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Ocupação dos estudantes (1969) em pauta: Marcuse contra Adorno

Marcuse contra Adorno

Em sua carta de 1969, Adorno justifica a Marcuse a razão de ter chamado a polícia quando estudantes ameaçaram, em 69, invadir o prédio do instituto no qual lecionava. A resposta de Marcuse é uma defesa da ocupação estudantil.

 

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CARTA DE ADORNO A MARCUSE

Frankfurt am Main, 5 de maio de 1969

Caro Herbert,

Tua carta de 5 de abril, recebida durante minhas curtas férias em Baden-Baden, deixou-me extraordinariamente surpreso e, franqueza contra franqueza, magoado. Como sei muito bem que a controvérsia entre nós só se resolve oralmente, não gostaria de ficar até lá devendo a resposta.
Antes de mais nada, não entendo como a situação mudou decisivamente para ti depois de uma conversa, pois, segundo confirmas expressamente, ela não contradiz em nada minhas informações e não pode conter quase nada de novo. Pelo menos, penso, deverias ter me comunicado algumas divergências no relato e dado a possibilidade de exprimir-me sobre elas. Parece-me realmente impossível formar um juízo sobre a questão à distância de seiscentas milhas. Tu fizeste-o sem nem sequer me ouvir.
A sugestão de não falar aos estudantes nem mesmo num grande espaço público veio anteriormente de ti. Ela correspondia certamente às minhas intenções. Afinal, preciso defender os interesses do Instituto -nosso velho Instituto, Herbert-, e, podes acreditar em mim, esses interesses seriam imediatamente comprometidos por esse circo. A tendência, que se alastra, de cortar as subvenções, se fortaleceria violentamente. Por isso é melhor que tu, se queres discutir com os estudantes à vontade, que o faças inteiramente por tua própria conta e risco, sem envolver o Instituto ou o Seminário. Acredito poder inferir da tua carta que compreendes esta minha reação e que não me guardarás rancor por isso.
Para falar no jargão da Oposição Extraparlamentar, não se deve caluniar abstratamente a polícia. Só posso repetir-te que ela tratou os estudantes de maneira incomparavelmente mais tolerante que estes a mim. Isso ultrapassou todos os limites. Também sou de opinião diferente da tua no que diz respeito a quando se deve chamar a polícia. Recentemente, o sr. Cohn-Bendit disse-me, durante uma discussão numa associação profissional, que eu só teria o direito de procurar a polícia se alguém quisesse espancar-me a pauladas; respondi que então talvez fosse tarde demais. O caso da ocupação do Instituto não permitia nenhum comportamento diferente do nosso. Como o Instituto é uma fundação independente e não se encontra sob a proteção da Universidade, a responsabilidade por tudo o que aqui acontecesse recairia sobre Friedeburg e sobre mim. Os estudantes tinham a intenção, em vez de participar do Seminário, de “ocupar, de maneira diferente” o Instituto, como diziam antes; no que isso daria, com pichações e tudo o mais, pode-se imaginar. Hoje eu não reagiria de modo diferente de 31 de janeiro. A exigência que os estudantes me lançaram recentemente -fazer autocrítica pública-, considero-a puro stalinismo. Isso nada tem a ver com “business as usual”.
Sei que no tocante à relação entre teoria e prática não estamos longe um do outro, embora precisássemos algum dia discutir realmente essa relação (estou justamente trabalhando em teses que se ocupam disso). Também concordaria contigo que há momentos nos quais a teoria é impulsionada pela prática. No entanto, hoje nem uma tal situação domina objetivamente, nem o praticismo monótono e brutal, com que em todo caso nos encontramos confrontados aqui, tem qualquer coisa a ver com teoria.
A tua mais forte alegação consiste em dizer que a situação é tão horrível que se deve tentar quebrá-la, mesmo reconhecendo ser isso objetivamente impossível. Eu levo o argumento a sério. Mas considero-o falso. Nós, tu assim como eu, suportamos outrora uma situação muito mais terrível ainda, o assassinato dos judeus, sem que tivéssemos passado à prática, simplesmente porque nos era vedada. Considero como uma questão de autoconsciência ter claro o elemento da frieza em cada um de nós. Dito asperamente: encaro como um auto-engano que tu, em virtude do que ocorre no Vietnã ou em Biafra, não possas mais simplesmente viver sem participar das ações estudantis. Mas, se realmente se agir assim, então não se deve protestar apenas contra o horror das bombas de napalm, mas igualmente contra as indescritíveis torturas ao estilo chinês, que os vietcongues continuamente praticam. Se não se pensar nisso também, o protesto contra os americanos tem algo de ideológico. Max, com toda razão, dá grande valor precisamente a esse ponto. Justamente eu, que afinal deixei a América, devo ter uma certa razão na minha opinião.
Reclamas da expressão de Jürgen, “fascismo de esquerda”, como “contradictio in adjecto”. No entanto, és um dialético. Como se não existissem tais “contradictiones”, como se um movimento, em virtude de suas antinomias imanentes, não pudesse transformar-se em seu contrário. Parece-me não haver dúvidas de que o movimento estudantil, na sua atual configuração, e na verdade de imediato, desemboca justamente na tecnocratização da Universidade, a qual quer supostamente impedir. Parece-me igualmente inquestionável que atitudes como as que tive de observar e de cuja descrição poupo, a ti e a mim, possuem realmente algo daquela violência sem conceito que uma vez pertenceu ao fascismo.
Portanto, respondendo sem equívocos à tua pergunta: se vieres a Frankfurt para discutir com os estudantes que dão provas de uma regressão calculada contra todos nós, então deves fazê-lo por conta própria, não sob nossa égide. A decisão cabe unicamente a ti.
Naturalmente seria ótimo se pudéssemos encontrar-nos na Suíça com Max, mas duvido que isso possa realizar-se, pois ficaremos pouco tempo em Basiléia. Seria importante para nós conversas realmente infindáveis. Para isso, Zermat seria o melhor lugar, pois, apesar de não ter lagos italianos, nem por isso te desencorajou outrora. A propósito, no início de setembro estarei na Itália; por volta dos dias 8 e 9 é certo encontrar-me em Veneza.
Afetuosamente teu
Teddy.

