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Distância social, empatia e o ensino de Sociologia

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Distância social, empatia e o ensino de Sociologia

Por Cristiano das Neves Bodart[1]

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Cristiano Bodart ensino de sociologiaMuito se fala em sala de aula na desigualdade social, o que é pertinente e socialmente importante. Contudo, há outro fenômeno que carece de atenção especial e o ensino de Sociologia tem grande potencial para discuti-lo e gerar condições para mudanças. Me refiro à distância social. Não no sentido adotado para designar a distância física que visa reduzir contágios em tempo de pandemia. Em síntese, me refiro ao estranhamento entre as pessoas que gera a falta de empatia, mais especificamente entre os que estão situados em “lugares sociais” diferentes.

Meu ponto de partida está na premissa colocada por bell hools (2017), de que é o “processo crítico de teorização que nos capacita e nos fortalece”. Um ensino de Sociologia qualificado instrumentaliza – teórico e metodologicamente – os(as) estudantes a se engajarem em diálogos e debates políticos que envolvem estruturas que os oprimem e os menosprezam. Por tanto, o ensino de Sociologia qualificado é uma prática libertadora. Deixo claro que não vejo a educação, muito menos o ensino de Sociologia, como uma prática neutra. Ao contrário, a educação e a Sociologia escolar, em particular, devem politizar os fenômenos sociais, já que esses são resultados de um processo histórico-dialético, marcados por redes sociais estruturadas por relações de poder. Assim, cabe à Sociologia escolar promover o que denomino de “percepção figuracional da realidade” (BODART, 2021a; 2021). Nesse sentido, não podemos perder de vista que a teorização é uma prática social que deve partir dos incômodos proporcionados pela vida cotidiana e volta-se a ela, a fim de modificá-la. Nesse sentido, temos uma educação que conjuga dialeticamente prática e teoria, ou seja, um ensino praxiológico (BODART, 2020).

Isso posto, retomo ao tema deste texto: a distância social e o papel do ensino de Sociologia. A ideia de desigualdade social está relacionada a diferença econômica entre os indivíduos, fenômenos que se aprofunda no contexto brasileiro nos últimos anos. Esse tema deve, como muitos outros, estar presente nas aulas de Sociologia por se impor cotidianamente aos nossos(as) estudantes, ainda que inicialmente não tenham consciência disso. Diria que a Sociologia escolar deva priorizar os fenômenos sociais que afetam negativamente a sociedade, as pessoas ou grupos sociais – especialmente aquelas circunscritas pela naturalização –, dando-lhes consciência e os engajando politicamente na busca por melhores condições de sociabilidade.

A ideia de distância social geralmente refere-se às distâncias econômicas entre os indivíduos. Sob essa leitura, é enfatizado o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, sendo o Índice de Gini[2] o indicador mais conhecido. Aqui a distância é medida pelo volume de capitais econômicos. Contudo, lanço luz para uma perspectiva um pouco diferente, mas não excludente: quero destacar a face da distância cultural e sua falta de empatia entre os indivíduos de condições socioeconômicas diferentes.

É verdade que a desigualdade econômica é um grande problema da contemporaneidade, mas essa precisa ser considerada a partir da distância cultural e a falta de empatia entre os indivíduos. É a falta de empatia que permite a desigualdade social latente. Essa falta não é, necessariamente, resultado de uma personalidade ruim, mas da distância cultural que separam as pessoas e seus mundos. O ensino de Sociologia pode colaborar, via a teorização de suas vidas, a superar a incapacidade de ter empatia, de considerar o outro como outro.

As pessoas vivem “seus mundos” e são incapazes de olhar para os outros considerando seu lugar social. Por isso, a luta pelo direito de lugar de fala é tão difícil de ser compreendida e conquistada. Cada um vive em seu mundo e ler os demais mundos a partir do seu, abrindo espaço para a falta de empatia.

