Assessores Sociológicos da Casa Branca, que ele visualizou como algo que complementaria o Conselho de Assessores Econômicos. O órgão nunca chegou a ser criado.

    A título de pequena correção, analisei algumas pesquisas sociológicas especialmente relevantes para alguns dos maiores problemas enfrentados hoje pelas comunidades dos países avançados para tentar entender o tipo de lições que a sociologia pode oferecer.

    Para começar, enquanto economistas tendem a enxergar um emprego como uma troca direta de trabalho por dinheiro, muitas pesquisas sociológicas mostram como o trabalho está vinculado ao senso de identidade e de objetivo na vida.

    “O salário é muito importante, porque evidentemente ajuda as pessoas a viver e a sustentar suas famílias”, disse Herbert Gans, professor emérito de sociologia na universidade Columbia. “Mas a sociologia nos revela que o desemprego não se limita à perda do salário –é a perda da dignidade, do respeito por si mesmo, da sensação de que se é útil e de todas as coisas que deixam o ser humano feliz e capaz de funcionar bem.”

    Essa observação parece ser duplamente correta no caso dos Estados Unidos. O sociólogo Ofer Sharone, da Universidade do Massachusetts em Amherst, estudou profissionais de colarinho branco desempregados nos EUA e descobriu que eles enxergam sua capacidade de conseguir um emprego como reflexo de seu valor pessoal, e não como uma questão arbitrária.

    Por isso mesmo eles lidam muito mal com a rejeição, culpando a si mesmos quando perdem o emprego e, em muitos casos, desistem de procurar outro. Já em Israel, profissionais semelhantes desempregados enxergam a obtenção de um emprego um pouco como ganhar na loteria; quando se candidatam a um emprego e são rejeitados, não se desanimam tanto.

    Parece plausível que isso ajude a explicar por que tantos americanos que perderam seus empregos na recessão de 2008 não tenham voltado à força de trabalho, apesar de o mercado ter melhorado. Sharone está trabalhando com orientadores de carreira, procurando aproveitar as conclusões de seu estudo para ajudar desempregados de longo prazo.

    Jennifer M. Silva, da Universidade Bucknell, estudou adultos jovens de classe trabalhadora e encontrou entre eles um sentimento profundo de insegurança econômica. Esses jovens sentem que conquistas e episódios que tradicionalmente assinalam a chegada à idade adulta –a compra da casa própria, o casamento, um emprego estável– estão fora de seu alcance.

    Juntando essas lições, podemos imaginar que a nostalgia econômica que moveu a campanha presidencial de Donald Trump foi alimentada não tanto pela perda da renda garantida pelos empregos manufatureiros que desapareceram. Na verdade, é possível que a economia industrial proporcionasse aos homens de colarinho azul um senso de identidade e objetivo na vida que eles não encontram na economia moderna, movida pelo setor de serviços.

    A sociologia também traz lições importantes sobre a pobreza, algo que a economia por si só não oferece. O livro “Evicted” (Despejado), do sociólogo Matthew Desmond, de Harvard, mostra como o risco eterno de perder a casa própria gera insegurança e depressão entre americanos pobres.

    Existe uma tendência em pensar a política habitacional apenas como uma questão de quais subsídios serão entregues a quem e quais incentivos devem ser oferecidos para estimular os bancos a conceder empréstimos em bairros pobres. Tudo isso é importante, é claro, mas não modifica realmente o problema avassalador da insegurança que afeta milhões de pessoas.

    E há um conjunto grande de estudos sociológicos sobre a questão da estigmatização, incluindo a estigmatização dos pobres e membros de minorias raciais. Os estudos deixam claro que essas questões envolvem problemas mais difíceis de resolver do que simplesmente eliminar a discriminação.

    Um exemplo: uma coisa é proibir a discriminação habitacional com base na raça. Mas, se corretores imobiliários e interessados em vender seus imóveis evitam sutilmente vender para compradores de minorias, o efeito pode ser o mesmo. O professor Gans, da Universidade Columbia, argumenta há décadas que a estigmatização de americanos pobres enseja uma pobreza persistente e arraigada.

