Por Valdemir Pires**
“São necessários anos de leitura atenta e inteligente para se apreciar a prosa e a poesia que fizeram a glória de nossas civilizações. A cultura não se improvisa” (Julien Green, 1900-1998). E tudo começa do começo: da alfabetização – este tesouro individual de valor incalculável que, por somatório, constitui o potencial de um povo para caminhar a passos largos na manutenção e avanço de sua cultura. Passa, em seguida, pela disseminação da leitura como hábito edificante, entendida esta como algo além da simples abordagem de textos necessários à sobrevivência (instruções, orientações, receitas, material técnico etc.). Leitura reflexiva (dissertativa, como em filosofia, história, ciências sociais etc.) e leitura por prazer estético (narrativa e poética, como nos poemas, contos e romances). Leitura que exige uma capacidade de interpretação de texto (quando dissertativa) e uma sensibilidade treinada (quando narrativa-poética, literária). Leitura que é uma habilidade que leva anos e anos para ser desenvolvida: não se improvisa.
Não é nem nunca será um leitor qualificado e necessário (à cultura, à civilização) todo aquele que, diante de um livro, diga: “É muita letra. É preciso mais figuras e ilustrações para tornar mais fácil e atraente”. Esta atitude nega a conquista que representou, primeiro, o alfabeto (que torna possível a palavra escrita) e, depois, a própria escrita como meio de comunicação e expressão (tenta voltar à era do limitado ícone como representação das informações e das ideias, todo aquele que propõe ilustrações em vez de parágrafos nas páginas). Esta atitude revela preguiça mental e, se não for isso, alguma debilidade, que precisa de diagnóstico e tratamento. Com este defeito, não se encara a necessidade de dedicar tempo à cultura, ao conhecimento, à leitura, tomando-o como investimento necessário de cada um para oferecer e receber na civilização baseada na escrita/leitura. Seria o caso de se propor, o contrário: por exemplo, em livros didáticos, mais letras – que o aprendiz seja levado a descrever com palavras escritas uma imagem a ele apresentada.
Tudo isso é muito claro, evidente, amplamente aceito, a não ser para os trogloditas que passaram despercebidos (porque são capazes de dissimular sua natureza com procedimentos escolares ilícitos) pelo sistema de desasnamento básico (leia-se ensino básico e fundamental), às vezes seguindo, com o mesmo comportamento preguiçoso, para sistema de envernizamento cultural (leia-se ensino superior falsificado, aquele em que não se lê e não se debate), visando certificação para acesso a empregos de média qualificação. É tão claro que faz já bastante tempo que uma fração significativa da vida das pessoas transcorre nas escolas e faculdades, locais em que a essência dos fazeres tem a ver com ler e escrever. Lugares de cultura, de cultivo, de preparo para a vida civilizada, densa em conhecimento e cultura.
A palavra cultura contém em si a ideia de tempo – cultivar é, originalmente, lavrar a terra, semear, aguardar que a natureza atue para, só então colher. Implica ação e espera, movimento e repouso, do homem e da natureza, juntos. Não se improvisa: impossível obter a rosa sem se dedicar a seu cultivo. É por extensão que a palavra vem para o mundo do conhecimento, do saber, da sensibilidade: o “homem natural” é quase um animal irracional; só “cultivado” torna-se a flor da raça – o resto é mato. Mato digno de existir e viver, mas que a civilização (como conquista coletiva) convida a ir além, superar-se, lendo e, se possível, escrevendo também, para ser lido.
O leitor que vê nos livros palavras demais não é, verdadeiramente um leitor, não consegue e não quer dedicar seu tempo a um processo que requer raciocínio elaborado para dar saltos de qualidade, como indivíduo propenso a melhor conhecer e sentir a si, aos outros, às relações e ao mundo. O leitor que deseja se refugiar em figuras para se encorajar no ato de abordar as páginas é um primata cultural: estacionou na era do ícone, não se apropriou, ainda, de toda a potencialidade do alfabeto e da escrita. Ele carece do investimento, de tempo e de massa encefálica, para chegar aos primórdios da civilização atual. Ele, entretanto, não sabe o que está perdendo, coitado. O que será que ele faz do tempo que “economiza” (enquanto os leitores “investem”) deixando de ler? Tenta ganhar poder para obrigar os outros a ser como ele? Ou procura ganhar dinheiro para, rico, esconder sua pobreza atrás do biombo do consumo ostensivo?
* Texto originalmente publicado em seu blog pessoal ( acessar AQUI) e cedido gentilmente para ser aqui republicado.
** Doutorado em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba. Professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).
Obrigada pela contribuição!
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