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CARTA DE MARCUSE A ADORNO

Londres, 4 de junho de 1969

Caro Teddy

Ainda mais urgente que antes sinto a necessidade de falar francamente. Ergo:
Tua carta não dá a mais leve indicação que permita diagnosticar as razões da hostilidade dos estudantes contra o Instituto. Falas sobre os “interesses do Instituto”, exortando enfaticamente: “nosso velho Instituto, Herbert”. Não, Teddy. Não foi nosso velho Instituto que os estudantes invadiram. Sabes tão bem quanto eu que há uma diferença essencial entre o trabalho do Instituto nos anos 30 e seu trabalho na Alemanha de hoje. Esta diferença qualitativa não provém do desenvolvimento da própria teoria: as “subvenções” que mencionas incidentalmente são realmente tão incidentais? Sabes que concordamos na recusa de qualquer politização imediata da teoria. Mas a nossa (velha) teoria tem um conteúdo político interno, uma dinâmica política interna que hoje, mais do que nunca, exige uma posição política concreta. Isto não significa dar “conselhos práticos”, como me atribuis na tua entrevista ao “Spiegel”. Nunca fiz isso. Como tu, considero irresponsável aconselhar do alto da escrivaninha a ação àqueles que estão dispostos, com plena consciência, a fazerem quebrar-se a cabeça pela sua causa. Mas, no meu modo de ver, isso significa que, para continuar a ser nosso “velho Instituto”, devemos hoje escrever e agir diferentemente dos anos 30. Até mesmo a incólume teoria não está imune à realidade. Tão falso quanto negar a diferença entre ambas (como tu com razão censuras aos estudantes) é manter abstratamente a diferença na sua antiga configuração, quando a realidade na qual teoria e prática se incluem (ou se distanciam) se modifica.
De fato, não se deve “caluniar abstratamente” a polícia. É evidente que em determinadas situações eu também chamaria a polícia. Em relação à Universidade (e só em relação a ela) assim o formulei recentemente: “if there is a real threat of physical injury to persons, and of the destruction of material and facilities serving the educational function of the university”. Por outro lado, acredito e repito que, em determinadas situações, a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político. Exemplo: na Universidade da Califórnia, após a inimaginável e brutal repressão da manifestação de maio em Berkeley.
Talvez o mais importante: não posso descobrir em mim a “frieza em cada um de nós” perante a terrível conjuntura; se for “auto-engano”, já deve ter penetrado tanto na carne e no sangue que não é mais frieza. Da mesma forma, não é pelo menos possível que justamente a constatação da frieza seja auto-engano e “defense mechanism”? E, de qualquer modo, parece-me desumano que não se deva protestar contra o inferno do imperialismo sem ao mesmo tempo acusar aqueles que, desesperados, se defendem por todos os meios contra esse inferno. Como princípio metódico, transforma-se imediatamente em justificação e desculpa do agressor.
Passemos ao “fascismo de esquerda”: não esqueci evidentemente que há “contradictiones” dialéticas -mas também não esqueci que nem todas as “contradictiones” são dialéticas-, muitas são simplesmente falsas. A esquerda (autêntica) não pode, “em virtude de suas antinomias imanentes”, transformar-se na direita, sem mudar essencialmente sua base social e seu objetivo. No movimento estudantil nada indica uma mudança desse tipo.
Escreves, para introduzir teu conceito de “frieza”, que, por nosso lado, também suportamos o assassinato dos judeus sem passar à prática, “simplesmente porque nos era vedada”. Sim; e hoje, precisamente, ela não nos é vedada. A diferença entre as duas situações é a que existe entre fascismo e democracia burguesa. Esta nos dá também liberdades e direitos. Mas na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, e isso por meio do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extraparlamentar torna-se a única forma de “contestation”: “civil disobedience”, ação direta. E as formas dessa ação não seguem mais o esquema tradicional. Nessas formas, há muitas coisas que condeno assim como tu, mas me conformo com elas e defendo-as contra seus adversários, porque precisamente a defesa e a manutenção do status quo e seu custo em vidas humanas são muito mais elevados. Aqui se encontra sem dúvida a mais profunda divergência entre nós. É para mim simplesmente impossível falar dos “chineses no Reno” enquanto os americanos estiverem no Reno.
É certo que tudo isso requer “conversas infindáveis”. Não compreendo porque só Zermatt seria o “melhor lugar” para tal. Um lugar de mais fácil acesso para todos os participantes parece-me no campo do possível. De 16 de agosto a 11 de setembro estaremos na Suíça; de 4 de julho a 14 de agosto na casa de Madame Bravais Turenne, 06 Cabris, França.
Afetuosamente teu.

 

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As cartas reproduzidas acima pertencem ao Arquivo Herbert Marcuse de Frankfurt. Originalmente publicada na revista “praga” (Ed. Hucitec, n. 3, 1997). Tradução de Isabel Maria Loureiro.

 

Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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