A mercantilização da Educação e a EaD

Mercantilização da Educação
Mercantilização da Educação

A mercantilização da Educação e a EaD

Cristiano das Neves Bodart

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A mercantilização da educação vem transformando as relações entre docentes e estudantes, bem como entre o “aprendente” e a aprendizagem. Essas relações evoluíram para uma interação entre prestador de serviço e cliente. O estudante passou a ser o consumidor e os cursos o produto. O professor é o indivíduo que, nessa relação, se situa entre a empresa que quer vender um diploma e o cliente que quer comprar. Nesse novo paradigma, “o cliente sempre tem razão”, o que gera implicações profundas no sistema educacional, na atuação docente, na relação professor-estudante e no rendimento educacional. A relação entre estudante e educação também vem sendo modificada, o conhecimento torna-se uma mercadoria que está “a um esticar das mãos ao bolso”.

A mercantilização da Educação é resultante de um processo mais amplo na sociedade, onde tudo passa a ser visto como “oportunidade comercial”. Trata-se da expansão do neoliberalismo para as fronteiras dos sistemas educacionais, tendência que se aprofundou ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e sua “política gerencial”. O discurso da liberdade comercial e a busca por reduzir os investimentos públicos em Educação, alinharam-se à necessidade [legítima] de ampliar a oferta do ensino superior no Brasil.

A “oportunidade comercial” tornou-se ainda mais evidente nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, quando passou a direcionar, via Programa Universidade Para Todos (PROUNI), recursos públicos para faculdades privadas. De lá para cá o Ministério da Educação (MEC) passou a autorizar, quase que de forma indiscriminada, cursos na modalidade conhecida como EaD (Educação a Distância). Paralelamente, não se mostrou efetivo no “gerenciamento” (fiscalização) desses cursos. Dados do Censo da Educação Superior de 2021 revelam uma expansão dos cursos EaD no Brasil de 474% em uma década. Por outro lado, no mesmo período, a quantidade de ingressantes em cursos presenciais diminuiu em 23,4%. Em 2021, mais de 3,7 milhões estudantes estavam cursando a graduação na modalidade EaD, o que representa 41,4% do total das matrículas no ensino superior.

Talvez – ainda não estou certo disso –, o problema não esteja na modalidade, mas em quem e como os cursos são ofertados. No caso brasileiro, maior parte da oferta ocorre por meio de faculdades privadas, cujas instalações muitos de seus estudantes sequer conhecerão. Nesse contexto, a experiência da vida universitária é resignificada e pouco marcante na trajetória pessoal dos estudantes.

Em se tratando de formação de professores, em 2021, 61% das matrículas eram em cursos EaD, o que torna a situação ainda mais preocupante pelo papel desses profissionais na formação da sociedade. Saber que formadores de opinião, de cidadãos e de profissionais passaram por uma formação duvidosa é um problema a ser enfrentado.

A proliferação dos cursos a distância (EaD) de qualidade duvidosa, embora tenha possibilitado um maior acesso ao ensino superior, este acesso é, em sua maioria, problemático. A mercantilização da educação cria um abismo entre as classes sociais. Os mais pobres compram os cursos crendo estar sendo incluídos no “mercado”, quando na verdade o “pacote” adquirido é personalizado para a sua classe, resultando em uma precarizada ascensão social [quando isso ocorre].

Muitas vezes, isso resultaram na precarização da formação acadêmica e no enriquecimento de conglomerados educacionais privados, que quase sempre priorizam o lucro em detrimento da qualidade do ensino ofertado. A expansão não precisa ser por meio de cursos EaD, bastando para isso uma vontade política para investir em ampliação da oferta no sistema público e em programa de permanência estudantil.

Dados da avaliação Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) do MEC de 2021 referentes aos cursos de formação de professores indicam que somente 2,3% dos cursos a distância avaliados alcançaram a nota máxima. Entre os cursos presenciais, privados e públicos, o índice ficou em 6,2%. Segundo essa mesma avaliação, um contingente enorme de cursos EaD não chegou a alcançar a nota 3, a mínima exigida pelo MEC: 47,8% das graduações EaD obtiveram notas 1 e 2, pontuação que, em teoria, competiria ao MEC desativá-los.

Os cursos a distância transformaram os professores em tutores, desvalorizando o papel do docente, o que impacta em sua remuneração. Os tutores têm pouca ou nenhuma autonomia para personalizar o ensino que é padronizado, requerendo deles apenas que oriente os estudantes sobre como acessar a plataforma. Isso reduz a experiência de aprendizado, desmotiva os professores qualificados e permite que docentes menos preparados atuem nesses cursos.

Outro aspecto preocupante é que, com os estudantes sendo tratados como clientes, muitas vezes a conclusão do curso não está vinculada ao seu desempenho acadêmico, mas ao pagamento de suas mensalidades. Isso cria um ambiente em favor do lucro institucional e da conquista de um “canudo” quase vazio.

O acesso “de qualquer forma” ao ensino superior não será o caminho para reduzir nossas mazelas, nem mesmo tornar a sociedade brasileira mais competitiva no mercado internacional. É importante ampliar a oferta presencial em instituições públicas. Precisamos dar vários passos atrás em relação ao processo de mercantilização da educação. Educação não pode ser mercadoria. Também não podemos deixar que a oferta seja acessível aos mais pobres ou aos que residem distantes de polos educacionais. Não é necessário “inventar a roda”: retomar e aprimorar programas como o “Reestruturação e Expansão das Universidades Federais” (Reuni) é um dos caminhos possíveis. Os resultados foram positivos (Bodart e Tavares, 2018) e, portanto, precisam ser considerados.

Precisamos frear a mercantilização da educação para evitar o aprofundamento de relações entre prestador de serviço e cliente. Carecemos garantir que a relação entre estudante e educação não tenha como mediador “o bolso”.

Referências

BODART, Cristiano das Neves; TAVARES, Caio dos Santos. Programas de fomento a expansão do Ensino Superior e oferta de cursos de Ciências Sociais no Brasil (1999-2017). Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais, v. 2, n. 1, pp.07–29. 2018.

INEP. Censo da Educação Superior de 2021. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2021.

INEP. Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2021.

 

 

Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. A mercantilização da Educação e a EaD. Blog Café com Sociologia. out. 2023. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/a-mercantilizacao-da-educacao-e-a-ead/ 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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