    Se existisse um Conselho de Assessoria Sociológica da Casa Branca, um de seus grandes desafios seria converter algumas dessas descobertas em propostas políticas concretas que pudessem ajudar. A hegemonia da economia no traçado de políticas públicas se deve ao fato de que os economistas tendem a passar mais tempo analisando medidas legislativas e regulatórias específicas.

    E procurar resolver problemas sociais é um esforço mais complexo do que procurar melhorar resultados econômicos. É relativamente evidente como uma modificação na política fiscal ou um ajuste da taxas de juros pode fazer a economia crescer mais ou menos. É menos evidente o que o governo pode fazer –se é que pode fazer alguma coisa– para modificar forças movidas pela psique humana.

    Mas existe o risco de um ciclo vicioso estar em ação. “Quando ninguém pede nossos conselhos, não existe incentivo para que a sociologia seja usada para influenciar a política pública”, disse Gans.

    Pode ser verdade que as lições sobre identidade e comunidade não se prestam imediatamente a influenciar os planos do governo. Mas os responsáveis por traçar as políticas públicas certamente se beneficiariam de uma compreensão melhor dessas lições.

    *Por Neil Irwin do “New York Times”. Tradução de Clara Allain e publicado pela Folha de São Paulo.

  • “Fala aos moços”,texto jovem de Darcy Ribeiro

    “Fala aos moços”,texto jovem de Darcy Ribeiro

    Darcy Ribeiro para o jovem

     

    Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas.

    Tudo que diz respeito ao humano, suas vidas, suas criações, me importam supremamente. Dentro do humano, o povo brasileiro, seu destino é o que mais me mobiliza. Nele, a ínvia indianidade brasileira, que consegue milagrosamente sobreviver. Mas, sobretudo, a massa de gente nossa, ainda em fusão, esforçando-se para florescer numa nova civilização tropical, mestiça e alegre.

     

    juventude

    Acho que aprendi isso, ainda muito jovem, com os antigos comunistas.Imbatíveis em sua predisposição generosa de se oferecerem à luta, por qualquer causa justa, sem mais querer que o bem geral. Estou certo de que a dignidade, e até o gozo de viver que tenho, me vêm dessa atitude básica de combatente de causas impessoais. Tanto, que me atrevo a recomendar duas coisas aos jovens de hoje.

     

     

    Primeiro, que não respeitem seus pais, porque estão recebendo, como herança, um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro. Segundo, que não se deixem subornar por pequenas vantagens em carreirinhas burocráticas ou empresariais pelo dinheirinho ou dinheirão que poderiam render.

    Mais vale ser um militante cruzado, acho eu.

    Vejo os jovens de hoje esvaziados de juventude, enquanto flama, combatividade e indignação. Deserdados do sentimento juvenil de solidariedade humana e de patriotismo e de orgulho por nosso povo.

    Incapacitados para assumir as carências dos brasileiros como defeitos próprios e sanáveis de todos nós. Ignorantes de que o atraso, a fome e a pobreza só existem e persistem, entre nós, porque são lucrativos para uma elite infecunda e cobiçosa de patrões medíocres e de políticos corruptos.

    Afortunadamente, podemos nos orgulhar de muitos jovens brasileiros que são o sémen de nosso povo sofredor. Sem eles, nossa Pátria estaria perdida. É indispensável, porém, ganhar a totalidade da juventude brasileira para si mesma e para o Brasil. O dano maior que nos fez a ditadura militar, perseguindo, torturando e assassinando aos jovens mais ardentemente combativos da última geração, foi difundir o medo, promover a indiferença e a apatia. Aquilo de que o Brasil mais necessita, hoje, é de uma juventude iracunda, que se encha de indignação contra tanta dor e tanta miséria. Uma juventude que não abdique de sua missão política de cidadãos responsáveis pelo destino do Brasil, porque sua ausência é imediatamente ocupada pela canalha.

