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O erro de desumanizar a Educação: o desastroso projeto da Reforma do Ensino Médio.

Desumanização do currículo

O erro de desumanizar a educação: o desastroso projeto da Reforma do Ensino Médio

Cristiano das Neves Bodart[1]

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Estamos diante da Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017) que traz mais problemas do que soluções para as carências educacionais brasileiras. Dentre muitos outros problemas, há a tendência de fomentar a desumanização da educação.

Talvez o único avanço da “reforma” esteja na ampliação da carga horária total do ensino médio. Contudo, esse possível avanço está sendo “jogado na lata de lixo”, isso por conta da forma como o currículo está sendo pensado e as matrizes de cargas horárias definidas. A ampliação da carga horária total do ensino médio possibilitaria ampliar o número de aulas de disciplinas com carga horária reduzida; mas esse não é o caminho traçado pela “reforma”.

Vale lembrar que a educação formal é o meio criado para transmitir às futuras gerações conhecimentos acumulados de forma qualificada e sistematizada, visando tornar a sociedade de amanhã melhor. Partindo desse ponto, coloco as seguintes perguntas: que tipo de sociedade desejamos para o amanhã? Quais são os maiores problemas da sociedade atual que precisam ser enfrentados? Ambas perguntas deveriam ser bases para o projeto educacional que carecemos.

Não tenho dúvida de que nosso maior problema atual é social, mas especificamente as relações entre indivíduos-indivíduos e indivíduos-natureza. Me refiro à exploração nas relações de trabalho, a má distribuição de renda, a miséria, a ampliação da criminalidade, a intolerância (de todos os tipos), a exploração predatória dos recursos naturais, o negacionismo científico, etc.

Que carecemos de uma reforma no ensino médio não há dúvidas. A questão é: qual reforma? A Lei nº 13.415/2017 não reforma o ensino, antes aprofunda os erros que cometemos nas últimas décadas, assim como coloca de escanteio os avanços conquistados nesse período. Reformar é transformar substancialmente; é mudar a rota. A “Reforma” do Ensino Médio apenas potencializa a execução dos erros que já vinham sendo praticados, tais como, a ideia equivocada de interdisciplinaridade (que afeta negativamente a transmissão de conhecimentos especializados e qualificados das disciplinas), o ensino por competências e habilidades (em detrimento de não focar em conhecimentos sólidos), os itinerários formativos (que reduz as escolhas futuras dos egressos do ensino médio), a criação de componente curricular sem base em área de conhecimento (me refiro ao Projeto de Vida), “bases pedagógicas” gestadas no campo econômico, e a redução da carga horária de disciplinas importantes que “humanizam o pensar”, tais como Artes, História, Geografia, Filosofia e Sociologia. Focarei nesse último ponto.

Uma coisa precisa ser posta: o Brasil continua investindo em “latifúndios educacionais improdutivos”. Por “latifúndios educacionais improdutivos” designo a existência de componentes curriculares que ocupam quase todo o espaço do currículo e que não proporcionaram o retorno esperado, seja nas avaliações de larga escala, seja na formação de uma sociedade melhor, mais justa, democrática, inclusiva e tolerante. Não digo, com isso, que as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática não sejam importantes, pois são. O que afirma é que o “investimento” focado nelas, e desfocado em outras áreas, se mostrou ineficiente para qualificar a educação básica, já que outros saberes acabam não sendo promovidos de forma adequada, já que uma carga horária reduzida dificulta o trabalho docente, como destacaram Bodart (2019) e Pereira e Caes (2019).

No Brasil, desde os anos de 1990, sistematicamente, vem sendo ampliada a carga horária de Língua Português e de Matemática, isso em detrimento da redução de aulas de outros componentes escolares. Desde então, os resultados nas avaliações de grande escala não têm sido aqueles esperados com essa prática. Muito menos conseguimos promover o desenvolvimento de uma sociedade melhor. A “reforma” insiste nesse ponto.

