Cena política moderna na sociedade capitalista: as opacidades e os interesses de classe

resenha cenas políticas - boito
Resenha do capítulo “Cena política e interesses de classe na sociedade capitalista: a análise de Marx”, da obra “Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos” (2007)

Por Lucas Barroso[1]

Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos (2007)

Compondo o sexto capítulo de Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos (2007), o texto “Cena política e interesses de classe na sociedade capitalista: a análise de Marx” procura, a partir da análise científica, entender as opacidades de classe contidas nas cenas políticas das sociedades modernas. Apresentado inicialmente no colóquio 150 Anos da obra O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (2011) de Karl Marx (1818-1883), organizado pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em novembro de 2002, o texto foi publicado originalmente no número décimo quinto da revista Crítica Marxista e foi escrito por Armando Boito Júnior, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de Ciência Política na Unicamp.

Partindo do seu objetivo, Boito (2007) inicia o capítulo destacando a existência de uma dicotomia entre aparência e essência no trabalho teórico de Marx (1984; 1994; 2011), assim como também está presente na história milenar da filosofia e da ciência. Sobre isso, o autor destaca a presença das realidades aparentes e essenciais nas análises marxianas dos processos de produção capitalista. Nessa direção, a questão da liberdade ocuparia espaço central, uma vez que, por ser juridicamente livre, o trabalhador não é escravo ou servo, mas está longe de ser capaz de usufruir de sua completa liberdade, uma vez que é um subalterno, no sentido gramsciano, que deve obediência irrestrita ao funcionário-mor do capital, isto é, ao capitalista. Nesse contexto, proclamar a liberdade política proletária não seria nada mais do que uma mera alusão a ela, no sentido de Althusser, o que iria gerar uma consequente ilusão ideológica, uma vez que o operariado estaria intencionalmente desorganizado nas cenas políticas (BOITO, 2007, p. 137-138).

Não obstante, antes de continuarmos a análise do conteúdo do texto, é importante entendermos a própria definição de “cena política” mobilizada pelo autor. Como salientado por Boito (2007), enquanto realidade superficial que dificulta o acesso aos verdadeiros conflitos de classes, o conceito de “cena política” estaria relacionado ao “espaço de luta entre partidos e organizações políticas, como uma espécie de superestrutura da luta de classes e de frações de classe, que formam aquilo que poderíamos denominar a base socioeconômica da cena política” (BOITO, 2007, p. 139). Possuindo especificidades que a divergem de instituições representativas das sociedades pré-capitalistas, como é o caso do Senado romano e dos Estados Gerais da França, a cena política moderna advém das características gerais do próprio Estado capitalista, que pressupõe a existência inovadora de uma aparência universalista que possa garantir as trocas no sistema capitalista burguês. Assim, por esse motivo, o anonimato de classes e de interesses de classes acaba sendo peça fundamental de partidos burgueses e pequeno-burgueses, o que acaba cumprindo a dupla função estratégica de organizar a classe dominante e desorganizar o operariado, como é analisado por Boito (2007, p. 140).

Nesse sentido, partindo dessa definição, o autor, a partir de Marx (1984; 2011), analisa os dois planos em que é possível detectar as relações de interesse de classes na cena política. Como destacado por Boito (2007, p. 141), para detectar as relações de representação de interesses, Karl Marx, em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (2011) e no Lutas de classes na França (1984), opera em dois planos: o objetivo e o subjetivo. O primeiro procura entender as correspondências práticas entre os programas dos partidos políticos e os interesses de classe. Já o segundo, tenta entender como se dá a identificação subjetiva entre os partidos e as classes. Em relação a esse último, em O Dezoito Brumário (2011), Marx ainda propõe dois tipos de identificação subjetiva: a possibilidade de retorno idealizado a um passado mítico, como acontece com o apoio do campesinato francês a Luís Bonaparte; e a própria existência da pequena burguesia, enquanto classe intermediária entre os pólos produtivos.