    Talvez eu veja tanto desencantamento, onde o que há é apenas o normal das coisas ou o sentimento do mundo que corresponde às novas gerações. Talvez seja assim, mas isso me desgosta muito. Desgosta, principalmente, porque sinto no fundo do peito que é obra da ditadura militar tamanha juventude abúlica, despolitizada e desinteressada de qualquer coisa que não corresponda ao imediatismo de seus interesses pessoais. É por isso que não me canso de praguejar e xingar, exaltado, dizendo e repetindo obviedades.

    Sobretudo, quando falo à gente jovem em pregações sobre valores que considero fundamentais e que não ressoam neles como eu quisera.

    Primeiro de tudo, o sentimento profundo de que esse nosso paísão descomunal e esse povão multitudinário, que temos e somos, não nos caiu ao acaso, nem nos veio de graça. É fruto e produto de séculos de lutas e sacrifícios de incontáveis gerações. O território brasileiro é do tamanho que é graças à obsessão portuguesa de fronteira, impressa neles por um milênio de resistência, para não serem absorvidos pela Espanha, como ocorreu com todos os outros povos ibéricos. Desde os primeiros dias de nosso fazimento estava o lusitano preocupadíssimo em marcar posses, gastando nesse esforço gerações de índios e caboclos que nem podiam compreender que nos faziam.

    Meu apego apaixonado pela unidade nacional começa pela preservação desse território como a base física em que nosso povo viverá seu destino. Encho-me da mais furiosa indignação contra quem quer que manifeste qualquer tendência separatista. Acho até que não poderia nunca ser um ditador, porque mandaria fuzilar quem revelasse tais pendores.
    Outro valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é o sentimento de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de nosso povo, que custou a vida e a felicidade de tantos milhões de índios caçados nas matas e de negros trazidos de África, para serem desgastados no moinho brasileiro de gastar gente. Nós viemos dos zés-ninguém gerados pela índia prenhada pelo invasor ou pela negra coberta pelo amo ou pelo feitor. Aqueles caboclos e mulatos, já não sendo índios nem africanos e não sendo também admitidos como europeus, caíram na ninguendade. A partir desta carência de identificação étnica é que plasmaram nossa identidade de brasileiros.

    Fizeram-no um século depois, quando, através dos insurgentes mineiros, tomamos consciência de nós brasileiros como um povo em si, aspirando existir para si.

    Surgimos, portanto, como um produto “inesperado e indesejado do empreendimento colonial que só pretendia ser uma feitoria. A empresa Brasil se destinava era a prover o açúcar de adoçar boca de europeu, o ouro de enricá-los e, depois, minerais e quantidades de gêneros de exportação.

    Éramos, ainda somos, um proletariado externo aqui posto para servir ao mercado mundial. Criá-lo foi a façanha e a glória das classes dominantes brasileiras, cujo empenho maior consistia, e ainda consiste, em nos manter nessa condição.

    Foi sobre esse Povo-Nação, já constituído e levado à independência com milhões de caboclos e mulatos, que se derramou a avalancha européia quando seus trabalhadores se tornaram descartáveis e disponíveis para a exportação como imigrantes. Os melhores deles se identificaram com o povo antigo da terra e até se tornaram indistinguíveis de nós, por sua mentalidade, língua, cultura e identificação nacional. Ajudaram substancialmente a modernizar o país e a fazê-lo progredir, gerando uma prosperidade ampliada, a inda que muito restrita, e que beneficiou principalmente aos recém-vindos.

    É de lamentar, porém, que vez por outra surja, entre eles, uns idiotinhas alegando orgulhos de estrangeiridade. O fazem como se isso fosse um valor, mas principalmente porque estão predispostos seja a quebrar a unidade nacional em razão de eventuais vantagens regionais, seja a retornarem eles mesmos para outras terras, como fizeram seus avós. Afortunadamente, são uns poucos. Com um pito se acomodam e se comportam.

    Compreendem, afinal, que não há nesse mundo glória maior que participar da criação, aqui, da civilização bela e justa que havemos de ser.

