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Criminalidade. O que tenho com isso? Reflexão sociológica sobre o tema

Criminalidade

Criminalidade

 
Cristiano Bodart, doutor em Sociologia (USP) Professor do Programa de de Pós-Graduação em Sociologia (Ufal)

Nota-se um crescimento vertiginoso no índice de criminalidade nas áreas urbanas, principalmente ligado ao tráfico de drogas. A partir de um julgamento fundado no senso comum, tem-se o indivíduo como único culpado de sua condição de criminoso. Sob uma análise sociológica mais cuidadosa, me arrisco, com fortes indícios de certeza (embora não tenha feito uma pesquisa etnográfica), em afirmar que trata-se de fatores psicossociais. Afirmo que o criminoso não é o único responsável de tais constrangimentos, embora defendo que todos os indivíduos devam ser punidos ao descumprir as leis formais, desde que seja baseado na ética. Denuncio que os culpados também somos nós, os “estabelecidos”. Tentarei apresentar alguns de meus argumentos de forma sintetizada, ainda que correndo o risco de não ser completamente compreendido.

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Nossa prática e postura
Nós, os estabelecidos[i] no mercado e no espaço urbano (devidamente empregados ou como patrões) e, consequentemente, estabelecidos na sociedade (aceitos integralmente como cidadãos), temos constantemente estigmatizado os “não-estabelecidos”, os “outsiders” do mercado. Criamos um estigma social em torno desses indivíduos, especialmente daqueles mais desprovidos de bens materiais, daqueles que na cidade chegaram e não conseguiram se estabelecer economicamente. Temos criado e recriado uma imagem desses indivíduos a partir de parâmetros econômicos que têm atuado como depreciadores da qualidade humana. Tal estigma contribui para a formação de uma auto-imagem depreciada, onde o estigmatizado acaba internalizando tais parâmetros sociais.
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As depreciações
O estigma que nós (os estabelecidos) imputamos sobre os “outsiders”, fundamenta-se na renda, na escolaridade, na cor da pele e no local de moradia do indivíduo, assim como sua origem geográfica. A partir desses aspectos projetamos uma imagem depreciativa desses indivíduos, como indivíduos inferiores, muitas vezes tidos como ralé, pivetes, restos, invasores, escórias da sociedade, invisíveis, etc. Quantas vezes repetimos ou ouvimos expressões como:
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  “Ele mora lá na ‘espanha’… lá onde ‘es panha tudo’…”. “Só pode ser pobre e negro para fazer isso”.“Também, vai ver onde ele mora”.“Age assim porque não tem estudo”. “Só podia ser filho de mãe solteira para agir assim”.“Age assim porque é pobre”.“Esse pessoal que vem do nordeste são uns famintos”.“Só podia ser mesmo um favelado” “Nordestino não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado!”

 

Jovem condenada, em maio de 2012, por crime de preconceito contra Nordestinos .
O fato é que ao repetir expressões como essas (via conversas de bar, de rua, fofocas, mídia, etc.), que demostram sentimento de repulsa aos que moram à margem da área central da cidade, aos menos escolarizados, aos mais pobres, aos sem uma família nos moldes tradicional, aos imigrantes, produzimos e reproduzimos um estigma social depreciativo. Cria-se, assim, condições de imposição da estigmatização. O poder econômico sendo utilizado para impor uma superioridade social e civilizatória.
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Quantas vezes moradores de áreas mais carentes tiveram que  esconder informações referente ao seu local de residência? Quantas vezes moradores da “favela” disseram que moravam em outro bairro para fugir da discriminação? Tais atitudes se manifestam como forma de “defesa”, de se esquivar dos estereótipos de “favelado”, de “nordestino”. O problema maior está com relação a cor, haja vista que é impossível esconder sua identidade racial em uma relação face-a-face. Os escárnios talvez sejam mais comum entre crianças por serem menos preocupadas em dizer o que ouvem em conversas de adultos e o que lhes vem à cabeça. Não que os adultos pensem de forma diferente das crianças, pelo contrário, são quase sempre elas suas imitadoras (repetem o que ouvem).
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Os impactos
Estigmatizado pelos “estabelecidos” na sociedade, os “não-estabelecidos, os outsiders” acabam sentindo-se excluídos, incorporam a ideia de serem socialmente inferiores, não se reconhecendo como parte da sociedade (certamente existem muitos casos que os fatores sociais acabam não sendo determinante das atitudes e escolhas do indivíduo, nesses a personalidade, o ‘eu’, no sentido freudiano, acabou pesando mais que as pressões do meio a qual vive).
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A aceitação do estigma traz um sério problema[ii]: a perda da autoestima e da moral. Se por um lado os estabelecidos são coagidos, via coerção informal, manter sua moral “integra” (seu nome ou imagem diante da sociedade), os não-estabelecidos não têm mais o que preservar, já que nós, os estabelecidos, já definimos que eles não têm moral.
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Um indivíduo ao participar de um grupo social aceita as imposições deste. Desta forma, ao estar incluído socialmente os cidadãos aderem as normas de conduta, ainda que sejam custosas (mas julgando os benefícios serem maiores). Passam a obedecer as normas… a “civilidade”, a se distanciarem de ações criminosas. Mas quando o indivíduo não está incluído no grupo? Por que obedecer as normas? Por que obedecer a “civilidade”? Por que agir de forma que sua moral (já descartada pelos estabelecidos) seja preservada?
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Com sua autoestima abalada, com o estereótipo de marginal (nos dois sentidos do termo) e as portas do mercado fechadas pela discriminação alguns indivíduos acabam agindo de forma contrária as normas sociais a fim de alcançar o que via legalidade lhes é visto como impossível.
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Outro elemento que colaborará para desencadear a criminalidade: a coerção legal fragilizada. Sem um “nome” a zelar, frente a impunidade e a insuficiente coerção legal, tais indivíduos terão mais “facilidades” para se envolver com a criminalidade (ou serem atraídos por ela).
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Refletir olhando para nós mesmos
Dito isto, creio que precisamos repensar nossos julgamentos em relação aos outros, especialmente daqueles que ainda não estão estabelecidos economicamente na sociedade consumista materialista. Precisamos colaborar para a autoestima desses, criando condições de se estabelecerem na sociedade como cidadãos plenos, como indivíduos orgulhosos de si mesmo. Carecemos de inclusão social e não o inverso. Tal inclusão passa por políticas sociais, mas também pela mudança de postura dos estabelecidos.
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A culpa não é apenas do outro, é nossa! Olhe para seu umbigo e pense um pouco.
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Notas

[i] Para usar expressões próximas àquelas usados por Norbert Elias e John L. Scotson, em “Os estabelecidos e os Outsideres”

 [ii] Certamente existem outros fatores colaboradores para a criminalidade, tais como a desestrutura familiar, a falta de perspectiva de futuro, fatores psicológicos, etc. O “eu” (no sentido freudiano) estabelece forte relação com a estrutura social, com o processo de socialização, o que não retira a responsabilidade pessoal, mas também não isenta a sociedade da construção do criminoso, assim como é possível notarmos que a personalidade (o eu) tem sido fator importante na superação da exclusão social.
Originalmente publicado aqui em agosto de 2012.
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