O fato de estarmos situados culturalmente em um lugar (o que é sempre é resultante das condições socioeconômicas), tendemos a nos aproximar e compreender apenas os que vivem mesmo lugar que nós. Essa disposição abre caminho para discriminações e julgamentos depreciativos. É por isso que parte significativa da classe média não compreende as motivações dos programas sociais. O dito “ensinar a pescar ao invés de dar o peixe” é resultado dessa distância social, da falta de empatia que o distanciamento produz.

Sem empatia não há comprometimento com a redução das desigualdades sociais. Precisamos compreender que ocuparmos lugares sociais diferentes e somos dotados de experiências de sociabilidades variadas, e isso tem gerado distanciamentos sociais que se manifestam em apartação física e falta de empatia. A distância social também é resultado (e resulta) do preconceito racial, sexista e capacitista.

Os muitos políticos que não se importam com a população mais pobre são sintomáticos desse distanciamento social. Nas nossas práticas cotidianas também se faz presente. Dormimos sem nos importar com quem passa frio sob as marquises dos edifícios abandonados. Usamos eletrônicos sem que o trabalho análogo à escravidão explorado nos incomode. Essa distância, por exemplo, explica o fato de parcela das classes média e alta se opor aos programas sociais, às cotas raciais, ao Sistema Único de Saúde (SUS), às universidades públicas, etc.

Nesse contexto, o ensino de Sociologia qualificado contribui para reduzir o distanciamento; no primeiro momento gerando empatia e, em seguida abrindo horizontes para mudanças e práticas sociais que venham a reduzir as desigualdades sociais. Temas como etnocentrismo, racismo, sexismo, preconceito, estratificação social, relativismo cultural, ideologia etc., são abordados de modo a contribuir para a redução do distanciamento afetivo, do desamor, do desprezo e do estranhamento.

Ensinar que ocupamos “lugares sociais” diferentes é um dos objetivos do ensino de Sociologia, o que deve vir acompanhado de uma leitura política que combata a opressão e o preconceito – por isso, uma educação libertadora. O ensino qualificado de Sociologia proporciona condições para romper com as estruturas culturais que são bases para as desigualdades sociais. É nesse sentido que o ensino praxiológico da Sociologia (BODART, 2020) tem grande potencial para discutir (teorizar) e gerar mudanças concretas (gerar prática orientadas).

Cabe destacar a necessidade de orientar os(as) estudantes que uma educação libertadora pode gerar desconforto por muitas vezes “abalar” paradigmas que fundamentam suas formas de ver o mundo. A percepção figuracional da realidade adquirida por meio do conhecimento sociológico rompe com as perspectivas intencionalmente e historicamente romantizadas das relações sociais.

O contato com a Sociologia escolar pode ser o passo inicial de um processo crítico de teorização que venha a capacitar os(as) estudantes a os fortalecer na busca pelo respeito, pelo direito de voz, pela liberdade de ser o que deseja ser.

 

Referências bibliográficas

BODART, Cristiano das Neves. O ensino de Sociologia e a BNCC: esboço teórico para pensar os objetivos educacionais e intencionalidades educativas na e para além das competências. Cabecs, v.4, n.2 jul./dez. 2020.

BODART, Cristiano das Neves. O ensino de Sociologia para além do estranhamento e da desnaturalização: por uma percepção figuracional da realidade social. Latitude, v. 14, edição especial, 139–160. 2021a.

BODART, Cristiano das Neves. Usos de canções do ensino de Sociologia. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021b.

hooks, bell. Ensino a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. De Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017

Como citar este texto:

BODART, Cristiano das Neves. Distância social, empatia e o ensino de Sociologia. Blog Café com Sociologia. mai. 2022.

 

Notas:

[1] Doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: cristianobodart@gmail.com

[2] Criado pelo matemático italiano Corrado Gini, em 1912. o índice de Gini (ou Coeficiente de Gini) é um indicativo que mede o grau de concentração de renda. Ele varia entre zero (igualdade perfeita) e um (desigualdade total).

 

 

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Cristiano Bodart

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Pesquisador do tema "ensino de Sociologia". Autor de livros e artigos científicos.

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