    Tal como ocorreu com nossos antepassados, hoje, o Brasil é nossa tarefa, essencialmente de vocês, meus jovens. A história está a exigir de nós que enfrentemos alguns desafios cruciais que, em vão, tentamos superar há décadas. Primeiro que tudo, reformar nossa institucionalidade para criar aqui uma sociedade de economia nacional e socialmente responsável, a fim de alcançarmos uma prosperidade generalizada a todos os brasileiros. O caminho para isso é desmonopolizar a propriedade da terra, tirando-a das mãos de uma minoria estéril de latifundiários que não plantam nem deixam plantar. Eles são responsáveis pelo êxodo rural e o crescimento caótico de nossas cidades e, conseqüentemente, pela Fome do povo brasileiro. Fome absolutamente desnecessária, que só existe e só se amplia porque se mantém uma ordem social e um modelo econômico compostos para enriquecer os ricos, com total desprezo pelos direitos e necessidades do povo.

    Simultaneamente, teremos de derrubar o corpo de interesses que nos quer manter atados, servilmente, ao mercado mundial, exigindo privilégios aos estrangeiros e a privatização das empresas que dão ser e substância à economia nacional, para manter o Brasil como o paraíso dos banqueiros. Não se trata de criar aqui nenhuma economia autárquica, mesmo porque nascemos no mercado mundial e só nele sobreviveremos.

    Trata-se é de deixar de ser um reles proletariado externo para ser um povo que exista para si mesmo, ocupado primacialmente em promover sua própria felicidade.

    Essas lutas só podem ser travadas com chance de vitória desmontando a ordem política e o sistema econômico vigentes. Seu objetivo expresso é preservar o latifúndio improdutivo e aprofundar a dependência externa para manter uma elite rural esfomeadora e enriquecer um empresariado urbano servil a interesses alheios. Todos eles estão contentes com o Brasil tal qual é. Se não anularmos seu poderio, eles farão do Brasil do futuro o país que corresponda aos interesses dos países que nos exploram.

    Nestas singelas proposições se condensa para mim o que é substancial da ideologia política que faz dos brasileiros, brasileiros dignos. Tais são o zelo pela unidade nacional, o orgulho de nossa identidade de povo que se fez a si mesmo pela mestiçagem da carne e do espírito; a implantação de uma sociedade democrática onde imperem o direito e a justiça para todos; a democratização do acesso à terra para quem nela queira morar ou cultivar; a criação de uma economia industrial autônoma como o são todas as nações desenvolvidas.

    Eis o que peço a cada jovem brasileiro: repense estas ideias, reavalie estes sentimentos e assuma, afinal, uma posição clara e agressiva no quadro político brasileiro.
    Darcy Ribeiro, agosto/94.

  • Você apoia justiceiros? Então quem defende bandido é você

    Você apoia justiceiros? Então quem defende bandido é você

    O fenômeno social dos linchamentos, da justiça popular não é novidade no país. Estes fatos tem sido cada vez mais frequentes e têm tomam dimensões cada vez maiores, potencializados pelo alcance que as novas ferramentas comunicacionais proporcionam.

    Os linchamentos já vitimaram muitos inocentes e mesmo com isso continuam sendo praticado e encorajado pelos partidários da justiça popular. Tal segmento acusa os que condenam a justiça popular de serem defensores de bandido, curiosamente o que ocorre é o contrário. Os apologistas da justiça popular reificam os criminosos a despeito das acusações imputadas aos partidários da justiça formal.

    Antes de argumentar em torno do que é justiça popular ou justiça com as próprias mãos é preciso diferenciar legítima defesa de justiça com as prórias mãos, assim afastaremos os espantalhos. Legítima defesa segundo o Art. 25 nosso código penal. Desse modo,

    Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

    Portanto, não há legítima defesa quando um suspeito está rendido e não representa risco. Já justiça com as próprias mãos é quando o indivíduo se vale do seu conceito de justiça pra estabelecer um julgamento e pena conforme suas convicções individuais. Justiça é um conceito que não é da seara individual, este pertence a uma coletividade, resguardado o direito à defesa e contraditório. A justiça com as próprias mãos é considerada crime pelo código penal brasileiro no seu Art 345.

