Notas sobre um texto fundamental: A Bahia crítica de Osmundo Pinho

Por Camillo César Alvarenga*

“Ideia de Bahia, na interpretação que proponho, é um objeto cultural multifacetado, que “existe” apenas nas formas de seu uso, sedimentado e agenciado pelo concerto de um determinado número de agentes identificáveis, sob o ambiente específico e definido do autoritarismo político e da discriminação racial operantes no Brasil por todo esse século. Este uso realiza-se como estrutura cultural de poder, na forma de uma ideologia sofisticada e persuasiva, de apelo popular e organicamente articulada à construção do imaginário nacional. Com uma dinâmica de produção análoga à produção da consciência nacional e baseada em representações construídas de povo e da autenticidade cultural.”  (Osmundo Pinho)

No artigo, “A Bahia no Fundamental – Notas para uma interpretação do discurso ideológico da Baianidade”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1998[1], Osmundo Pinho apresenta uma crítica à “Ideia de Bahia” que não se define entre negro e branco, elegendo essa condição de baiano como um entre lugar interétnico, apoiando-se na noção de mestiçagem.

O autor por seu turno, põe em relevo o papel de “agentes sociais” que atuam na concepção de um senso comum soteropolitano, revelando uma “rede de sentido” para interpretar a auto-representação dos baianos, principalmente se valendo de materiais historiográficos, literários, iconográficos que de alguma maneira instituíram as formas estéticas, políticas e ideológicas da “vida popular autêntica” na Bahia.

Essa Bahia, retratada por Jorge Amado, Carybé, Pierre Verger e, entre outros, Hansen Bahia, traz à luz uma “abstração reificada”, ou seja, num sentido propriamente sociológico e menos filosófico, aponta-se a noção de “comunidade imaginada[2]”. Em função da qual surge um discurso ideologicamente orientado pela articulação entre povo, tradição e cultura face a ideia de nação e suas narrativas de identidade ambígua.

Perpassando um referencial teórico, que vai de Homi Bhabha à Jorge Amado, Pinho nos diz que nesse processo social de construção da identidade da Bahia “um domínio de interesses privados assumem sentido públicos”. O autor afirma o seguinte: v “O discurso de identidade nacional é forçosamente constituído tanto por essa ambiguidade entre interesses privados e cenas públicas, quanto pela produção d’outro significado, condição essencial para a produção de sentido dos discursos” (PINHO, 1998).

O enfrentamento entre “povo e passado” resulta na “nacionalidade imaginada”, quando por sua vez, o binômio “povo e nacionalidade” dá vazão a “dominação política” enquanto lugar de arranjos nos discursos de identidade através de uma “estrutura discursivo-ideológica”.

A ideologia, tomada conceitualmente a partir de Geertz que a define enquanto “mapa de uma realidade social problemática e matriz para criação da consciência coletiva”(Geertz, 1978, p. 192 apud PINHO, 1998). Onde esta, se manifesta na forma de programas de ação política, metáforas explicativas, modelos interpretativos que dão sentido político às contradições socioculturais.

Assim, o entendimento, sobre a identidade nacional, se faz necessário enquanto, um processo de organização das ambiguidades por diversos agentes sociais e instituições num regime de organização política da modernidade, na qual a ideologia supera a noção de mitos, como vista em Levis Strauss. No caso especifico da Bahia, e por generalidade do Brasil, o mito da mestiçagem atua formando estruturas como o “nacional-popular” que reproduzem uma “representação simbólica da nacionalidade”.

No contexto histórico dos anos 30, num período de autoritarismo em que o Estado brasileiro tece a brasilidade, ainda que a partir de uma narrativa heteróclita, reconhecendo um “repertório cultural popular” no qual a hegemonia política e ideológica produz formas estéticas e simbólicas dominantes do ponto de vista das relações raciais e de classe.

Apontando como referencial teórico Hermano Viana e Renato Ortiz, na abordagem de questões como Estado e seus mecanismos, bem como, para discussão de mestiçagem e ideologia, onde reconhece Ortiz no carnaval e no futebol rituais específicos da cultura nacional.

Pode-se apresentar também, neste conjunto, a obra de Jorge Amado que busca também representações culturais sobre o Brasil. Além de fazer referência ao Frederick Jameson com O inconsciente Político (1992), para com isso trazer a tona que todo texto é político, já que, nada existe que não seja histórico e social Osmundo Pinho, permite assim operar a ilação de que a ideologia é a “resolução imaginária de uma contradição empírica”.