A Lei nº 13.415/2017 e seus desdobramentos (BNCC, novo Pnld e BNC-Formação) nos mostram que, definitivamente não aprendemos com a História (ah, de tivéssemos investido mais nessa ciência!), e os compromissos dos que legislam e regulamentam a educação brasileira hoje é com o “mercado” e não com a sociedade; muito menos com a promoção de justiça, democracia, inclusão e tolerância.

Enquanto não entendermos o sentido de “educação integral” (não confundir com educação de tempo integral) e compreendermos que ao estudar Artes, Geografia, História, Sociologia e Filosofia, por exemplo, nossos estudantes também aprendem a ler e escrever melhor. E não apenas a ler “letras mortas”, mas ler o mundo social, que é vivo. Como destacou Paulo Freire, “não basta saber ler Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho” (1991, p. 18).

Mais uma vez o Brasil caminha para reduzir a carga horária das disciplinas de Ciências Humanas (denominada na reforma como Ciências Humanas e Sociais Aplicadas), quando o contexto atual demanda exatamente o contrário. O momento demanda saberes dessas áreas! Carecemos humanizar o currículo e a sociedade, sob o risco de regredir à fatídica pedagogia tecnicista e às práticas análogas ao período escravocrata e colonial. O que está em jogo é a capacidade de adotar a educação formal como instrumento e estratégia de fomento à produção do pensamento humanizado que colabore para que tenhamos um futuro melhor.

Está em jogo as próximas gerações do Brasil é o projeto de sociedade que queremos nas próximas décadas. A redução da presença das Ciências Humanas no currículo é a negação do direto de compreender o mundo social, de discuti-lo e pensar novos caminhos para a humanidade. Privar o estudante do acesso qualificado da Sociologia escolar, por exemplo, é tirar dele o direito de conhecer a si mesmo e entender suas relações com o mundo e seu papel nele. Vale destacar que uma educação sem vínculos com a realidade social dos estudantes não é significativa, criativa e nem transformadora; antes depositária e reprodutora (FREIRE, 1996).

O que a “reforma” do ensino médio faz promover a desumanização do currículo da educação básica. O exemplo de Auschwitz parece não ter sido suficiente para ensinar que uma educação desumanizada embrutece a sociedade e abre caminho para a desumanização. Estamos diante da tendência de retorno da pedagogia tecnicista em vista de atender os interesses corporativos dos setores e grupos econômicos historicamente privilegiados no Brasil.

A educação deve ser humanizada e humanizadora, sendo o ensino de Artes, Geografia, História, Filosofia e Sociologia fundamentais nesse intento. O que a “reforma” propõe é promover uma educação que desumaniza, que transforma as pessoas em mãos de obras semiqualificadas, substituíveis e não conscientes de seus estados no mundo social; limitados a ler que Eva viu a uva.

É um grande erro desumanizar o currículo da educação básica, sob o risco de desumanizar – ainda mais – a sociedade.

 

Referências bibliográficas

BODART, Cristiano das Neves. Tempo para ensinar: reflexões em torno do reduzido número de aulas de Sociologia no ensino médio. Site da Associação Brasileira e Ensino de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, 2019.

PAULO, Freire. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

PAULO, Freire. Pedagogia da Autonomia. Saberes Necessários à Prática Educativa. 10 ed. São Paulo: Terra e Paz, 1996.

PEREIRA, Alysson Cipriano; CAES, Valdinei. A Sociologia no ensino médio: a diferença da carga horária semanal no Paraná e no Mato Grosso. In: BODART, Cristiano das Neves; SAMPAIO-SILVA, Roniel. O ensino de Sociologia no Brasil, vol.2. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2019.

 

Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. O erro de desumanizar a Educação: o desastroso projeto da Reforma do Ensino Médio. Blog Café com Sociologia. dez. 2021. Disponível em: https://cafecomsociologia.com/desumanizar-reforma-do-ensino-medio/ 

 

Nota:

[1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Vice-presidente da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (Abecs). Editor do Café com Sociologia e coordenador do grupo de pesquisa ConsCiências-Sociais.

 

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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