    “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.”

    Em suma, os justiceiros são pessoas que se valem de uma situação oportuna e que, legitimados socialmente pela sede de vingança, se valem de tal clamor para exercitar seu sadismo e cometer crimes, alguns dos quais em alguns casos ainda mais graves do que dizem coibir. Os apologistas da justiça popular, contraditoriamente, defendem que criminosos se valam de seu poder para supostamente coibir crimes. Portanto, os apologistas da justiça com as próprias mãos defendem criminosos, os justiceiros; ao contrário dos legalistas que defendem que cada um seja julgado e, caso condenado, cumpra com seus crimes na forma da Lei. Além disso, como se não bastasse defender bandido os apologistas também comentem crime,  Art. 287 do Código Penal :

    Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

    Para ilustrar bem essa situação citemos o caso de justiça com as próprias mãos cujo articulador foi um tatuador. Analisemos a seguinte ordem dos fatos:

    1- Um adolescente com transtornos mentais invade a casa do vizinho.
    2- Outras pessoas imaginam tratar-se de um assalto.
    3- Um tatuador e um comparsa rende o suspeito e se vale de sua força pra tatuar no invasor “sou ladrão e vacilão”, filmam e fazem chacota do suspeito.
    4- O garoto além de problemas mentais vai ter que carregar o estigma para o  resto da vida porque os justiceiros se valeram do clamor popular pra se colocarem acima da lei.
    5- O suposto invasor está livre porque não conseguiram sequer provar o crime. O dono da bicicleta que seria roubada repudia a ação.
    6- Os justiceiros são presos pela polícia e vão responder criminalmente pela ação. Frustraram um crime, praticando outro crime ainda mais grave, tortura – inafiançável e imprescritível pelo nosso código penal. Um participantes da ação que filmou o adolescente, Ronildo Moreira da Araújo, já havia sido condenado por roubo.

    Neste episódio fica claro que a situação de instabilidade social parece legitimar atos de justiça popular. Em muitos casos os justiceiros se valem dessa legitimidade para cometer crimes sob pretexto de coibir outros crimes, contraditoriamente.  Nesse e em muitos casos os crimes cometidos pelos justiceiros são ainda piores. Além disso, tais justiceiros tem apoio popular de pessoas que dizem repudiar quem defende bandido, contraditoriamente, são eles os principais defensores dos muitos bandidosque se escondem sob alcunha de justiceiros.

    Todos os suspeitos de serem bandidos merecem um julgamento na forma da Lei, tanto os que se intitulam justiceiro como os outros. Isso não é defender bandido, é defender justiça. Defender bandido  é defender quem quer fazer justiça com as próprias mãos.

    Referências:

    BRASIL. Código de processo penal (1941). Código de processo penal.

    MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015

  • Vidrocracia brasileira: Reflexões sobre a modernidade de vidro no Brasil

    Vidrocracia brasileira: Reflexões sobre a modernidade de vidro no Brasil

    Por Roniel Sampaio Silva

    Estamos vivendo em tempos difíceis de explicar. Há quem diga que estamos vivendo numa pós-modernidade (LYOTARD, 2008), outros numa modernidade tardia (GIDDENS, 1991) e outros numa modernidade líquida (BAUMAN,2001 ). No Brasil estamos vivendo em uma modernidade de vidro, mais precisamente uma vidrocracia. Explico. Não quero me propor a criar um conceito e sim fazer algumas provocações sociológicas por meio do vidro como metáfora.

    Estratégia

    Antes de falar de traçar uma metáfora da nossa sociedade por meio do vidro preciso falar especificamente o que é esse artefato. O vidro é fabricado pela fusão de minerais como sílica, barrilha e calcário. O resultado dessa combinação é o precioso material transparente cujo uso é massificado desde a Revolução Industrial, período no qual passou a ser produzido em larga escala, apesar do domínio da sua técnica de produção ser milenar.

