Povos originários e seus papéis outorgados

povos originários
povos originários

Os papéis outorgados aos povos originários na pré-história da antropologia cultural

Lucas Barroso[1]

A “PRÉ-HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA”

Compondo o capítulo inaugural da obra Aprender Antropologia (Clefs pour L’ anthropologie, em francês) de François Laplantine, professor titular de etnologia da Universidade de Lyon II, o texto “A pré-história da Antropologia” visa apresentar uma introdução à história da disciplina antropológica. Para tal empreendimento, o seu norte inicial foi a conjuntura letrada decorrente das Grandes Navegações e o consequente início do estudo sobre os povos originários, que, a partir desse momento, recebem papéis simbólicos a serem cumpridos de acordo com os variados interesses europeus.

Compreendido por Laplantine (2007) como uma era pré-antropológica, esse período, iniciado no final do século XV, gerou o contato intercultural – forçado – entre povos até então desconhecidos entre si. Os estudos incipientes dessa época, como demonstrado no início do texto, foram possíveis por meio das análises de relatos de viajantes e missionários (p. 37), que, à sua maneira, narravam e descreviam o cotidiano dessas diversas culturas. Sobre essa literatura, o enfoque religioso era o principal critério utilizado como meio de compreensão das diferenças visíveis entre as populações, sendo o preconceito cultural uma marca desses escritos.

REPRESENTAÇÃO EUROCÊNTRICA DOS POVOS ORIGINÁRIOS

povos originários

Variando entre fases, mas componentes gerais dos estados de selvageria e barbárie, segundo o senso europeu, os povos originários de diversas localidades foram englobados por teorias e ideologias eurocêntricas. Dentre todas, duas foram expressas por Laplantine (2007) em seu texto, sendo elas: a recusa ou o fascínio pelo estranho (p. 38).

A primeira diz respeito ao entendimento da diferença como aberração (p. 40). Contrapondo maus selvagens e bons civilizados, essa teoria possuía o objetivo de valorizar a civilidade europeia, em detrimento da depreciação da barbárie dos povos recém-descobertos. Sobre essa visão etnocêntrica, Laplantine (2007) cita as contribuições de pensadores como Henry Morton Stanley (p. 42), Cornelius de Pauw (p. 43-44) e Friedrich Hegel (p. 45-46), que compreendiam a vida selvagem como um lugar da falta de aspectos humanos e como o inverso do mundo civilizado, representado exclusivamente pela Europa. A partir de julgamentos, a humanidade, de acordo com essa perspectiva, transformou-se em um estatuto, em que, por meio de critérios eurocêntricos, era atribuído ou não aos membros do Novo e do Novíssimo Mundo.

Já a segunda teoria, de forma antitética, compreendia as organizações primitivas como um lugar imaginário de fuga simbólica da razão ocidentalizada, uma vez que eram sociedades protegidas da ambígua civilização dos europeus. Tendo como norte a má consciência sobre a sociedade ocidental europeia, essa visão tinha a intenção de enaltecer a “ingenuidade original” do estado de natureza (p. 47). Essa tese, segundo Laplantine (2007), popularizada pelas grandes contribuições do Rousseauismo e do Romantismo, teve seu início embrionário nas análises dos primeiros viajantes, como Américo Vespúcio e Cristóvão Colombo, que, em poucos trechos de seus relatos de viagem, destacavam a mansidão e a inocência como marcas desses povos (p. 46-47).

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PAPÉIS OUTORGADOS AOS POVOS ORIGINÁRIOS

Vale destacar que mesmo dicotômicas entre si, essas teorias tinham o Ocidente como o lugar de referência para o julgamento ou para a reflexão sobre o Outro. Dessa forma, seja para valorizar ou criticar os costumes europeus dominantes, os povos originários, de forma simbólica, receberam dois papéis a serem cumpridos nessa empreitada: o de maus ou de bons selvagens. Isso se deu de acordo com os interesses das elites políticas e letradas da Europa, que tinham na figura do nativo um suporte prático de exemplificação para suas teorias, que podiam ser tanto conservadoras quanto liberais.