A nação, ou neste caso a Bahia, é transposta em personagem coletiva, formada por classes em oposição, que através de uma análise conceitual de uma manifestação narrativa “traduz estruturas fundamentais do ethos nacional” inclusive éticas paralelas e concorrentes “numa fusão satisfatória e criativa” para através das obras de arte, por exemplo, expressar a conversão social operada por um equipamento intelectual como a literatura ou as artes plásticas que demonstram-se enquanto “aparelho de interpretação e definição de uma realidade social cruel e violenta” (PINHO, 1998).

Essa conversão da realidade operada pela arte, no caso posto, conduz a um consenso político para dominação cultural, política e econômica a partir da reprodução e multiplicidade de bens simbólicos negociados no mercado internacional da cultura – indústria fonográfica e turismo, por exemplo.

A sensação hegemônica criada por essa “densa rede cultural” deve-se ao gosto estético que orienta o consumo, ligando ao Mercado noções tipicamente culturais como os mitos de origem e a natureza de um determinado povo. Jorge Amado com Guia de Ruas e Mistérios oferece uma espécie de matriz simbólica de representação da Bahia de Todos os Santos onde a continuidade histórica dos privilégios e desigualdades entre as raças e classes, bem como a reiteração ideológica das práticas e significados garantem legibilidade e reprodução por meio de uma retórica pictórica que consiste em uma “representação invenção”.

Assim os “processos de subjetividade tornados possíveis (plausíveis) por meio do discurso estereotípico”(BAHBA, 1992 apud PINHO, 1998) que num cenário dramático, como na repressão autoritária dos governos brasileiros, seja nos anos 30 ou nos anos pós 64, permitem que o “nacional-popular[3]”, que reuni signos de unidade histórica, política, cultural e ideológica, resgate do passado histórico e cultural das classes populares, ou seja, os excluídos do poder dominante, o cimento para o soerguimento da ideologia de uma nacionalidade inventada. “Na definição do nacional-popular os intelectuais e os artistas teriam um papel fundamental. A ideia de Literatura, entendida como uma arena privilegiada de elaboração desta consciência estético-moral da nação-povo, tem grande ressonância” (PINHO, 1998). De forma que, estes agentes sociais, criam, produzem, inventam uma forma para essa substância amorfa que é a dimensão subjetiva e, mais propriamente, simbólica do povo. Quando pensamos junto com Osmundo sobre Jorge Amado, este escritor que enquanto autor “inscreve” a marca da identidade baiana na cultura nacional, de tal maneira que é inevitável a reprodução da “estrutura cultural de poder” que nega a ideia de Bahia enquanto um “objeto cultural multifacetado”, como nos indica Pinho.

Referências BHABHA, Homi. (1992), “A questão do `outro’: diferença, discriminação e o discurso do colonialismo”, in H.B.de Hollanda (org.), Pós-modernismo e política, Rio de Janeiro, Rocco.

GEERTZ, Clifford. (1978), “A ideologia como sistema cultural”, in C. Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Zahar.        JAMESON, Fredric. (1992), O inconsciente político. A literatura como ato socialmente simbólico. São Paulo, Ática.      ORTIZ, Renato. (1988), A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense.         PINHO, Osmundo S. de Araujo. A Bahia no Fundamental: Notas para uma Interpretação Do Discurso Ideológico Da Baianidade. Rev. bras. Ci. Soc.,  São Paulo,  v. 13, n. 36, fev.  1998 .   Disponível em . acessos em  26  ago.  2013.  https://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998000100007.  *Graduando em Ciências Sociais/UFRBA, e Pesquisador na Fundação Hansen Bahia. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/3835461164143283 [1] PINHO, Osmundo S. de Araujo. A Bahia no Fundamental: Notas para uma Interpretação Do Discurso Ideológico Da Baianidade. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 1998, vol.13, n.36 [citado  2013-08-26] . [2] ANDERSON, B. (1983), Imagined comunities. Londres, New Left Books. [3] GRAMSCI, Antonio. (1978), Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

1 Comment

  1. O símbolo se constrói baseado em sentidos humanos, dos quais fenômenos naturais ou sociais dão sentido a sua existência individual e coletiva. Portanto, o poder simbólico se constitui através da enunciação de seus atores, dos agentes participantes das práticas que são estabelecidas com o contato e ação sobre o mundo!

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