Visando exemplificar tais planos e a existência de interesses de classe na política, o autor, a partir de O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (2011) de Marx, utiliza como contextualização as disputas políticas entre legitimistas e orleanistas no pós-Revolução Francesa (1789-1798). Como mencionado por Boito (2007), sobre as divergências entre a Casa dos Bourbons e a Casa de Orleans no pré-golpe na França, respectivamente, Marx analisa a monarquia francesa e afirma que o reinado de Carlos X (1757-1836), enquanto componente da família dos Bourbons, governava segundo os interesses dos proprietários rurais e Luis Felipe I (1773-1850), da família dos Orleans, segundo os burgueses. Nesse sentido, enquanto o primeiro adotou medidas de restauração, como indenização pelas perdas oriundas da Revolução, supressão da liberdade de imprensa, supressão do direito ao voto para comerciantes e industriais, o segundo implementou uma reforma eleitoral para tornar burgueses eleitores da câmara dos deputados, mas não pequenos burgueses, camponeses e operários. Assim, como dito inicialmente por Marx (2011) e resgatado posteriormente por Boito (2007, p. 145-147), havia uma dicotomia irreconciliável entre os interesses da propriedade de terra e do latifúndio, ramo defendido pelos legitimistas, e do capital (financeiro, comercial e industrial), representado pelos orleanistas. Dessa forma, mais do que pretensões familiares de duas dinastias rivais, o que os dividiam verdadeiramente eram interesses econômicos conflitantes e, por esse motivo, propostas de fusão política das famílias eram interpretações aparentes, falhas e desconexas da realidade profunda.

Desse modo, a partir desse exemplo histórico, Boito (2007, p. 140-148), ao longo do seu texto, destaca que, em oposição às aparências da ciência política vulgar, a análise política marxista da essência das sociedades capitalistas só inicia quando o investigador evidencia os complexos laços que unem a cena política aos interesses econômicos e aos conflitos de classe, como acontecia com as disputas políticas entre legitimistas e orleanistas no pós-Revolução Francesa. Nesse sentido, apenas nomear agentes presentes na cena política e meramente classificar escolas de pensamento e correntes de opinião é permanecer na superfície enganosa do fenômeno. É preciso ir além! É fundamental entender os interesses de classes que os grupos políticos hegemônicos representam, uma vez que o processo de análise da política nas sociedades capitalistas é um trabalho de desmascaramento e desvelamento dos interesses de classe, procedimentos próprios do marxismo.

Por fim, como mencionado pelo autor, a interpretação política de Marx (1984; 2011) diverge de concepções liberais e elitistas da cena política. Esses processos marxistas de desmascaramento e desvelamento dos interesses de classe vai de encontro aos pensadores liberais que concebem a cena política como algo transparente, individualista e dicotômico por natureza, como é o caso de Alexis de Tocqueville (1805-1859), John Stuart Mill (1806-1873) e John Rawls (1921-2002) (BOITO, 2007, p. 148). Além disso, também é divergente dos partidários da teoria das elites, estruturada por Gaetano Mosca (1858-1941), Vilfredo Pareto (1848-1923) e Robert Michels (1873-1936), que entendem que o eleitorado não age racionalmente e nem sequer tem intelecto suficiente para compreender a política, uma vez que as elites o manipulam completamente. Não sendo nem liberal e nem elitista, a concepção de Marx (1984; 2011) é revolucionária, como dito por Boito (2007, p. 149-151) porque, respectivamente, considera a realidade política como superficial e enganosa; e entende a opacidade da cena política como estando relacionada aos interesses de classes e não aos de uma “elite”/“classe política” dotada de interesses exclusivos e próprios, além de vê-la como possivelmente superável, ao contrário do que entendem os partidários da teoria das elites.

REFERÊNCIAS

BOITO, Armando. “Cena política e interesses de classe na sociedade capitalista: a análise de Marx”. In: _________. Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos. São Paulo: UNESP, 2007. cap. 6. p. 137-153.

MARX, Karl. As lutas de classes em França. Lisboa: Edições Avante!, 1984.

MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro 1: O processo de produção do capital. 12.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. v. I e II.

MARX, Karl. O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

 

Nota:

[1] Bacharelando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e licenciando em História pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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