    Na década de 1950 uma técnica de fabricação chamada float permitiu produzir tal material de modo que este flutue sob o estanho derretido, dando maior produtividade e precisão. Desde então o material passou a ser mais utilizado ainda, sua aplicação deu-se em construções, dispositivos, aplicações médicas e em vários utensílios que fazem parte do nosso cotidiano, inclusive das nossas instituições políticas e relações sociais, assumindo a forma de “Modernidade de vidro”.

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    Juntamente com a massificação dessa tecnologia nossas relações sociais cada vez mais passam a ser mediadas pelo vidro dos televisores, pelos seguidos pelo vidro dos computadores, até chegar nas telas dos smartphones. A catedral de vidro por excelência é o shopping que exibe os produtos a serem comprados, seja um shopping físico ou virtual. Os vidros dos óculos de leitura sob a superfícies de papel estão cada vez mais em desuso em função dos dispositivos luminosos, cujo conteúdo é tão fragmentado quanto o próprio vidro estilhaçado.

    Vale lembrar que o vidro carrega uma ilusão. Uma de suas propriedades é a refração, mudança de trajetória da luz que ocasiona a manipulação da imagem, apresentando uma versão distorcida de realidade. Desta forma, a luz banker001(conhecimento) é igualmente manipulada e cria uma nossa forma ideológica no sentido marxiano (2007), tal metáfora cai bem ao se falar de indústria cultural e ideologia, fato que caracteriza nosso tempo como modernidade de vidro.

    Pawel Kuczynski
    Satirical art Pawel Kuczynski

    O vidro também é utilizado como matéria prima de dispositivos eletrônicos que emitem luzes sons e que tem como finalidade manter o cidadão “vidrado na telinha”. A lâmina d’agua deixou a base do narcisismo, dando lugar ao produto da liga de minerais. Talvez o vidro exemplifique bem a fragilidade das nossas relações. Tais fragilidades das relações de coletividade da modernidade líquida teorizada por Bauman pode ser comparada aos estilhaços de vidro que tem dificuldade de se aglutinar para formar uma vidraçaria (coletividade). A não ser é claro que haja muita energia necessária para que haja um salto de forma e se crie um novo arranjo.

    O resultado das relações sociais mediadas pela telinha são tão cortantes como o vidro uma vez que relações sociais mediadas por esses artefatos vitrais tendem a ser mais agressivas do que presenciais. O vidro é uma faca de dois gumes. A mesma lâmina que serve para integrar pessoas geograficamente dispersa é um meio que intensifica os conflitos, maximizando preconceito e intolerância.

    homem com vidro quebrado da bebida 28259902

     

    A aplicação dessa tecnologia vitral é ambivalente e contraditória. Ao tempo em que ela contribui para publicização transparente da nossa privacidade, esta não aplica a mesma transparência para os governos. Ao contrário do que deveria acontecer, as ações governamentais perecem ser confeccionadas num tipo de vidro específico cujo material não tem a mesma transparência e limpidez que expõe a nossa vida privada. Isso cria um fenômeno social curioso. A transparência da nossa vida privada parece estar tornando-se inversamente proporcional à transparência dos governos. Na modernidade de vidro a transparência do material muda conforme os interesses de quem controla a produção dos vidros que ora pode ser mais ou menos transparente, dependendo da finalidade e do interesse.

    Na modernidade de vidro o principal produto tem aplicações muito versáteis, ele não é apenas parte constituinte do nosso cotidiano material e das nossas relações sociais, ele parece está assumindo um papel de relevo frente à política. Como o vidro é um produto de diversas aplicações esse passou a ser empregado também na nossa democracia, igualmente frágil e cortante. O vidro tornou-se um objeto de contemplação cujo valor é maior que as vidas. Basta acompanhar as manifestações e perceber que as vidraças e vitrines geram mais comoção que os hematomas e mortes oriundos nas manifestações.

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    É nesse sentido que o vidro tem tomado cada vez mais importância, deixando de ser um simples artefato para galgar patamares inimagináveis, tornando-se o artefato representativo por excelência da nossa modernidade, refletindo nossas relações sociais e políticas de uma forma cristalina.

    Referências
    BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
    GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
    LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
    MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.