Desse modo, além de serem posteriormente escravizados, os povos originários também sofreram um duro processo de falta de empatia e de alteridade. Mesmo o Ocidente sendo a referência nesse período, os nativos foram incumbidos de desempenhar papéis que serviram para legitimar as atuações europeias em suas terras: quando recusados pela sociedade, a colonização estaria moralmente justificada; e, quando dignos de fascínio, o imaginário europeu estaria sendo germinado na subjetividade romântica. Sendo assim, vale destacar que tais funções outorgadas a esses povos os transformaram, mesmo que de maneira desproposital, no norte referencial para as ações ocidentais da época.

Dessa forma, seja como bons ou maus selvagens, as culturas dos povos originários receberam incumbências a serem cumpridas simbolicamente no período compreendido como pré-antropológico, segundo Laplantine (2007). A constatação das diferenças interculturais ocorreu a partir dos valores europeus, mas, na prática, o centro das ações dos ditos civilizados deu-se por meio da criação de uma figura dúbia dos nativos. Mesmo com esses dois papéis, que serviram como tutela para o colonialismo ou como marco ideológico para a representação das utopias europeias, os chamados povos “distantes” receberam um destino único pelos colonizadores. Assim, as suas futuras escravizações se iniciaram a partir desse momento: quando as teorias e as fabulações eurocêntricas aprisionaram os seus futuros e limitaram suas existências no Novo Mundo.

Referências bibliográficas

ENGELS, Friedrich. “Estágios Pré-históricos da Civilização”. In: __________. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2020. cap. 1. p. 29-44.

ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. “Protoantropologia”. In: __________. História da antropologia. Tradução de Levindo Pereira. Petrópolis: Editora Vozes, 2019. cap. 1.

EVANS-PRITCHARD, E. E. “Trabalho de campo e tradição empírica”. In: __________. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70, 1972. p. 67-85.

LAPLANTINE, François. “A pré-história da Antropologia: a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até os dias de hoje”. In: __________. Aprender Antropologia. Tradução de Marie-Agnès Chauvel. 17ª Edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007. cap. 1. p. 37-53.

DICA DE LEITURA

 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2020.

ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da antropologia. Tradução de Levindo Pereira. Petrópolis: Editora Vozes, 2019.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70, 1972.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. Tradução de Marie-Agnès Chauvel. 17ª Edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007.

DICA DE ATIVIDADE PEDAGÓGICA

 Uma prática pedagógica interessante para estimular a construção conjunta do conhecimento acerca dos povos originários seria estimular a pesquisa entre os educandos. A proposta estaria centrada em fazer com que os alunos pesquisassem sobre a história e a memória de uma etnia indígena escolhida previamente, com preferências para aqueles grupos que pudessem compor as árvores genealógicas dos estudantes.

O objetivo dessa atividade em sala de aula seria contribuir para desconstruir pré-concepções e preconceitos sobre povos indígenas, que podem ser de natureza indianista, higienista e/ou eurocêntrica.

A investigação pode ser realizada inteiramente via internet. Para isso, os alunos seriam aconselhados e instruídos a utilizar ferramentas de pesquisa, como o uso de repositórios, memoriais e arquivos digitais, por exemplo. Além disso, será aconselhável também a procura por entrevistas e relatos de indígenas pertencentes a etnia pesquisada.

A compilação de todo o material investigado poderá ser feita em formato livre: um trabalho escrito, um material audiovisual, uma apresentação oral ou uma exposição cultural. Aqui, a criatividade deverá ser livre para extravasar das mentes borbulhantes dos educandos envolvidos nessa atividade.

Entender a diversidade cultural é um dos pilares do incentivo à prática de alteridade e da construção de uma sociedade igualitária sem preconceitos. A partir disso, é possível romper com os papéis outorgados aos povos originários.

[1] Bacharelando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e licenciando em História pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

Roniel Sampaio Silva

Mestre em Educação e Graduado em Ciências Sociais. Professor do Programa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – Campus Campo Maior. Dedica-se a pesquisas sobre condições de trabalho docente e desenvolve projetos relacionados ao desenvolvimento de tecnologias.

Deixe uma resposta